Miguel Teotónio Pereira
Para citação: TEOTÓNIO PEREIRA, Miguel; – Peçam-lhe um Croquis!. Estudo Prévio. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2016. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]
Resumo
Tenho com o meu pai uma relação diária, que todas as manhãs acorda comigo. A casa onde vivo, onde escolhi viver, é do meu pai. É porque a comprou e é porque a moldou e a encheu de imagens e de vida. Último elo de uma cadeia iniciada nos finais de quinhentos. Foi em 1966, num sítio remoto (verdadeiramente, à época), quase inacessível e quase deserto de figuras humanas – Marvão – que os meus pais compraram uma casa com (agora) mais de quatrocentos anos.
Uma casa que acolheu muita gente, das mais variadas proveniências e nas mais variadas circunstâncias, movimento esse, até 1974, apertadamente vigiado; esta casa teve, aliás, a honra de abrir as suas portas à PIDE. E com certeza alguns dos muitos cabelos brancos que hoje enobrecem a cabeça da Sr.ª Joaquina, a do Cuco, tiveram origem nesses sucessos.
Alguma razão teriam os vigias para vigiar: em três ou quatro ocasiões, a casa de Marvão serviu de quartel-general e ponto de partida para expedições clandestinas, e em boa parte pedestres, ao “lado” espanhol, pelos Galegos e pela Fontanheira/Fontañera, onde mancebos portugueses, recusando a fatal convocação militar para uma guerra de regime, iriam conhecer o “primeiro dia do resto das suas vidas”.
Palavras-chave: Pai, Teotónio Pereira, cívico, contracorrente, convicção, desenho e ordem.
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Tenho com o meu pai uma relação diária, que todas as manhãs acorda comigo. A casa onde vivo, onde escolhi viver, é do meu pai. É porque a comprou e é porque a moldou e a encheu de imagens e de vida. Último elo de uma cadeia iniciada nos finais de quinhentos. Foi em 1966, num sítio remoto (verdadeiramente, à época), quase inacessível e quase deserto de figuras humanas – Marvão – que os meus pais compraram uma casa com (agora) mais de quatrocentos anos.
Uma casa que acolheu muita gente, das mais variadas proveniências e nas mais variadas circunstâncias, movimento esse, até 1974, apertadamente vigiado; esta casa teve, aliás, a honra de abrir as suas portas à PIDE. E com certeza alguns dos muitos cabelos brancos que hoje enobrecem a cabeça da Sr.ª Joaquina, a do Cuco, tiveram origem nesses sucessos.
Alguma razão teriam os vigias para vigiar: em três ou quatro ocasiões, a casa de Marvão serviu de quartel-general e ponto de partida para expedições clandestinas, e em boa parte pedestres, ao “lado” espanhol, pelos Galegos e pela Fontanheira/Fontañera, onde mancebos portugueses, recusando a fatal convocação militar para uma guerra de regime, iriam conhecer o “primeiro dia do resto das suas vidas”.
Desses tempos, tempos de férias, passeios, festas de aldeia, canalhadas e namoricos, encontros e despedidas, e também de conspiração, repousa como testemunha, em quatro pesadas gavetas de uma sólida cómoda, uma coleção do Comércio do Funchal, o cor-de-rosa.
Vários traços do carácter do meu pai têm sido salientados, em diversos momentos e de diversas maneiras. Mas há uma sua característica que é muitas vezes esquecida. Refiro-me à sua sobriedade e espírito metódico, mãe e pai das suas proverbiais paciência, perseverança e capacidade de trabalho – e tanto mais insisto neste ponto quanto é certo que, para meu grande desgosto, me vi deserdado de tais atributos. Ele é um amante do desenho e da ordem – na vida e na paisagem; o desenho, suponho eu, que a minha ignorância em tal arte a mais não me permite, que pode ser criativo e até caótico, mas que acaba sempre por unir pontos, perspetivas, ideias – porque lhes fornece uma casa comum, os racionaliza e integra, dá-lhes um discurso; a ordem – não a que é imposta, ou a que serve de enquadramento a restrições à criação, mas a que é construída, testada, a ordem que resulta da necessidade de as coisas, no seu movimento, se “arrumarem”, se relacionarem a partir de referências aceites.
Através de uma vida rica em peripécias, alguns hábitos nunca o abandonaram. Da sesta é um cultor intransigente – a sesta curta e intensa, que pratica sentado. É também um persistente fumador (um mau hábito, neste caso), modalidade que exercita com o que de mais inócuo o mercado tem oferecido: sem filtro, sempre, e marcas como o High-Life (a marca de eleição), o Paris, o Três Vintes, o resistente Português Suave. Acontece que para este mau hábito o meu pai tem uma justificação surpreendente: é que, diz ele, ao fumar não engole, nunca engoliu, o fumo! E esta?
Neste tipo de testemunhos, é corrente os filhos recapitularem as Grandes Lições recebidas dos seus progenitores. Em relação com o meu pai, eu não seria exceção. Dele tenho recebido muitas lições, grandes, e pequenas, e médias: é uma constelação que seria redutor hierarquizar. Mas, por alguma razão obscura, uma houve que no meu espírito ficou impressa com particular nitidez. Éramos, eu e as minhas irmãs, miúdas, não sei precisar as idades; apesar de haver na casa uma empregada, esta estava proibida de fazer as nossas camas, pois essa tarefa competia em exclusivo aos respetivos utentes. A nossa mãe era especialmente zelosa na vigilância ao cumprimento dessa regra. Felizmente para nós, o Grande Aliado estava do nosso lado: a boa Maria, a Grande Cúmplice, a quem não faltavam artes para, volta e meia, nos subtrair a tão árduo trabalho. Pois uma vez houve, me recordo como estando vendo uma fotografia antiga, em que veio o meu pai fiscalizar a execução dessa tarefa, e não deve ter ficado satisfeito, porque me disse, com um ar grave e solene, mais ou menos o seguinte: “Miguel, quando se faz uma coisa, ela deve ser bem-feita. Pode levar mais tempo, mas nessa altura só interessa o que está a ser feito, e interessa que seja bem feito. O resto vem a seguir”.
Como já disse, vá lá eu saber porquê, essa frase do meu pai é recorrente na minha memória.
Vale a pena lembrar o espírito contracorrente que muitas vezes demonstrou. E vale a pena lembrá-lo não porque em si seja uma qualidade, mas pelo que revela de ideias e convicções próprias, ideias e convicções que ele nunca pôs no mercado.
Nascido no seio de uma família da alta burguesia lisboeta com atividades e interesses nos sectores industrial, comercial e financeiro, e que nos anos trinta do século passado era consolidadamente uma família do poder, o meu pai escolheu uma profissão artística, e que era então considerada “menor” – o curso de arquitetura não era um curso superior. Dedicou-se, da forma que se sabe, a essa profissão, secundarizando a gestão do património familiar.
Ao arrepio dos costumes classistas, casou com uma jovem divorciada, de uma família da pequena burguesia sobrevivente, ateia (ele que era católico), independente, com um temperamento que ilustrava à perfeição o oposto do seu e que se movimentava em círculos intelectuais e literários (o seu primeiro marido foi Jaime Salazar Sampaio e dava-se, entre outros, com Luiz Pacheco). Se não me engano, foi no seu primeiro emprego, no Estado, que o meu pai conheceu essa jovem escriturária. Um duplo embate (o do mercado de trabalho, da economia e da realidade social e o da minha mãe) escancarou as portas já entreabertas para a irrupção da sua terceira grande dissidência: a ideológica.
Se na guerra civil espanhola ainda marchou a Sevilha, em expedições de apoio às tropas franquistas organizadas pela Mocidade Portuguesa, no final da guerra mundial era já um homem em rotura com o próprio lastro ideológico, a quem cada vez mais se evidenciava a falta de conexão entre a realidade e a propaganda oficial.
Era então o início de um caminho de empenhamento cívico que é conhecido, e que muitas vezes deve ter sido duramente solitário.
Finalmente, last but not least, uma recomendação: se alguém se achar perdido, que lhe peça um
croquis, um mapa, uma orientação! Com um bocado de papel e uma lapiseira, ele faz milagres.
Miguel Teotónio Pereira