Nova York Delirante é um texto fundador de uma ideia nova: o Manhatanismo como resultado de uma cultura da congestão, onde o natural e o real deixaram de existir, em prol do último estágio da vida moderna: o artificial.
Rem Koolhaas, conhecido por ser um dos star-architects mais influentes do século XX/XXI, muitas vezes comparado com o próprio Le Corbusier, retoma, neste livro, uma metodologia de investigação já ensaiada pelos seus antecessores, Robert Venturi, Steven Izenour e Denise Scott Brown em Learning from Las Vegas 2: a revisão histórica/teórica/crítica de um território já construído, anonimamente e sem plano definido, propondo, a partir dela, reescrever o passado, dando-lhe um novo conteúdo e uma linha condutora para novas leituras. É precisamente esta nova leitura do existente que Rem Koolhaas apresenta em Nova York Delirante.
Afirmando que será o escritor-fantasma de Manhatan, Koolhaas reescreve a história de Nova Iorque como a cidade que nasceu da vontade inconsciente de viver numa condição urbana de hiperdensidade – o que ele próprio denominou Cultura da Congestão – onde tudo se soma e se sobrepõe, criando uma cidade de acontecimentos inesperadamente bem-sucedidos e de catastróficos erros. (Koolhaas, pag.27)
Ao refazer a história, agora com outro conteúdo, Koolhaas sublinha a capacidade de Nova Iorque em se mitificar como a cidade ideal e privilegiada, onde se experimentam novas maneiras de viver, como se fosse um laboratório da vida moderna. De facto, pode afirmar-se que, ainda hoje, Nova Iorque tem essa capacidade de deslumbramento e mito, como se fosse a capital do mundo, onde tudo surge, evolui e se estabelece primeiro (ou se estabelece, simplesmente, com mais intensidade).
“Em termos de estrutura, este livro é um simulacro da retícula de Manhattan: um conjunto de blocos ou quadras cuja proximidade e justaposição reforçam seus significados independentes.
Os quatro primeiros – Coney Island, O Arranha-Céus, Rockefeller Center e Europeus – narram as permutações do manhatanismo, mais como uma doutrina tácita do que explicita. Eles mostram o avanço (e o declínio posterior) da decisão manhatiana de afastar seu território o máximo possível da natureza.
O quinto bloco – o Apêndice – é uma sequência de projetos arquitetónicos que consolidam o manhatanismo como uma doutrina explícita e preparam a transição da produção arquitetónica inconsciente do manhatanismo para uma fase consciente.” (Koolhaas, pag.28)
O primeiro capítulo conta várias histórias paralelas sobre a evolução da cidade e a constante transformação do seu resort de escape, Coney Island. Koolhaas conta que a ilha se foi transformando – paralelamente ao aumento de densificação de Manhatan – numa intensificação da experiência urbana, em vez de se manter como um espaço natural. Ali, os nova-iorquinos, podiam ser mais deslumbrantes do que na cidade e, aos poucos, o que era uma ilha de escape, tornou-se numa ilha de parques temáticos, longe de ser um espaço natural e também longe de ser um espaço real. Em Coney Island a artificialidade tornou-se a atração principal e a disputa entre parques temáticos (Steeplechase, Luna Park, Dreamland), tornou-se no motor da “nova tecnologia do fantástico”, fazendo da ilha o “fragmento mais moderno do mundo”. Segundo Koolhaas, foi em Coney Island que se ensaiaram as primeiras torres de Nova Iorque, através da construção de entretenimentos cada vez mais altos e mais apelativos, “Dreamland é o laboratório de Manhatan”. (Koolhaas, pag.72)
“Em 50 anos, a torre acumulou múltiplos sentidos: catalisadora da consciência, símbolo do progresso tecnológico, demarcadora de zonas de prazer, detonadora subversiva da convenção e, finalmente, universo contido em si mesmo” (Koolhaas, pag.117)
É no segundo capítulo que o autor nos apresenta os primeiros arranha-céus como o resultado natural da hiperdensificação que se vivia em Nova Iorque do princípio do século XX. Agora, os nova-iorquinos podiam trazer para a cidade a vontade de exuberância e de construir um ambiente artificial, como já faziam na ilha, deixando o natural longe da vida moderna ideal que se vivia nos pisos superiores.
Conjugando várias circunstâncias contemporâneas como a invenção do elevador, a estrutura em aço, a congestão urbana e a sua intrínseca exuberância, Nova Iorque podia agora maximizar o valor dos terrenos, multiplicando, sem limite, a área de cada bloco (quarteirão) em direção ao céu e somando ainda a possibilidade de criar mundos diferentes em cada piso de cada edificio. Esta última possibilidade abre uma nova categoria urbana, em que cada edificio pode ser visto não como uma multiplicação sistemática de pisos iguais mas sim como um contentor de múltiplas urbanidades díspares, transformando Manhatan num arquipélago de ilhas urbanas, onde cada ilha é capaz de conter a complexidade de uma cidade – “a cidade dentro de uma cidade”.
Como um dos exemplos desta nova capacidade dos arranha-céus e como apoteose da cultura da congestão, Rem Koolhaas, descreve e ilustra o edíficio Downtown Athletic Club de Starret & Van Vleck, um pequeno retângulo inserido na retícula de Mahnatan, com 38 pisos e “quase indíscernível entre os arranha-céus convencionais que o cercam”. Este edifício contém em si mesmo realidades tão díspares como salas para Squash, no 4ºpiso, Campo de Golfe Interior, no 7ºpiso, Massagens e Barbearia, no 9º piso, Piscinas em salas com triplo pé-direito, do 11 ao 13º,piso, Restaurantes, nos 15º e 18º pisos, e, do 20º ao 35º pisos, o Clube ainda tem 15 andares de quartos. “O arranha-céus transformou a natureza em sobrenatural” (Koolhaas, pag.185) onde a vida do século XX encontra o seu território ideal para se desenvolver e se intensificar.
“O Rockefeller Center é a demonstração mais madura da teoria tácita do manhatanismo sobre a existência simultânea de diferentes programas num mesmo local, ligados entre si pelos dados comuns dos elevadores, das centrais de serviços, das colunas e do invólucro exterior.” (Koolhaas, pag.226)
O terceiro capítulo surge como um aprofundamento do que já se tinha descoberto através de vários edifícios que Koolhaas ilustra e analisa, acrescentando a ideia da “congestão pela congestão” e a nova característica programática do Rockefeller Center, através da Radio Corporation of America e da posterior NBC, de se “emitir” para todo o mundo e também de conter todo o mundo em si mesma, através dos espetáculos do Radio City Music Hall.
É também neste capítulo que o autor faz um tributo a Raymond Hood como o grande arquiteto-mentor da nova cidade das torres e vai introduzindo, em pequenas ironias, o capítulo seguinte – Europeus. “Ele (Raymond Hood) compra o primeiro livro de Le Corbusier, Por uma arquitetura; os seguintes pede emprestado.” (Koolhaas, pag.192)
Europeus– Salvador Dalí e Le Corbusier visitam, pela primeira vez, Nova Iorque em 1930 e tentam a todo o custo reinvidicá-la, falhando. Ambos tentaram chocar, através de impactantes performances/projetos, uma cidade que nasceu da exuberância e que incorpora em si, como se de uma realidade banal se tratasse, o excêntrico e o artificial.
Le Corbusier é retratado neste livro como um arquiteto impiedoso, que não entendeu Nova Iorque, assim como não entendeu que o mundo é feito de lugares com especificidades e pessoas diferentes, falhando redondamente ao tentar implementar a sua asséptica Cidade Radiosa numa cidade que já é feita de torres e a congestão e a sobreposição de programas e de cenários diferentes, enchem de vida e, por conseguinte, de conteúdo.
Por último, Rem Koolhaas acrescenta um Apêndice, onde publica alguns projetos e textos que incorporam a ideologia do Manhatanismo e que “deve ser visto como uma conclusão ficcional, uma interpretação do mesmo material não por meio de palavras, e sim com uma série de projetos arquitetónicos”. (Koolhaas, pag.330)
Através deste levantamento histórico-arquitetónico, Koolhaas renova as possibilidades da arquitetura face às encruzilhadas que o modernismo construíu. A partir da evocação de Nova Iorque como o paradigma inconsciente de uma nova tipologia urbana e arquitetónica, a arquitetura metropolitana, Rem Koolhaas define uma série de princípios que estarão presentes em todo o seu trabalho – a liberdade entre a caixa exterior e o seu interior, a interação entre pisos, a sobreposição de programas, a congestão positiva, a escala extrapolada, a evolução constante das cidades – tanto no seu atelier OMA, Office for Metropolitan Architecture, como no seu centro de estudos e publicações, AMO, o alter-ego de investigação do atelier.