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José Luís Possolo de Saldanha

Arquiteto. Professor Auxiliar do ISCTE-IUL e Investigador do Dinâmia’CET-IUL

 

Para citação: SALDANHA, José Luís Possolo de – Jorge Luís Borges e Sur. Estudo Prévio 9. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2015. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]

Creative Commons, licence CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

Resumo

Aborda-se o advento do modernismo literário na Argentina, iniciado com a publicação da «revista de parede» que o seu promotor Jorge Luís Borges denominou Prisma e que o mestre argentino – acompanhado de quatro amigos armados com brochas e baldes de cola – aplicou sobre as paredes de Buenos Aires durante a madrugada de 25 de novembro de 1921 (WILLIAMSON, 2004, p.100).
Prisma, que consistia de um grande cartaz com textos ultraístas de autores argentinos e espanhóis e xilogravura de Norah Borges (irmã do escritor), antecede outras iniciativas editoriais periódicas que culminarão, dez anos mais tarde, com a notável revista Sur, que Victoria Ocampo fundou, dirigiu e patrocinou. Procede-se no artigo a uma caracterização do vasto alcance que a sua publicação regular entre 1931 e 1971 – que excederá largamente as fronteiras da nação cujo ermo território de estepe se estende mais para Sul no planeta – atingiu, e da importância determinante que desempenhou na vida pessoal e concretização literária da sua mecenas e respetivo círculo de colaboradores e amigos, em particular de Jorge Luís Borges.

Palavras-chave: Revista Sur; Modernismo Argentino; Jorge Luís Borges; Victoria Ocampo; Paisagem de Estepe.

 

Em memória de Ana B.C., falecida na manhã de 17 de fevereiro de 2010 na cidade mais a Sul do planeta.

Nadie ignora que el Sur empieza del otro lado de Rivadavia […] y que quién atraviesa esa calle entra en un mundo más antiguo y más firme.- “El Sur”. In: Artifícios, Ficciones (BORGES, 1974, 1944, p.256).

 

I. Introdução

Ao recolher na juventude “O Aleph” – na edição portuguesa de janeiro de 1976 da Editorial Estampa – de uma estante de livros na casa paterna descobri casualmente Jorge Luís Borges (Buenos Aires, 1899 – Genebra, 1986). Pode muito bem ter sucedido no ano da morte do escritor. Algum tempo depois, procurei apurar a quem pertencia o livro. De maneira tipicamente “borgesiana”, nenhum membro da família sabia da existência do livro ou sua proveniência. Na verdade, não conheciam sequer o escritor.

Convida o editor do número dedicado ao Sul da revista Estudo Prévio a escrever sobre Jorge Luís Borges e a revista literária Sur, que Victoria Ocampo (Buenos Aires, 1890 – Beccar, 1979) conduziu e financiou por mais de 40 anos. A existência dessa publicação durante esse largo e pouco frequente período em revistas do tipo merece atenção pela tenacidade de Ocampo, pela qualidade dos seus colaboradores e pela incrível dimensão que alcançou na divulgação literária na América do Sul de autores de várias partes do mundo – bem como na oportunidade de dar a conhecer obras de numerosos autores latino-americanos.

Borges esteve ativamente ligado a Sur, sobretudo durante a primeira quinzena de anos da revista: como membro da sua comissão editorial, como crítico literário, como tradutor de textos de língua estrangeira – e como contribuidor de peças de autoria própria. A maioria dos seus contos mais célebres foi publicada pela primeira vez em Sur.

O nome da revista denuncia a procedência e afirma com garbo que no Sul também existia interesse literário. Borges defendeu em “América y el destino de la civilización occidental”, no número de abril de 1936 da revista Nosotros (pp.60-61, republicado em BORGES, 2011, pgs.339-340), que a cultura das Américas não era inferior à europeia e que “há mais de século e meio a poesia lírica francesa vive à conta de Whitman e de Edgar Allan Poe”.

O propósito de Sur era portanto temerário, ainda porque o hemisfério austral se encontra desfavorecido: a maioria da crosta terrestre (à superfície) encontra-se no hemisfério Norte, e a maioria da população mundial vive aí. Não surpreende, portanto, que a cartografia convencionasse que a Europa e a Ásia ficam na metade superior do planeta. Na celebrada narração que Bruce Chatwin (1940-1989) realiza sobre a sua viagem à Patagónia, menciona as paragens mais além da América do Sul – continente que:

“Apesar das suas particularidades, era considerada uma terra normal quando comparada com o desconhecido continente antártico, o Antíctone dos pitagóricos, cuja localização nos mapas medievais era marcado com a palavra NEVOEIROS. Nessa terra às avessas, a neve caía para cima, as árvores cresciam para baixo, o Sol brilhava negro e os antípodas de dezasseis dedos dançavam até ao êxtase” (CHATWIN, 2016, p. 218).

Acresce que o hemisfério Sul não tem estrela polar, ao contrário do que sucede com o hemisfério Norte que dispõe de α-Ursae Minoris (mais conhecida pelo nome latim Polaris), na constelação da Ursa Menor. Esta estrela, que atingirá no dia 24 de março de 2100 a posição mais próxima do pólo Norte, era chamada Scip-Steorra (estrela do barco) na Inglaterra anglo-saxónica do século X – expressão que provavelmente Borges conhecia e apreciaria. A disponibilidade de um astro desse tipo assistiu certamente o processo de civilização no hemisfério norte, sendo que ao Sul do planeta não se pôde dispor de instrumento melhor que o Cruzeiro do Sul, que se tem deslocado no firmamento (em tempo da Grécia Clássica, a constelação ainda era visível em paragens subtropicais…) no sentido do ponto virtual do pólo Sul (ao qual aponta).

Assinalamos por fim o fascínio – confessadamente idealizado e recorrentemente patente na sua obra – que as míticas e infindáveis planícies da Pampa, entrando pela Patagónia, exerceram sobre Jorge Luís Borges. Portugal oferece-nos um paralelo em escala reduzida, pois é além do Tejo que o território se espraia, o povoamento se reduz e o espaço natural e aberto se dilata.

 

II.

Os descendentes dos mais antigos povoadores hispânicos da Argentina tornaram-se conhecidos como criollos, estatuto que ostentavam com orgulho e lhes conferia condição de elite na sociedade do país. À maneira do que sucede nos Estados Unidos da América com os descendentes dos pilgrims que navegaram no Mayflower, formaram émulos da aristocracia que existia nos países de que procediam. Ambos os lados da família de Jorge Luís tinham raízes nessa «casta» – embora a avó paterna, Fanny Haslam (que chamava Georgie ao neto), fosse nascida em Hanley, Staffordshire (WILLIAMSON, 2004, p.23). Num escrito publicado em abril[Lince1] de 1934 no número 3 da revista Megáfono denominado “Yo, judío” (de desagravo a esse povo), Jorge Luís escreveu que gostava também de se considerar judeu desde que descobrira o apelido Acevedo (nome de solteira da mãe) numa listagem do século XIX das famílias judaico-portuguesas de Buenos Aires. O apelido Borges tem ainda origem portuguesa, que o escritor evoca em “Los Borges”, de que se extraem os seguintes versos (El Hacedor, BORGES, 1974, p.831):

 

“Nada ó muy poco sé de mis mayores

Portugueses, los Borges: vaga gente

[…]

Son Portugal, son la famosa gente

Que forzó las murallas del Oriente.”

Os antepassados lusitanos de Borges comparecem igualmente em “Colónia de Sacramento” (Atlas, BORGES, 1998, p.469), de que apresentamos excerto:

“Aqui, do outro lado do mar, projectou-se a vasta sombra de Aljubarrota e desses reis que agora são pó. Aqui lutaram os Castelhanos e os Portugueses, que assumiriam depois outros nomes. Sei que durante a guerra do Brasil um dos meus antepassados sitiou esta praça.

Aqui sentimos de forma inequívoca a presença do tempo, tão rara nestas latitudes. Nas muralhas e nas casas está o passado, sabor que se agradece na América.”

Se o povoamento europeu – e em particular, norte-europeu – da América do Sul é gradualmente predominante à medida que avançamos para Sul no continente, o inverso ocorre com a presença da raça negra e das populações ameríndias, mais significativa na região tropical. Deste modo, Chile, Argentina e seu discreto vizinho Uruguai são países mais próximos da cultura europeia. Borges constitui uma personificação enfática dessa característica, quer nos seus interesses (de que se evidencia o estudo da história medieval da Inglaterra, mas também das eddas esagas escandinavas, de Shakespeare ou dos autores da Antiguidade), quer na sua obra ficcional, algo remota do realismo mágico que tem celebrado tantos escritores latino-americanos.

Os anos de juventude de Borges passados na Europa também fortaleceram a sua ligação a este continente. Esforçou-se contudo nos primeiros anos da idade adulta (em colaboração com outros escritores argentinos) por autonomizar a identidade e a literatura do seu país – o que era justamente um dos propósitos de Sur. As notas taquigráficas tomadas da aula “O Escritor Argentino e a Tradição”, que Borges apresentou no Colégio Libre de Estudios Superiores a 17 de dezembro de 1951, apontam nesse sentido:

“Creo que los argentinos, los sudamericanos en general […] podemos manejar todos los temas europeos, manejarlos sin supersticiones, con una irreverencia que puede tener, y ya tiene, consecuencias afortunadas. […] Creo que si nos abandonamos a ese sueño voluntario que se llama la creación artística, seremos argentinos y seremos, también, buenos o tolerables escritores” (Discusión, BORGES, 1974, pp.273-274).

Borges cresceu no modesto (e à data periférico) bairro de Palermo, que deveu o nome ao predomínio siciliano dos seus moradores. Em “Palermo de Buenos Aires” (Evaristo Carriego. In: BORGES, 1974, p.105), o escritor menciona uma fonte histórica do começo do século XVII que refere “uma mula ruça que anda na chácara de Palermo, termo desta cidade”. Borges promoveu em 1936 em “História de la Eternidad” uma noção peculiar da imortalidade, a que chamava leonidade: defendia que o leão que vemos no jardim zoológico é essencialmente o mesmo que os nossos avós viram há cem anos (BORGES, 1974, p.358). Nesse sentido, propõe que o animal que povoa imortalmente a savana é imortal. Dessa perspetiva, podemos sugerir que a mula do século XVII em Palermo é a mesma que Le Corbusier desenhou nos arrabaldes de São Paulo aquando da sua primeira vez visita a essa cidade em 1929, numa viagem que também o levaria ao Rio de Janeiro, Montevideu e Buenos Aires.

 

Fig.1- Arredores de São Paulo, 1939. Le Corbusier, Carnet B4-260. (Note-se a curiosidade de o arquitecto ter escrito a lápis no canto inferior direito  o nome do escritor modernista brasileiro Oswald [de]Andrade.) – SANTOS, Cecília Rodrigues dos, et alli, 1987. pag.48.

 

A arquitetura (e a geometria…) figura nos interesses e escrita de Borges. São disso exemplo “A Biblioteca de Babel” (conto publicado em “Jardines” e mais tarde em “Ficciones”),“O Aleph”, ou “Hotel Esja. Reykjavik” (Atlas, BORGES, 1998, p.455). No conto “O Imortal” (publicado em “O Aleph”), descreve um conjunto edificado que remete para os barroquismos e heterodoxias de Piranesi, que o argentino evidentemente conhece – mencionando o arquiteto italiano pelo menos em “Sobre o Vathek de William Beckford” (Otras Inquisiciones. In: BORGES, 1974, p.729). Em “A Casa de Astérion”, dedica-se à obra do mítico e arquetípico arquiteto Dédalo.

Esses interesses do argentino, que mereceram a publicação por Cristina Grau de “Borges y la Arquitectura”, já haviam justificado em 1927 o comentário crítico de Rafael Cansinos-Asséns publicado na revista La Nueva Literatura relativo a Fervor de Buenos Aires (apud GRAU, 1997, p. 46):

“Siente el poeta las calles y las casas como algo humanísimo y tierno, como criaturas dotadas de alma y capaces de eternidad: los pátios de las casas son sus corazones; las tapias rosadas, como un reflejo de la tarde ligera.”

Georgiehabitou um meio familiar protegido. Os pais hesitaram em colocá-lo na escola pública local, que frequentaria somente por um ano antes de se transferir para um colégio mais distante e melhor adequado ao frágil jovem. Foi, contudo, essencialmente educado em casa (na realidade, nunca terminaria os estudos secundários, tendo deixado por concluir anos mais tarde o baccalauréat em Genebra), aprendendo a ler por volta dos quatro anos com apoio e estímulo da avó Fanny Haslam e da mãe Leonor Acevedo.

“Yo creí, durante años, haberme criado en un suburbio de Buenos Aires, un suburbio de calles aventuradas y de ocasos visibles. Lo cierto es que me crié en un jardín, detrás de una verja com lanzas, y en una biblioteca de ilimitados libros ingleses. Palermo del cuchillo andaba (me aseguran) por las esquinas […].” Prólogo a Evaristo Carriego (BORGES, 1974, p.729).

 

Os seus estudos na biblioteca da família foram desenvolvidos em registo solipsista e idealizado, que aplicava aos cenários suburbanos de crime e violência, ou às proezas gaúchas no Sul, pela Pampa até à Patagónia – territórios que irão figurar de modo recorrente ao longo da sua carreira de escritor, de que destacamos os contos “El Sur” (em “Fervor de Buenos Aires”, publicara um poema do mesmo nome), “El muerto” ou “Evangelio según Marcos” (publicado em “Informe de Brodie”, em 1970), ou os poemas “La Guitarra” (impresso nas primeiras edições de “Fervor”, mas retirado em edições posteriores), “Los llanos” e “Al horizonte de un subúrbio”, publicados em “Luna de enfrente”, de 1925 (embora em edições mais tardias o primeiro poema tenha sido também suprimido). Apresentamos os versos finais desse último texto poético (BORGES, 1974, p.58):

 

“Pampa:

Yo sé que te desgarran

Surco y callejones y el viento que te cambia.

Pampa sufrida y macha que ya estás en los cielos,

No sé si eres la muerte. Sé que estás en mi pecho.”

 

III.

Os Borges embarcam para uma estadia prolongada na Europa em 1914, sendo Jorge Luís adolescente. Residem em Genebra até 1919 (WILLIAMSON, 2004, p.60), de onde se deslocam para Espanha, onde permanecem até 1921, embora mudando amiúde de casa. Permanecem por breves períodos entre Barcelona e Maiorca, até se fixarem por mais tempo em Sevilha. Na capital da Andaluzia, o jovem escritor frequenta círculos literários, em particular aqueles que pertenciam ao grupo Ultra, que desde o ano anterior havia derivado esse nome do apelo que o sevilhano (radicado em Madrid) Rafael Cansinos-Asséns (1882-1964) havia feito aos poetas de que fossem “Ultrarromânticos”. Em carta para um amigo residente em Genebra, Borges assinala certa proximidade do grupo ao expressionismo alemão e ao futurismo italiano (WILLIAMSON, 2004, p.71).

Quando a sua família fixa residência em Madrid, Jorge Luís tem já contactos com os ultraístas que reuniam em tertúlia na capital, no Café Colonial, na presença tutelar de Cansinos-Asséns. O argentino comparece assiduamente no conclave, embora pontualmente visitasse o Café del Piombo, onde um grupo rival, de inclinação mais surrealista e radical, reunia sob os auspícios de Ramón Gómez de la Serna – madrileno nascido em 1888 que havia traduzido o manifesto futurista de Marinetti para a língua espanhola em 1909 (WILLIAMSON, 2004, p.75), meses apenas depois da sua publicação em Itália. Gómez de la Serna exilar-se-ia na Argentina em 1936 em virtude da Guerra Civil, vindo a falecer em Buenos Aires em 1963.

Em 1921, Cansinos-Asséns e seus discípulos iniciam a publicação da revista literária Ultra, para a qual Borges contribui em quase todos os números do seu único ano de existência. A irmã, Leonor Fanny (Norah) Borges (Buenos Aires, 1901-1998), participa com várias xilogravuras. Deste modo, quando a família se muda novamente para Palma de Maiorca, Jorge Luís Borges designa-se embaixador do movimento nas Baleares, escrevendo e publicando até um “Manifiesto del Ultra”, no jornal maiorquino Última Hora, a 5 de janeiro de 1921.

Por razões familiares, os Borges regressam em 1921 a Buenos Aires, onde a vanguarda literária não tinha ainda qualquer expressão, pelo que o escritor envida esforços para estabelecer um ramo local da Ultra (WILLIAMSON, 2004, p.77). Jorge Luís reside com a família na Argentina até 1923. Nesse período, publica o seu primeiro livro, “Fervor de Buenos Aires”, composto de poemas que traduzem a idealização que constrói sobre o seu país-natal:

“Esta ciudad que yo creí mi pasado

Es mi provenir, mi presente;

Los años que he vivido en Europa son ilusorios,

Yo estaba simepre (y estaré) en Buenos Aires.”

Versos finais de “Arrabal”

Com o retorno da família a Buenos Aires em 1921, Borges dedica-se a iniciativas editoriais – em regra, de curta duração – na capital argentina. Logo nesse ano, anuncia o advento da vanguardia com uma «revista de parede» à qual deu o nome Prisma, que consistia basicamente de um grande cartaz sobre o qual ia impressa uma amostra de poemas ultraístas e um manifesto dos princípios estéticos da Ultra. O projeto envolveu colaborações argentinas e espanholas, entre as quais se contava a de Guillermo de Torre, que emigrara para a Argentina para casar com Norah Borges. Esta participou com uma xilogravura no número um da revista. Assim, quando a 25 de novembro de 1921 Jorge Luís avançou noite adentro, acompanhado de quatro amigos armados com brochas e baldes de cola para aplicar Prisma sobre as paredes de Buenos Aires – nasceu a vanguarda argentina (WILLIAMSON, 2004, p.100).

 

Fig.2 – Xilogravura de Norah Borges para a capa da edição original de Fervor de Buenos Aires, 1923. -GRAU, Cristina, 1997. Págª 36.

 

Na primeira semana de abril de 1922, o segundo número da revista seria colado nas ruas da capital e, numa viagem de Borges e seus companheiros, a boa-nova chegava a Rosario (Santa Fé). Por essa altura, decidiu que Prisma devia dar lugar a uma publicação mais permanente e substancial, à qual deu com os amigos o oportuno e vanguardista nome Proa. No começo de agosto de 1922, o primeiro número seria dado ao público, constando de textos de autoria diversa, incluindo um do espanhol Cansinos-Asséns, criador da Ultra (WILLIAMSON, 2004, p.184), um de Norah Lange (única mulher entre os ultraístasargentinos), outro de Borges, e demais de outros escritores. A capa exibia outra xilogravura de Norah Borges. Um segundo e terceiro números seriam publicados em dezembro de 1922 e julho de 1923, consistindo de uma folha única dobrada em três secções. Em 1923, a família do escritor desloca-se uma vez mais para a Europa. Nesse período permanecem durante dois meses em Portugal, presumivelmente em Lisboa (WILLIAMSON, 2004, p.117) – regressando à Argentina no ano imediato, de forma definitiva.

No final de agosto de 1924, um novo formato surgiria para Proa, encadernado e com cerca de setenta páginas impressas sobre bom papel. O número 6 da revista, de janeiro de 1925, incluía uma crítica de Borges ao Ulisses, de Joyce, em que o argentino exulta por ser o primeiro aventureiro hispânico a alcançar o livro do irlandês. Nessa edição de Proa é publicada a última passagem de Ulisses, parte do célebre solilóquio de Molly Bloom, naquela que será a primeira tradução – feita por Borges – da obra de Joyce para língua espanhola (WILLIAMSON, 2004, p.129).

Além de colaborações de vário tipo e duração com outras revistas e jornais argentinos, merece assinalar a revista literária Destiempo, editada por Borges e Adolfo Bioy Casares (o financiador do empreendimento…). São dela impressos somente três números, em 1936 e 1937, no segundo dos quais figurava uma fábula de Franz Kafka, constituindo uma das primeiras traduções de um escritor ainda desconhecido do mundo hispânico, mas cuja obra Borges tinha descoberto recentemente (WILLIAMSON, 2004, p.223).

Borges havia conhecido Bioy Casares em 1932, num almoço em casa de Victoria Ocampo (WILLIAMSON, 2004, p.217). Bioy (Buenos Aires, 1914-1999) era oriundo de uma das famílias mais ricas da sociedade argentina, detentora de extensas propriedades rurais, tendo sido em 1935 um dos apenas 37 leitores que compraram um exemplar da edição original de “História Universal da Infâmia”. No inverno desse ano, a amizade entre ambos seria cimentada com umas férias na estância “Rincón Viejo”, que pertencia a Adolfo. Este recorda em entrevista concedida a Edwin Williamson em 1994 (WILLIAMSON, 2004, p.218) que nessa estadia Borges afetara certa intimidade com o mundo rural e suas práticas, mas no momento em que tentara montar um cavalo, resvalara sobre a sela para o lado contrário da montada… Em todo o caso, o seu encanto com a vastidão dos campos argentinos era genuíno e comprovado no entusiasmo com que, numa estadia no Uruguai numa estanciajunto à fronteira com o Brasil, exclamou ao ver um grande grupo de homens a cavalo: “Meu Deus! Trezentos gaúchos!” (SORRENTINO, apud WILLIAMSON, 2004, p.210). As visitas a essas paragens serviriam de matéria para a sua literatura:

“No hay que galopar cuando uno se está acercando a las casas y […] nadie sale a andar a caballo sino para cumplir con una tarea.”

“Evangelio segun Marcos” (BORGES, 1974, p.1068-1072)

Bioy casaria a janeiro de 1940, em cerimónia discreta na igreja paroquial de Las Flores, próxima dessa estância, com Silvina Inocencia Ocampo(Buenos Aires, 1903–1993), irmã de Victoria e uma das contribuintes de textos para Destiempo. Silvina havia estudado pintura em Paris com Fernand Léger e Giorgio de Chirico, onde contara com Italo Calvino, e mais tarde com Simone de Beavuoir (que Victoria lhe apresenta), entre os seus conhecimentos. O casal iria estar ligados a Sur, para cujo número 92, de maio de 1942, Adolfo escreveria a recensão de “O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam”.

 

Fig.3 – “Apontamentos de Artista”. Desenhos de Silvina Ocampo. Fólio da revista Martin Fierro, Junho-Julho de 1927. – GRAU, Cristina, 1997. Págª 48.

 

IV.

O lançamento do primeiro número de Sur, em janeiro de 1931, foi celebrado com uma festa no elegante bairro da Recoleta organizada pela proprietária e patrocinadora da revista, Victoria Ocampo, na sua nova residência modernista (WILLIAMSON, 2004, p.184). As suas preferências estéticas levaram a uma colaboração de Walter Gropius no número inaugural de uma revista que durante a sua existência contaria com colaboradores como Thomas Mann, Thomas Stearns Eliot, Henry Miller ou Octavio Paz.

Ocampo pertencia a uma das mais antigas e ricas famílias argentinas. Quando Filippo Tommaso Marinetti visitou a Argentina por ocasião da reunião que o Pen Club realizou na sua capital entre 5 e 15 de setembro de 1936, chamou-lhe “a mais rica e mais bela mulher em Buenos Aires”, que todavia atacou devido ao seu “snobismo bolchevista” (VÁZQUEZ, 1991, pp. 148-149). As suas origens permitiram-lhe construir uma impressionante rede de conhecimentos no mundo cultural do seu tempo, de entre os quais constaram André Malraux(que publicaria em Sur), Aldous Huxley, Jacques Lacan, Sergéi Eisenstein, Le Corbusier, Nehru, Igor Stravinski – ou Albert Camus e Graham Greene, ambos convidados por Victoria a visitar a Argentina. Por outro lado, havia-se estreado com publicação de sua autoria com a obra De Francesca a Beatrice na prestigiada Revista de Occidente fundada em Madrid no ano anterior por José Ortega y Gasset(que se tornara amigo de Victoria por ocasião de uma visita à Argentina em 1916).

Os talentos de Jorge Luís Borges, bem como os contactos que adquirira nos círculos literários europeus (em particular na vanguarda espanhola), valeram-lhe um convite para integrar a comissão editorial de Sur. Em 1933, Victoria Ocampo fundaría ainda a Editorial Sur, com objetivo de ampliar oportunidades de publicação dos escritores jovens ou de obras estrangeiras em língua espanhola. Além de levar ao prelo vários livros de Borges, publicou André Gide e Virginia Woolf(dos quais Borges traduziu em 1936 respetivamente “Pershepone” e “A room of my own”), Dylan Thomas, Camus, Greene, Huxley ou D.H. Lawrence(por primeira vez na língua espanhola, com alguns textos traduzidos por Leonor Acevedo, mãe de Borges).

 

Fig.4- Comissão editorial de Sur à data do lançamento da revista na residência de Silvina Ocampo, que se encontra de pé com Gómez de la Serna de mão no bolso a seu lado. Borges é o segundo a contar da esquerda e a sua irmã Norah é a segunda mulher desde a esquerda na fila sentada. Oliveiro Girondo acha-se sentado no chão com um charuto na mão. – WILLIAMSON, Edwin. Fig. 13.

 

Na comissão editorial da revista, tinha também assento Oliverio Girondo (Buenos Aires, 1891-1967), poeta argentino de posses que dispunha de contactos no panorama literário da Europa meridional, tendo conhecido Tommaso Marinetti, Gómez de la Serna e Rafael Cansinos-Asséns e vivido largos períodos em Paris. Girondo havia tomado conhecimento na capital francesa da existência de Jorge Luís Borges ao ler uma cópia de “Fervor de Buenos Aires”, que dera alento às suas esperanças de criar uma vanguarda cultural na Argentina. Porém, a capital deste país virá a ser o palco da disputa que os dois homens travarão por Norah Lange (Buenos Aires, 1905-1972), a mulher e escritora que Borges desejou mais ardentemente.

Jorge Luís acercara-se na juventude de modos mais exuberantes de expressão literária. Escrevera mesmo do Café Colonialem Madrid, em conjunto com Guillermo de Torre (que depois casaria com Norah Borges) e outros cinco companheiros uma carta a Tristan Tzara na qual lhe ofereciam a sua “alegre adesão ao Dada”, juntamente com um “poema coletivo” denominado “Esquisse critique”, que haviam composto (Borges, 2001, pp.44-45) no modo semiautomático dos dadaístas, enviado “deste estridente café”. Alguns anos depois, já na Argentina, formou um grupo de jovens intelectuais de apoio à reeleição de Hipólito Yrigoyen dentro do Partido Radical (WILLIAMSON, 2004, p.15). Porém, com o passar dos anos, Borges foi retornando a um registo literariamente mais contido e solipsista, contrastando com a exuberância, riqueza, melhores relações, prestígio literário superior (e bravata…) de Girondo. Este havia alinhado nas fileiras surrealistas de Gómez de la Serna, enquanto Borges perfilhava a causa ultraísta de Cansinos-Asséns. Do mesmo modo como essas duas tertúlias e escritores haviam desenvolvido um antagonismo assumido, assim também Girondo e Borges divergiriam em vários aspetos – intelectuais e pessoais.

Borges publicou “Discusión” em 1932, no mesmo ano em que Oliverio Girondo publicou “Espantapájaros” (espantalhos) – uma miscelânea de poemas prosados e apontamento seminarrativos. Tendo apostado que venderia a totalidade dos seus cinco mil exemplares, engenhou uma promoção do livro que passou à história literária de Buenos Aires:

“He rented a shop on the fashionable calle Florida, engaged several pretty girls as sales assistants, and piled up copies of Espantapájaros in the window. He then got a friend to make a huge papier-maché effigy of a scarecrow, which he dressed up in a top hat, monocle and pipe. This was meant to represent the “Academician”, that is to say, the embodiment of everything Girondo believed to be pedantic and moribund in Argentine culture. He then hired from a funeral parlor an open carriage drawn by six horses and manned by coachmen dressed in the style of the French Revolution. The Academician was mounted on this funeral cortege and driven around the streets of the city center for an entire fortnight. Girondo’s book was sold out within a month” (WILLIAMSON, 2004, p.189).

Girondo acompanha Pablo Neruda durante a estadia do poeta em Buenos Aires, onde este assume o lugar de cônsul da embaixada chilena a 28 de agosto de 1933. Desse período ficou célebre uma noite de farra em que Neruda e Girondo roubaram uma carroça de leite e Norah Lange subiu para a peanha do polícia-sinaleiro na Avenida Leandro N. Alem – uma da mais movimentadas vias de Buenos Aires – de onde mandou parar o trânsito para ceder passagem à galopante viatura furtada, com Oliverio de rédeas nas mãos enquanto o poeta chileno declamava um dos seus mais famosos poemas: “Sucede que me canso de ser hombre…” (de MIGUEL, apud WILLIAMSON, 2004, p.189).

A animação do trio aumenta com a chegada de Federico García Lorca à Argentina, onde esteve entre outubro de 1933 e abril de 1934. Durante esse período, o poeta espanhol foi festejado em todo o lado, incluindo na espetacular celebração do lançamento da novela “45 días y 30 marineros” de Norah Lange, organizada por Girondo. A escritora figurava disfarçada de sereia, rodeada por “marinheiros” num célebre retrato de grupo. Llorca não aparece na fotografia maior da ocasião, na qual, de resto, estão em falta alguns dos 30 marinheiros… Para uma autora jovem, de classe alta da época e solteira, o título da obra constitui já uma considerável ousadia.

 

Fig.5 – Festa de lançamento de “45 dias y 30 marineros”. Buenos Aires, Novembro de 1933. (Oliverio Girondo figura ao centro, com barba e gravata. Pablo Neruda é segundo à esquerda na primeira fila de pé, com o braço esquerdo sobre o ombro de outro “marinheiro”. Previsivelmente, Borges não compareceu à efusão…) – WILLIAMSON, Edwin. Fig. 14

 

Fig.6 – Lançamento de “45 dias y 30 marineros”. Frederico García Lorca, de pele tisnada, figura ao centro da fila, com Pablo Neruda sobre a esquerda. Borges não compareceu à efusão. Possivelmente, não terá sido convidado… – http://elblogdelpetitcolon.com.ar/wp-content/uploads/2012/12/girondo.neruda-lorca.jpg. Acedido em 16.04.2016.

 

V. Conclusões

Previsivelmente, Oliverio Girondo acabará por triunfar sobre o tímido Borges. Mantem durante vários anos uma relação romântica com Norah Lange que culminará em matrimónio, a 16 de julho de 1943. Lange faleceu de um acidente vascular cerebral em 6 de agosto de 1972.

Os Bioy manter-se-iam principais amigos e pontuais colaboradores de Jorge Luís Borges. Victoria Ocampo tornou-se primeiro membro feminino da Academia Argentina de Letras, por votação dos seus pares em junho de 1977.

O desaparecimento de Lorca em 1936, certamente assassinado pelas forças nacionalistas durante a Guerra Civil de Espanha, permanece por esclarecer integralmente.

Em setembro de 1985, Jorge Luís Borges viu-lhe diagnosticado cancro. Rejeitou a realização de quimioterapia e procurou proseguir a sua vida com normalidade enquanto, de forma secreta, tomou a decisão de morrer no estrangeiro, por recear que o seu fim fosse alvo da morbidez da comunicação social do seu país. Em 28 de novembro, partiu sem aviso para a cidade de Genebra que escolhera para morrer. Faleceu a 14 de junho de 1986.

Girondo foi atropelado à saída de um cinema por um automóvel, em 1961. O acidente deixou-o diminuído física e mentalmente. Morreu a 24 de janeiro de 1967. Num momento que traz à memória o conto “Os teólogos”, as poetisas Olga Orozco e Lila Mora y Araujo descreveram, em entrevista de 1994 (WILLIAMSON, 2004, p.368), o modo como Jorge Luís Borges compareceu no velório pelo braço de sua mãe, se dirigiu ao local onde Oliverio jazia, o beijou levemente na testa, e se retirou sem dirigir palavra a ninguém.

 

VI. Publicações de Borges em Sur

A relação de Borges e a revista Sur concretizou-se com a publicação de numerosos artigos de opinião, ensaio e ficção de sua autoria, dos quais se assinalam a “Notícia de los kenningar”, em Sur 6, outono de 1932, pp.202-8 (reimpresso como “As kenningar” em História da Eternidade, 1936) e “El escritor argentino y la tradición”, em Sur 232, Janeiro-Fevereiro de 1955 (reimpresso em 1957 em Discusión). Na revista foi também dado ao prelo o conjunto de contos mais tarde publicado em Borges en Sur:


“Los laberintos policiales y Chesterton”, Sur 10, julho de 1935.

“A Biblioteca Total”, Sur 59, agosto de 1939.

“Ensayo de Imparcialidad”, Sur 61, outono de 1939.

“1941”, Sur 87, dezembro de 1941.

 

“Agradecimiento a la demonstración oferecida por la Socieda Argentina de Escritores”, Sur 129, julho de 1945. “Palabras pronunciadas por Jorge Luís Borges pronunciadas en la comida que le ofrecierob los escritores”, Sur 142, agosto de 1946.

“L’Illusion Comique”, Sur 237, Novembro-Dezembro de 1955.

“Una efusión de Martínez Estrada”, Sur 242, Setembro-Outubro de 1956.

 

Os contos seguintes foram reimpressos pela Editorial Sur em O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam, de 1941, e em Ficções de 1944:


“Pierre Menard, autor del Quijote”, Sur 56, maio de 1939.

“Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, Sur 68, maio de 1940.

“Examen de la obra de Herbert Quain”, Sur 79, abril de 1941.

 

Em Ficções (1944) foram reimpressos:


“La Muerte y la Brújula”, Sur 92, maio de 1942.

“El milagro secreto”, Sur 101, fevereiro de 1943.

“Tema del heróe”, Sur 112, fevereiro de 1944.

“Trés versiones de Judas”, Sur 112, agosto de 1944.

 

Os contos reimpressos em O Aleph , de 1949, foram:


“El muerto”, Sur 145, novembro de 1946.

“La busca de Averroes”, Sur 152, junho de 1947.

“Emma Zunz”, Sur 167, setembro de 1948.

“La escritura del Dios”, Sur 172, fevereiro de 1949.

“Historia del guerrero y de la cautiva”, Sur 175, maio de 1949.


Por fim, o conto “La secta del Fénix”, publicado no número 145 de novembro de 1946 de Sur, foi reimpresso em Discusión (1957).

NOTA: Para a realização do presente artigo, foi de imprescindível utilidade a biografia Borges. A Life, de Edwin Williamson (2004).

 

Bibliografia

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BORGES, Jorge Luís – Obras Completas, Vol. III, 1975 – 1985. Lisboa: Editorial Teorema, 1998. ISBN-10: 972-695-353-7. Edição original na língua espanhola: 1989.

BORGES, Jorge Luís – Obras Completas, Vol. IV, 1975 – 1988. Lisboa: Editorial Teorema, 1999. ISBN-10: 972-695-321-9. Edição original na língua espanhola: 1989.

BORGES, Jorge Luís. Borges en Sur, 1931 – 1980. Buenos Aires: Emecé Editores, 2004. ISBN-10: 950-041-978-5. Edição original: 1999.

BORGES, Jorge Luís – Textos Recobrados, 1931-1955. Barcelona: DeBolsillo, 2011. ISBN-10: 978-84-9989-237-5. Edição original: 2001.

CHATWIN, Bruce – Na Patagónia. Lisboa: Quetzal, 2016. 11ª Edição. ISBN-12: 978-972-564-772-1. Edição original na língua inglesa: 1977.

GRAU, Cristina – Borges y la Arquitetura. Madrid: Ediciones Cátedra, S.A, Ensayos Arte, 1997. ISBN-10: 84-376-0817-1. Edição original na língua espanhola: 1989.

MIGUEL, Maria Esther de – Norah Lange. Barcelona: Planeta, 1991. ISBN-10: 950-742-028-2.

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SORRENTINO, Fernando – Siete conversaciones con Jorge Luís Borges. Buenos Aires: Casa Pardo, 1973.

VÁZQUEZ, Maria Esther – Victoria Ocampo. Barcelona: Planeta, 1991. ISBN-10: 950-742-056-8.

WILLIAMSON, Edwin – Borges: A Life. London: Penguin Books, 2004. ISBN-10: 0-14-303556-8.