Ana Tostões
Presidente docomomo International e Professora Catedrática IST
Para citação: TOSTÕES, Ana; – Nuno Teotónio Pereira, um realismo sem precedentes na arquitectura e na vida. Estudo Prévio. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2016. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]
Resumo
A contemporaneidade da sua obra é prova da resistência a modas e estilos. Nuno Teotónio Pereira foi o militante do moderno contra o estilo “nacional” que, sem esquecer as raízes, procurou a verdade da construção. Acreditava na possibilidade de uma terceira via, pelo que foi capaz de manter um olhar crítico em relação ao dogmatismo do ideário moderno, batendo-se pela ponte com a arquitetura vernácula e pela urgência da reconciliação com a história e a memória. A sua obra confunde-se com o magistério do pedagogo porque à margem do academismo da escola de Lisboa, o seu atelier funcionou como uma escola de inovação e discussão. Pioneiro do trabalho de equipa, sempre disponível para arriscar novas soluções, o magistério sustentou-se na pesquisa do arquiteto, na disponibilidade do pensador, na tolerância do homem; cidadão de coragem, capaz de ser solidário e interveniente, de partilhar com os outros as suas grandes inquietações.
Palavras-chave: Nuno Teotónio Pereira, realismo, arquitetura, social, ativismo.
© Pedro Frade – Todos os direitos reservados
Tive o privilégio de conviver com o Nuno Teotónio Pereira durante mais de trinta anos e de descobrir o arquiteto que mudou a arquitetura portuguesa. Mas também de desvendar o homem generoso, justo e desassombrado que se bateu pelas causas sociais. Construímos uma amizade intensa, solidária, feita de lealdade e admiração. Em 2005, quando o Nuno me convidou para ser madrinha do seu doutoramento honoris causa lembro-me de ter começado o discurso de homenagem dizendo que o que mais impressiona, na arquitetura e na vida, é a sua honestidade e busca permanente de verdade. Porque são os conceitos e não as formas que estão na base da sua reflexão e prática arquitetónica. Ao rigor e exigência disciplinar aliou uma capacidade crítica, original e polémica. A uma insaciável curiosidade intelectual aliou a vontade de intervenção, de quem acredita na possibilidade de um mundo melhor.
A contemporaneidade da sua obra é prova da resistência a modas e estilos. Nuno Teotónio Pereira foi o militante do moderno contra o estilo “nacional” que, sem esquecer as raízes, procurou a verdade da construção. Acreditava na possibilidade de uma terceira via, pelo que foi capaz de manter um olhar crítico em relação ao dogmatismo do ideário moderno, batendo-se pela ponte com a arquitetura vernácula e pela urgência da reconciliação com a história e a memória. A sua obra confunde-se com o magistério do pedagogo porque à margem do academismo da escola de Lisboa, o seu atelier funcionou como uma escola de inovação e discussão. Pioneiro do trabalho de equipa, sempre disponível para arriscar novas soluções, o magistério sustentou-se na pesquisa do arquiteto, na disponibilidade do pensador, na tolerância do homem; cidadão de coragem, capaz de ser solidário e interveniente, de partilhar com os outros as suas grandes inquietações.
Com 25 anos, Nuno Teotónio Pereira defendia ser “preciso construir sem preconceitos e com pureza de intenções. Com uma espécie de inocência infantil. A preocupação terá que ser construir bem”. Ao longo da sua vasta produção manteve-se fiel a uma criação “em estado de inocência” implicada com o real, os lugares e as pessoas. Do compromisso social ao político é esse o sentido de uma obra aberta à participação.
Arquiteto estabelecido em Lisboa desde 1947, o prestígio de Nuno Teotónio Pereira ultrapassou a dimensão profissional alargando-se à de interventor respeitado na sociedade. Para além de figura referencial da arquitetura portuguesa, o seu atelier constituiu um lugar de discussão e reflexão funcionando como uma escola paralela à da formação oficial, na época académica, retrógrada e repressiva. Foi lá que trabalharam sucessivas gerações dos mais importantes arquitetos: Bartolomeu da Costa Cabral, Nuno Portas, Gonçalo Byrne, Pedro Vieira de Almeida, Pedro Viana Botelho. Cidadão interveniente e denunciador de injustiças, combateu o regime do Estado Novo tendo sido preso diversas vezes pela PIDE-DGS. Participou nas vigílias da Igreja de S. Domingos, da Capela do Rato, e foi fundador do Movimento de Renovação da Arte Religiosa (1952-1971) de que foi Presidente, bem como da Cooperativa Cultural PRAGMA, do Centro Nacional de Cultura, da Associação dos Arquitectos Portugueses e do Conselho de Arquitectos da Europa.
Ainda estudante bateu-se corajosamente pela causa moderna desenvolvendo um assinalável papel na divulgação de escritos referenciais publicando inauguralmente entre nós excertos da Cité Radieuse de Le Corbusier e da Carta de Atenas. Simultaneamente, Nuno Teotónio Pereira acreditava na possibilidade de uma terceira via, pelo que foi capaz de manter um atento olhar crítico em relação ao dogmatismo do ideário moderno, ensaiando a ponte com a arquitetura vernácula. A promoção da publicação do texto de Fernando Távora “O problema da casa portuguesa” é disso exemplo.
Resistente a aceitar sem reflexão os dogmas do “Movimento Moderno”, Nuno Teotónio Pereira procurou na autêntica cultura portuguesa a inspiração para a humanização da arquitetura. Assim, assinalou pioneiramente a partir de finais dos anos quarenta, a tomada de consciência da urgência da reconciliação com a história, numa perspetiva dialética entre tradição e futuro, entre modernidade e história, espaço e tempo.
Dois factos vão marcar o seu início de carreira. Por um lado o trabalho com Carlos Ramos e a frequência durante um ano da escola do Porto, fugindo à académica escola de Lisboa. Por outro lado o início de actividade desenvolvida num ambiente técnico, o do escritório do engenheiro Vasco Costa marcará o seu modo de pensar, libertando-o de constrangimentos de ordem formal e abrindo a sua imaginação para articulações mais construtivas. É nesta atmosfera dominada pela inventiva tecnológica que a conceção de programas industriais vai pôr à prova uma sua perícia funcionalista no entendimento das estruturas e da sua relação com a forma. Permitindo-lhe, de um modo desdramatizado e desprovido de preconceitos, escolher e utilizar os materiais. Um modo que nenhum dos “modernos” da sua geração foi capaz de usar.
Adepto das premissas sociais do Movimento Moderno que temperava com uma humanidade de matriz católica, a habitação foi desde logo tema de investigação escolhido e, ainda em 1944, desenvolve como trabalho escolar uma inédita cooperativa de habitação, com uma conceção que está entre a filantropia do falanstério oitocentista e a conceção de uma unidade de habitação reclamada pelos CIAM ao sabor do ideário moderno. Como é sabido a questão da habitação constituiu um dos capítulos da agenda do Movimento Moderno e tema de eleição para os arquitetos portugueses no pós-guerra que o afirmaram no Congresso de 1948 onde Nuno Teotónio Pereira apresenta com Costa Martins uma tese reveladora de um entendimento agudo da questão da exclusão social propondo soluções à escala da cidade e do território.
Profundamente interessado pelas causas sociais dedicou-se à investigação neste domínio organizando no âmbito de um curso da JUC da EBAL o primeiro “Inquérito às condições de utilização de edifícios plurifamiliares em Lisboa”, tendo produzido importantes contribuições (“Habitação para o Maior Número”) e desenvolvendo de um modo refletido e inovador diversos conjuntos de habitação social e económica (Braga, Castelo Branco, Barcelos, Sodapóvoa, etc.) no quadro da sua atividade como arquiteto consultor da Federação das Caixas de Previdência-Habitações Económicas (1948-1971). Em 1953 projeta com Bartolomeu Costa Cabral (1929- ) o Bloco das Águas Livres em Lisboa, obra charneira na adoção dos códigos do Movimento Moderno porque representa o primeiro momento de maturação das premissas do Estilo Internacional no quadro da História da Arquitetura Portuguesa. Programática e formalmente inovador, pensado como uma organização que se aproxima de uma pequena comunidade com um programa misto de habitação, escritórios e comércio, envolvendo a participação de diversos artistas plásticos: Frederico Jorge, Cargaleiro, Jorge Vieira, Almada Negreiros, entre outros. Em 1955-1956 participa no Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa que reuniu os profissionais mais qualificados e atentos da época. A partir de 1957, e até 1974, associado com Nuno Portas inicia conscientemente um processo de contextualização e equacionamento crítico da ortodoxia moderna.
Paralelamente à ação dirigida ao programa habitacional, Nuno Teotónio Pereira lutou por uma arquitetura religiosa contemporânea, liberta de estigmas historicistas. Foi um dos ativistas do M.R.A.R. (Movimento de Renovação da Arte Religiosa), um grupo de progressistas católicos atentos à sociedade portuguesa, que entendiam ser importante manifestar a necessidade de mudança também na Arte e na Arquitetura religiosa. Demarcando-se do sistema vigente, consideravam que “guardar silêncio seria atraiçoar a sua vocação de arquitetos e católicos” (1953). Em 1949, inicia o projeto da Igreja de Águas (1950-1952) que constituirá o paradigma da renovação da arquitetura religiosa em Portugal. Este novo entendimento é ampliado no Mosteiro de Sassoeiros (1958-1960), e globalmente realizado na Igreja do Sagrado Coração de Jesus (1962-1970; Prémio Valmor 1975) através de uma busca exaustiva do espaço interno e de uma inteligente integração ambiental, abrindo o espaço religioso ao espaço urbano e fazendo-o penetrar na escala da arquitetura. Projeto manifesto contra as igrejas historicistas que tinham sido erguidas ao longo da década de 50 em Lisboa, recupera o conceito pombalino de espaço sagrado integrado no tecido urbano concretizando, com a criação de um adro que liga um percurso entre as duas ruas, a ideia da igreja aberta à sociedade e aos valores de cidadania. As mesmas premissas são retomadas na Igreja de Almada (1965-1967) desta vez integrada num parque verde.
Com o conjunto de torres e bandas dos Olivais-Norte (1959) propõe uma inovadora organização espacial e participação de artistas plásticos no quadro da habitação social, recebe de novo o Prémio Valmor (1968), pela primeira vez atribuído a uma obra de carácter social. Em 1965, com a colaboração de Braula Reis, projeta o polémico edifício Braancamp (“Franjinhas”), conjunto de comércio e serviços, onde retoma a ideia de penetração do espaço público no edifício. Pela primeira vez a arquitetura é trazida com essa dimensão “pop” para a discussão pública, num apaixonado debate implicando profissionais, críticos e público em geral. Nos anos 70 o plano para o Alto do Restelo é o momento da redescoberta do valor da rua e praça da cidade tradicional, retomando o conceito de fachada e sobretudo do valor formal do quarteirão como peça integral de arquitetura: reinstaura a primazia do traçado da malha ortogonal como tipologia diversificada, redesenhando quarteirões, num local de forte impacto ambiental povoado desde 60 por “torres” e “blocos” modernos. Nos anos 80, projeta a CGD da Horta (Açores) optando por uma forte contextualização imagética e desenvolve sem prescindir da contemporaneidade a recuperação e ampliação do Teatro Taborda que realiza de novo com Bartolomeu Costa Cabral (1979-1989).
A intervenção à grande escala urbana será retomada no final da década de 90 conduzida por Pedro Viana Botelho no estudo do complexo de transportes “Intermodal do Cais do Sodré”, que articula de uma forma singular as redes de comboio, metro, barco e autocarro, onde se confirma a vocação cívica do atelier Nuno Teotónio Pereira e a procura incessante de dignificação do espaço público. De outro modo, porque agora trabalhando no coração da cidade junto ao rio, retomava-se a questão da valorização da cidade e a importância dada ao espaço público e aos valores das tipologias urbanas da cidade tradicional.
O Programa Polis da Covilhã é talvez a maior intervenção urbana do Atelier. Apontando para a salvaguarda e requalificação das ribeiras a que Nuno Teotónio Pereira acrescentou o mote da mobilidade pedonal, a intervenção inicial concentrou-se justamente nos vales das duas ribeiras em cujas margens se situavam as fábricas de lanifícios que constituem hoje o rico património industrial da cidade.
Na aproximação à grande escala ou à dimensão territorial confirma-se a coerência de um trabalho realizado a partir das pré-existências em que o terreno e a topografia são encarados como dado real com o objetivo de responder às pessoas de um modo prosaico e sempre criativo. De facto, a cidade e o território são matéria de reflexão mas também de ação afastando qualquer sentido de planeamento em abstrato.
Nuno Teotónio Pereira foi membro ativo do Sindicato, depois foi Presidente da Associação dos Arquitectos Portugueses e permanente lutador pelo reconhecimento do papel dos arquitetos na sociedade. Foi Prémio Nacional de Arquitectura, Prémio da Fundação Calouste Gulbenkian (1961), Prémio AICA (1985), Prémio do Instituto Nacional de Habitação (1991) e Prémio da Bienal Ibero-americana pelo seu percurso incontornável. Foi presidente do MRAR, da cooperativa cultural PRAGMA, do CNC, do Conselho de Arquitectos da Europa. A Câmara Municipal de Lisboa atribuiu-lhe a medalha de mérito da Cidade. Entre as várias condecorações e reconhecimentos que recebeu, destaco a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade e a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique. Em 2003 a FAUP atribuiu-lhe o grau de Doutor Honoris causa e no ano seguinte a Ordem dos Arquitectos integra no quadro da celebração do Ano Nacional da Arquitectura, com a parceria do CCB e do IPPAR a Exposição Arquitectura e Cidadania, Atelier NTP. Em 2005 é Doutor Honoris Causa pela FAUTL e em 2015 foi distinguido com o Prémio Universidade de Lisboa. Diversos escritos e pesquisas (A Arquitectura do Estado Novo, Prédios e Vilas de Lisboa realizado com Irene Buarque, sua mulher) completam a ação globalizante deste autor pleno de atividade.
Para entender o seu percurso é preciso ter em conta o empenhamento nas causas sociais, a que acrescentou uma dimensão, vital, a de intervenção na sociedade. Com bom desenho e coragem bateu-se pela habitação para o “maior número”. Hoje, mais do que nunca, importa recordá-lo como o lutador inconformado que acreditava que “a cidade é coisa coletiva”.
Por tudo isto, Nuno Teotónio Pereira é para nós um exemplo de coerência, rigor e saudável tenacidade. Hoje, com a sua morte a arquitetura portuguesa ficou mais pobre.
Por isso a nossa responsabilidade é imensa para podermos ser dignos da exigência do seu magistério, do desassombro da sua inteligência, da generosidade da sua ação. Nuno Teotónio Pereira, obrigada pelos ensinamentos de todos estes anos, obrigada por nos ter ensinado a disciplina do rigor e da exigência, por ter partilhado connosco a sua vontade de um mundo melhor, por ter feito da sua vida um modelo de solidariedade e generosidade.
Bibliografia
PEREIRA, Nuno Teotónio – Escritos: 1947-1996. Porto: FAUP, 1996.
TOSTÕES, Ana – Arquitectura e Cidadania. Atelier Nuno Teotónio Pereira. Lisboa: Quimera, 2004.
TOSTÕES, Ana; GRANDE, Nuno – Nuno Teotónio Pereira, Nuno Portas. Colecção Arquitectos Portugueses, série 2, vol.6, 2013.
TOSTÕES, Ana – Idade Maior. Cultura e tecnologia na Arquitectura Moderna Portuguesa. Porto: FAUP, 2014.
TOSTÕES, Ana – Os Verdes Anos na Arquitectura Portuguesa dos Anos 50. Porto: FAUP, 1997.