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Luca Astorri

Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

Ação como Pesquisa
Duas escolas e duas realidades comparadas: Mathare e Bamburral.

A Organização das Nações Unidas declarou que “o século XXI é o século da Cidade”1, mas ainda não se sabe que tipo de cidade será. Londres, Paris, Berlim, Nova Iorque e Las Vegas foram a base empírica para sociólogos e urbanistas do século XIX, e foram objecto de estudo e de análise para entender os modelos de estrutura para novos assentamentos. Hoje, porém, estamos perante uma nova realidade que ainda não está clara e definida, pois a urbanização maciça que estamos a assistir levou ao surgimento de novas aglomerações2, três quartos deles nos países em desenvolvimento: o centro do mundo não será mais a Europa ou os Estados Unidos.

Estes movimentos de massa da população estão a conduzir a grandes mudanças, em 2050 o número de habitantes na cidade irá duplicar. Esta nova tendência é essencialmente na Ásia e em África, os continentes mais populosos do mundo, onde a taxa de crescimento da população é três ou quatro vezes superior a muitos países do velho continente.

Em muitas megacidades no hemisfério Sul, os chamados assentamentos informais, têm crescido exponencialmente, em oposição à histórica cidade formal: estas cidades são caracterizadas por uma distribuição não homogénea da população, dos serviços e da riqueza.
Quando falamos de favelas, slums, baraccopoli, shantytowns, bidonville, caímos muitas vezes no erro de identificar estas realidades como um todo, como uma extensão sem forma, terra de tijolos e de metal, sem diferenças. Na verdade, cada assentamento tem as suas próprias características e peculiaridades, muitas vezes devido a diferentes tradições culturais, climáticas, ao sistema económico, social e político de cada país e cidade.

É o caso do bairro de lata de Mathare, em Nairóbi, e a favela de Bamburral, em São Paulo, no Brasil. Nairóbi uma cidade de 3,5 milhões de habitantes e apenas 200 bairros de lata,e São Paulo com 11,5 milhões de habitantes e 1600 favelas. De um lado o Brasil, potência económica mundial em ascensão, e do outro lado o Quénia, dividido entre o investimento estrangeiro para grandes infra-estruturas e uma cultura rural extensa a toda a população.

Ainda hoje, o modelo urbano em Nairóbi é baseado no sistema fundado durante o período colonial britânico, caracterizado por ser uma zona de segregação e de fragmentação urbana, social e política. As mesmas áreas que foram alocados para os colonizadores europeus são agora ocupados por condomínios fechados, estâncias de férias, áreas comerciais ou campos de golfe. 60% da população de Nairobi vive em assentamentos informais, ocupando apenas 5% da aglomeração urbana e favelas, áreas degradadas, com poucas infra-estruturas ou perto de áreas altamente poluídas, como no caso de Dandora onde as pessoas vivem em redor do maior aterro sanitário do país.

Mathare é parte deste sistema paralelo à cidade, onde 500 mil pessoas vivem numa área de apenas 1,5 km2.

 

 

O governo de Nairobi não conseguiu lidar com a organização e planeamento deste tipo de assentamentos, muitas vezes com as suas mudanças dinâmicas e uma burocracia pesada e corrupta. Todos os bairros de lata de Nairobi carecem de todos os tipos de serviço e infra-estruturas primárias: o acesso à água potável é insuficiente, se não mesmo totalmente ausente, onde faltam casas-de-banho ligadas a um sistema de esgoto público de forma eficiente, não existe um sistema de recolha e eliminação de resíduos hospitalares, o  HIV atinge 60% da população, o sistema de ensino é responsável por escolas de rua superlotadas e que não são reconhecidas pelo Ministério da Educação.

Nesse contexto de insegurança e de emergência, o planeamento assume um significado totalmente diferente do que é normalmente entendido. O principal contacto não é só a escola e a sua construção, mas toda a comunidade: cada escolha está ligada às necessidades e solicitações, em constante mudança. O projecto é modificado durante a sua construção e muitas soluções devem ser capazes de serem desafiadas e moldarem-se de acordo com as necessidades que surgem de forma gradual. O projecto da Academia WhyNot, desenvolvido em colaboração com a ONG Liveinslums3, é um exemplo de como a concepção de uma nova escola é o instrumento através da implementação de um processo mais vasto de reabilitação de um bairro, e como resposta a uma necessidade principal, como um acto educativo em toda uma comunidade de famílias e pessoas que gravitam em torno da escola. O projecto nasceu a partir de um pedido específico de Dominiq Otieno, director da WNA, mas desenvolveu-se como um projecto de pessoas que fundaram e queriam a escola. Os moradores são os verdadeiros protagonistas destas mudanças, devem ser capazes de participar e viverem o plano sem pensarem que somos nós a desenvolver as suas ideias. Juntos, planeamos o trabalho e ajudamos pois têm uma capacidade inata de se auto-organizarem. Esta capacidade é o motor que os moradores dos bairros de lata têm, em conjunto com a youthgroup, para se organizarem em torno de projectos como jardins, escolas, igrejas, desporto, música e dança. Estas associações de pessoas são uma referência para as várias comunidades nos bairros de lata, e onde começam o seu trabalho: recolha e reciclagem de resíduos, grupos de músicos e actores que organizam festas e espetáculos, etc. Então, torna-se essencial identificar e criar uma rede de colaboradores locais, que se tornam agentes activos nas etapas de implementação do projecto e futuros líderes dos produtos tangíveis e intangíveis.

O processo que levou à realização destes objectivos – neste caso, a construção de uma escola – nunca é linear no seu desenvolvimento, pois é composto por muitas fases e por vezes somos forçados a repensar e rever as escolhas feitas anteriormente. O projecto, apesar da sua imagem estar relacionada com a nova escola, sofreu um longo trabalho interdisciplinar que envolveu não apenas o arquitecto mas, no nosso caso, agrónomos, fotógrafos e sociólogos.

 

 

O projecto da escola é o ponto de partida para compreender quais são as questões críticas e as necessidades da própria comunidade, é o centro de um complexo sistema de relações que seriam difíceis de entender apenas do ponto de vista da arquitetura e do planeamento urbano. O projecto arquitetónico torna-se o “acampamento” para explorar o bairro, é o instrumento através do qual se pode entrar em contacto com as pessoas e com a comunidade e, em seguida, compreender a dinâmica da realidade quotidiana em que o projeto é inserido. Podemos dizer que o projecto arquitetónico é secundário e subordinado a uma visão mais ampla de cooperação e de assistência que cobre áreas tão diversas como a alimentação, a educação, a agricultura urbana, a reciclagem de lixo e parte de um processo de regeneração social e ambiental muito mais complexa que vai além da arquitetura de auto-referência típica.

O papel do arquitecto não é apenas conceber espaços e dar apoio técnico, mas interligado com aspectos humanos e sociais densos e complexos, que distorcem o relacionamento normal entre cliente – arquitecto, porque, neste caso, as personagens são variadas e quase nunca bem delineadas mas com fronteiras esbatidas. O arquitecto dentro da ONG não é uma pessoa, mas um grupo inteiro de profissionais, com capacidades diferentes, que convergem em torno do projecto e enriquecendo os conteúdos que os arquitetos são chamados a dar forma.

O processo que resulta na construção de uma escola, ou de qualquer outro tipo de trabalho, requer o envolvimento e a cooperação da maioria das disciplinas para a análise e compreensão do fenómeno  tão complexo como os bairros de lata, em contraste com o método tradicional de análise proposto para estudar e resolver separadamente os vários aspectos destas realidades.

O arquitecto deve ser capaz de observar e interpretar os sinais que as pessoas dão e estabelecer uma relação de confiança que se baseia numa relação de igualdade em que as razões para o arquitecto não é vivido como uma imposição.

 

 

O projecto, por razões óbvias de tempo e orçamento, foi dividido em três fases.

A primeira fase, lançada em 2011, viu a construção de uma cozinha e a recuperação do aterro lateral da escola para criar um jardim que fornecesse produtos para garantir uma refeição às crianças em idade escolar e proporcionar-lhes uma dieta mais diversificada. Em geral, foi feita uma escola segura, que estava parcialmente coberta com terra, e onde foram construídas as paredes. O enchimento deveria ter sido com sacos reciclados contendo a mesma terra removida, e inicialmente projectado para ser cultivado, mas quando se verificou que as crianças estavam a usar o espaço para brincar e jogar e as pessoas estavam a usar o sítio como local de encontro, mudámos o nosso conceito, criando um parque infantil e um espaço comum para os habitantes.

 

 

A segunda fase, concluída este ano, foi muito mais complexa e articulada: o jardim foi ampliado triplicando a sua área original e construímos uma parede longa de pedras envolta numa malha de metal, pois o jardim foi várias vezes destruído mesmo com as protecções colocadas na margem do rio para prevenir inundações durante o ano. A parte principal foi, no entanto, a demolição da escola já existente, bem como a reconstrução da mesma estrutura usando um enchimento com argila e com uma madeira mais específica, uma técnica comum nos bairros de lata e em muitas aldeias dos habitantes. Só esta intervenção levantou preocupações entre muitas pessoas que vêem a terra como uma matéria-prima extremamente pobre e não muito durável.

 

 

Nós, então, construímos um modelo de parede em escala 1:1 para mostrar a força e as potencialidades desta escolha. Depois de meses de ceticismo, a preparação da terra e escrever sobre uma armação de bambu, usado como um suporte para a terra, tornou-se um momento de diversão e aprendizagem para crianças, pais e professores da escola, as pessoas que estavam de passagem paravam e pediam informações sobre a técnica, o tipo de terra utilizada, e intrigados testavam  com a mão a firmeza e resistência da parede.

 

 

Com as últimas camadas de terra e gesso demonstrámos uma técnica frequentemente utilizada mas pouco vista e com resultados completamente inesperados e aos seus olhos parecia uma estrutura de tijolo. Esta fase foi concluída com a criação de novos bancos com juntas colocadas facilmente pelos próprios habitantes e construção de móveis novos para a cozinha e salas de aula.

A terceira fase vai ver a construção do segundo andar, e a expansão da escola, graças à estrutura das articulações feitas entre os dois pisos será possível remover a cobertura, ligar os novos pilares com aqueles no piso térreo, o primeiro piso e recolocar a cobertura.

 

 

Parafraseando Mike Davis,4 São Paulo é, certamente a City of slums, com mais de 1500 favelas e com mais de 3 milhões de pessoas e que vivem em torno da cidade, é talvez um dos melhores modelos urbanos que representam a história e evolução dos assentamentos informais, bem como prefiguram um exemplo de desenvolvimento urbano para as próximas mega-cidades que serão criadas até 2050. Até aos anos 60, a atenção foi para Brasília como o sistema moderno da cidade fundação, arquitectos, urbanistas e sociólogos olharam apenas sobre o histórico desta cidade, e as favelas começaram a desenvolver-se em torno dos grandes centros urbanos segundo regras não escritas baseadas em auto-governação sem um planeamento orgânico, usando a infra-estrutura da cidade formal como modelo para a sua sobrevivência. Nos anos seguintes, as favelas foram ignoradas e rotuladas como um efeito negativo do rápido processo de urbanização, foi o preço que tiveram de pagar pelo progresso e desenvolvimento da cidade. Apenas no início dos anos 70, começamos a compreender que o fenómeno dos assentamentos informais não era um efeito, mas uma consequência do crescimento muito rápido da população urbana e as favelas eram a única opção para essa parte da população que não podia comprar uma casa, e por isso preferiu viver numa situação precária, apesar da possibilidade de acesso garantido pela própria cidade. Estas considerações foram a base para o primeiro verdadeiro trabalho de iniciativa pública no início dos anos 90, grandes programas que fornecem para a formalização dos bairros informais e a construção de milhares de moradias para as famílias afectadas pelas demolições. Muitos destes projectos, tendo em conta o território pré-existente, tiveram como consequência criar problemas no tecido social das favelas, criando desigualdades entre os que receberam a habitação nova e os que ficavam excluídos. O tipo de habitação foi aplicado da mesma forma em diferentes favelas, sem levar em conta as diferenças, o importante era a deslocalização de dados numéricos. Embora haja ainda muito para ser feito e, por vezes, soluções arquitetónicas surgem mesmo a partir de uma visão positivista e um design modernista, o governo de São Paulo está à procura, nos últimos anos por meio da Secretaria de Habitação Municipal, de intervenções de reabilitação de favelas com um olhar mais atento às necessidades das famílias, um planeamento inclusivo, que visa formalizar apenas os casos de maior perigo e desconforto, com projectos direccionados e diferentes em cada caso.

 

 

É um processo mais participativo em que as pessoas estão envolvidas no processo de reabilitação de favelas. É dentro deste novo cenário e vista sobre a cidade que se pode ler o projecto educativo do jardim para a favela Bamburral. Trata-se de uma pequena intervenção de cooperação com um município que nos convidou a participar em São Paulo Calling, um projecto que tem como objectivo principal analisar o novo debate de propostas para a cidade informal, como goodpractice, um novo tipo de relações em que políticos e designers devem se envolver com as pessoas das áreas degradadas.

 

 

O projecto, neste caso, foi realizado numa escola, a escola primária com a presença dos filhos de Fernando Gracioso Bamburral. O projecto durou algumas semanas pois envolveu crianças e professores do ensino básico na criação de um jardim com plantas medicinais e aromáticas, que não necessitem de muita luz, criando uma viagem sensorial. Depois de um primeiro trabalho, pesado, necessário para a preparação do solo e piscinas, as crianças foram envolvidas no processo de plantar e produzir vasos ornamentais. Mesmo em frente à entrada da escola, usando a reciclagem de paletes de madeira, construímos um jardim vertical que mudou a percepção de deterioração da escola. O objectivo era dar um dispositivo educacional que poderia atrair as crianças para a agricultura e para torná-los orgulhosos e responsáveis pelo desenvolvimento e manutenção possível do projecto.

 

 

Mathare e Bamburral, embora ambas estão em situações actuais de degradação social, em Bamburral, no bairro de Perus, os habitantes têm uma casa com dois níveis, construídos em tijolo, têm um carro, estão ligados a serviços básicos, as estradas são pavimentadas e a área é servida por transportes públicos. A situação é totalmente diferente em Mathare onde as pessoas vivem terrivelmente como em outras favelas de África, onde as “casas” são quartos de 3×3 no solo, em caixas de metal, onde tijolo e cimento são considerados um status social muito elevado . A escola é pública em Bamburral onde não se paga nada e os livros são gratuitos e a cantina oferece 2/3 refeições por dia, enquanto em Mathare uma criança come uma média de 4/5 vezes por semana. Este paralelismo mostra dois exemplos diametralmente opostos de políticas urbanas implementadas pelos governos locais, revelando como no Brasil, graças a um crescimento económico notável, que está a tentar integrar as favelas na cidade e não são entendidos como uns parasitas, enquanto que em África as áreas informais são deliberadamente ignoradas e segregadas, tornando-se a cidade numa cidade, independentes e uma fonte de auto-confiança e auto-regulação.

Mas o que une o Gracioso Fernando de Bamburral e a Academia WhyNot em Mathare é que ambos são locais de agregação para os jovens e suas famílias, são pontos de referência para toda a comunidade.

 

Uma pesquisa-acção. O trabalho de campo, torna-se um método de análise e pesquisa aplicada que ajuda a compreender e completar a dinâmica  que move essas realidades. A análise analítica e estatística dos dados demográficos e económicos são importantes para a compreensão das causas que conduzem à formação de tais assentamentos, mas uma pesquisa e um estudo profundo, ou seja do interior, é essencial para integrar o estudo de sistemas de macro e compreender os efeitos e consequências na vida quotidiana de viver nessas cidades. É através da exploração do espaço, do diálogo com as pessoas que podemos compreender plenamente o significado de pontos anónimos num mapa. A vida nos assentamentos informais é feita de relações de proximidade, micro-economias como  micro-dramas e situações de emergência que dificilmente podem ser capturados por um olhar distante. Temos de ultrapassar as definições que limitam e regulam o urbanismo tradicional, e precisamos separar-nos de uma arquitetura concebida apenas como uma imagem e a um sistema auto-referencial. Teddy Cruz também observa que “como os arquitetos continuam a ser seduzidos pela imagem de informalidade, capturá-lo simplesmente como uma categoria estética” os assentamentos informais são, em vez de uma pequena empresa produtiva auto-gerada e auto-organizada, formando um sistema micro-económico interno da oferta e da procura, que atende às necessidades de toda a população excluídas da vida formal da cidade.

 

Notas

1 Un-Habitat – U.N. Human Settlements Programme, State of the World’s Cities 2008/2009

2 U.N. – Department of Economic and Social Affairs – Population Division, World Urbanizations Prospect: the 2007 Revision, 2008, tab 1.7

3 www.liveinslums.org

4 Davis, Mike – Planet of slums. London: Verso, 2006 ISBN 9781844670222

 

Bibliografia

– Laurence C. Smith – The World in 2050: FourForcesShapingCivilization’sNorthern Future -Dutton Books, 2010. ISBN-13: 978-0525951810

– Rem Koolhaas, Stefano Boeri, SanfordKwinter, Nadia Tazi, Hans-Ulrich Obrist – Mutations – Actar, 2001. ISBN-13: 978-8495273512

– U.N. Habitat – The Challenge of Slums – Global Report on Human Settlements, 2003

– Lotus 143 – Learning from favelas, Editoriale Lotus 2010

http://www.studio-basel.com/projects/nairobi/atlas/

– O urbanismo nas pré-existências territoriais e o compartilhamento de ideias

Sehab& ETH Zürich, Ucla, BerlageInstitute. Sehab. 2012http://www.habisp.inf.br/theke/documentos/publicacoes/urb_preexist_territoriais/index.html