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Raquel Vicente

raquel_glv@hotmail.com

Universidade Autónoma de Lisboa,Portugal

 

Para citação: VICENTE, Raquel  – Atlas do Sado. Processo de recriação de uma infraestrutura férrea desativada. Estudo Prévio 13. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2018. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/12.1

Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

Resumo

A perceção de um lugar é determinada por vários fatores. À primeira vista, olhamos para as partes que o definem enquanto elementos individuais, diferentes uns dos outros. Somente quando são agrupados lado a lado como fragmentos, revelam o que os relaciona indiretamente. É através de uma interpretação experimental e coletiva do território do rio Sado que o presente trabalho se desenvolve.
Alcácer do Sal apresenta-se hoje, dentro do cenário nacional, como um lugar em esquecimento, apesar de todas as qualidades que constituem o seu território. Como construir uma nova possibilidade para a cidade e como potencializar o seu significado foram as primeiras questões levantadas. É a partir da descoberta de, aproximadamente, quarenta quilómetros de uma infraestrutura férrea parcialmente descativada que o processo se inicia. O trabalho “Atlas do Sado”, resulta de duas condições distintas: da situação real desta infraestrutura e do processo de descoberta do território onde se implanta. Estes dois momentos, aparentemente distintos, deram lugar ao programa proposto. Este programa pretende ser uma possibilidade de resposta à questão colocada e não uma verdade absoluta: construir o lugar para um atlas de produção coletiva, em constante transformação e que funcione como espelho de um território.
Por ATLAS, entende-se o lugar construído na estação de Alcácer do Sal e o processo de construção de um pensamento sobre um território.

Palavras-Chave: território; atlas; infraestrutura; perceção; Alcácer do Sal

 

Sobre o Atlas do Sado

Figura 1 – Alcácer do Sal. VICENTE, Raquel 2015

 

O trabalho “ATLAS DO SADO: processo de recriação de uma infraestrutura férrea obsoleta” tem como ambição representar algo infinito e é, como o nome indica, um processo que não terminou. Contudo, teve um início: Alcácer do Sal e o seu rio, o Sado.

 

Apesar de operar sobre uma infraestrutura férrea, o Atlas do Sado não é um trabalho sobre comboios. Não pretende esgotar-se na questão da desativação nem relatar, apenas, realidades atuais e passadas. Este trabalho interessa-se mais por encontrar, justificar e exemplificar a sua posição perante o problema encontrado, não deixando de considerar necessário abordar o tema do mundo ferroviário em contexto nacional. Este mundo não se limita ao que foi e pode traduzir-se, agora, em inúmeros novos significados. Este que se propõe é um deles: construir uma interface de conhecimento sobre o território do Sado. A linha férrea atravessa uma variedade de lugares que são, precisamente, caraterizadores deste território.

 

Pretende-se, à partida, que seja claro que o Atlas é programa e é processo. É construção física e construção mental. É coletivo, mas resulta da memória individual de cada um. A Linha do Vale do Sado é o caminho disponível para esta reflexão.

 

Que novo sentido atribuir a um troço de uma infraestrutura férrea, a entrar em processo de desativação e que não será novamente incluída no trajeto da Linha do Sul na qual se inseria?

A organização do trabalho segue o ritmo com que foi feito: primeiro procurou-se uma realidade, depois a sua recriação e representação e, por fim, a sua construção.

 

Divide-se em quatro momentos:

 

– O processo de construção, desativação e recriação da infraestrutura férrea, onde se aborda o problema encontrado. É a partir da possível desativação total de um troço da linha de caminhos de ferro do Sul que servia a cidade de Alcácer do Sal, que se propõe um novo significado, quer para a infraestrutura quer para a paisagem que a acompanha. Atribui-se ainda especial importância à interpretação e representação individual deste território, materializando-a num atlas de imagens. Para isto, fez-se uma reflexão sobre a evolução do termo atlas e sobre a sua utilização desde o século XVI – altura em que começou a ser utilizado.

 

– O atlas, a partir do qual se conhece o território do Sado é um trabalho coletivo que parte da contribuição de várias pessoas e pretende ser uma resenha do programa que se propõe instalar na estação de Alcácer do Sal. Inicialmente imaginado como um depósito do território, este programa assumiu-se, com o desenvolvimento do trabalho, como um atlas, por querer estar em constante transformação e não ser estático. Este atlas não se prende com preconceitos artísticos ou formais. É a construção visual de um processo de investigação e trabalho, não pretendendo ser um produto final.

 

– O movimento associado à linha e aos ritmos da paisagem que a acompanha onde se faz uma análise deste território a partir da estratégia territorial proposta.

 

– E a plataforma-interface onde se propõe uma intervenção na estação ferroviária de Alcácer do Sal a partir da qual se transforma este lugar num novo espaço público da cidade. A par da requalificação dos edifícios que constituem a estação, propõem-se a construção de uma nova peça de referência para o território. A estação, associada à linha em estudo, é a interface que interliga as várias partes do sistema proposto.

 

Apesar de separados, os capítulos completam-se uns aos outros e todos eles têm um objetivo comum: representar um território, o território do Sado.

É este o algo infinito.

 

 

Figura 2 – Atlas. SÁNCHEZ, Luís Miguel Bugallo, 2005. http://www.newworldencyclopedia.org/entry/File:Atlas_Santiago_ Toural_GFDL.jpg

 

[atlas] modernamente a palavra atlas significa um conjunto de cartas geográficas ou outros mapas de qualquer espécie – históricos, científicos, demográficos, económicos, etc. – reunidos sistematicamente em volume (…). Possivelmente de origem fenícia, a palavra aparece pela primeira vez em Homero (Odisseia). Através dos autores gregos e latinos foi transmitida a fábula do gigante Atlas que sobre os ombros suportava o universo (…). Daí derivou o nome da vértebra cervical, que suporta o peso a cabeça como Atlas suportava o mundo. O mais antigo atlas geográfico de que há memória é o que estava junto à “Geografia” do célebre astrónomo e cartógrafo alexandrino Cláudio Ptolomeu (c. 90-130) (…) Embora Abraão Ortélio tivesse publicado em 1570 o “Theatrum Orbis Terrarum”, a que se poderia chamar o primeiro Atlas moderno, foi Gerardo Mercator quem pela primeira vez usou a palavra no seu Atlas “sive cosmographicae meditationes de fabrica mundi et fabricati figura”, em cuja bela portada figura o gigante mitológico suportando o globo terráqueo.”

(s.a.) (1964). Atlas. Em enciclopédia Luso-Brasileira da Cultura (Vol. 2). Lisboa: Verbo.

 

PROCESSO

1 – Portugal

26 de outubro de 1856.

O progresso chega a território nacional com a inauguração da primeira viagem de comboio. Trinta e seis quilómetros depois de partir de Santa Apolónia, a carruagem real “D. Maria Pia” chegava ao Carregado. Demorou quarenta minutos.

 

A construção da ferrovia teve uma enorme importância para o desenvolvimento do país a partir da segunda metade do século XIX, altura em que este já se encontrava bastante atrasado comparativamente aos restantes países da Europa. Os caminhos de ferro foram fundamentais na ocupação do território e, principalmente, na aproximação das pessoas e dos lugares mais isolados do país. As possibilidades que proporcionaram não foram, portanto, meramente económicas. Para além do desenvolvimento industrial e agrícola que estimulam a produção de riqueza, o comboio possibilitava cada vez mais a circulação de pessoas, novas ideias e informação. Mais do que outro meio de transporte, o mundo passou a ter disponível uma nova velocidade. Era este o progresso.

 

“Entre 1852 e 1893 Portugal dotou-se de mais de dois mil quilómetros de caminhos-de-ferro, que alteraram a forma como se viajava no Reino. Os portugueses, que antes apenas circulavam nos rios, junto à costa ou onde a ausência de obstáculos o permitia, passaram a dispor de um novo meio de locomoção que lhes encurtava as distâncias e aumentava o tempo disponível.”(Pereira, 2010, p. 25)

 

A velocidade alterou, igualmente, a forma como se olhava e representava o mundo. Revelou novas paisagens, cidades distantes e até mesmo estrangeiras que eram desconhecidas da grande maioria porque, até aqui, o caminho era um obstáculo. A ferrovia reinventou este caminho e foi conquistando cada vez mais o território. Foram criadas infraestruturas que ultrapassavam barreiras topográficas, estações-interfaces de produtos e pessoas, incríveis pontos de vida social, onde o encontro e desencontro diário marcavam um novo ritmo. Os futuristas referem as locomotivas como “o valor da nova atitude perante a vida e a arte”.(RTP, 2011) e é, precisamente, com a chegada de um comboio a uma estação que os irmãos Lumière apresentaram o cinema ao mundo (“L’Arrivée d’un train à La Ciotat”A chegada de um comboio à estação de Ciotat – em 1896).

 

O mundo ferroviário inspirou as artes e o pensamento moderno, deixando importantes reflexões na literatura, nas artes plásticas, no cinema, mas também na arquitetura, com a construção de um património físico invejável(Ramalho & Cardoso, 2004, p. 229).

 

Apesar da velocidade ser o grande tema da transição do século XIX para o XX, era nos pontos mais estáticos do mundo ferroviário que as viagens revelavam o seu grande esplendor: as estações de comboio. Construídas para receber um grande número de pessoas em movimento, eram a porta de entrada das cidades e, em certos casos, eram mesmo a porta de entrada no país. A estes novos espaços públicos das cidades que, apesar de na grande maioria, estarem deslocados do centro urbano, era atribuído um significado especial. O cenário hoje é diferente.

 

O declínio da via férrea em detrimento das vias automóveis e dos aeroportos aconteceu um pouco por todo o mundo e, em Portugal, o processo de desativação desta infraestrutura continua. Dispersa pelo território português, a ferrovia deixa marcas profundas, quer na paisagem quer na memória de quem a viveu. Se as primeiras reações foram de descrença, em que apenas “com o passar dos tempos, iam-se desacreditando as notícias que diziam que quem «não viajasse à janela dos compartimentos morreria abafado e quem viajasse mais de meia hora ficaria em estado sonâmbulo”(Teixeira, 1956), hoje em dia não há quem não fale do mundo ferroviário com alguma saudade.

 

Por razões económicas e de minimização de custos, muitos ramais e, em alguns casos, linhas na sua totalidade, deixaram de poder responder à sua função original. Para além do abandono das infraestruturas que as servem, como pontes, túneis (em muitos casos verdadeiros exemplares), estações e apeadeiros, esta desativação traduz-se, igualmente, no consequente despovoamento dos lugares que deixaram de estar servidos pelo comboio. Apesar de ser a partir dos anos 80 que o sistema de transportes ferroviário entra em decadência, em parte devido à massificação do automóvel, só no início do século XXI se começaram a pensar soluções para o aproveitamento da via férrea desativada. A resposta demorou e, em duas décadas, muitas das linhas e estações estavam em elevado estado de degradação. “Estes acontecimentos somam até aos nossos dias mais de 800 quilómetros de vias férreas desativadas num país que totaliza mais de 3600 quilómetros.”(Cunha, 2012, p. 2). Foi, portanto, necessário reinventar o significado deste património.

 

A par do desmantelamento de muitos quilómetros de via, foram criadas soluções que, em parceria com as câmaras municipais, procuravam devolver este espaço de trânsito às populações, respeitando a ideia de desenvolvimento sustentável e ecológico. A criação de corredores verdes, pedonais e cicláveis no lugar do canal ferroviário foi dada como resposta à situação da maioria dos ramais e a alguns troços de linhas de norte a sul de Portugal. São exemplos disso, a norte do país, a Ecopista do Minho, inaugurada em 2004, a Ecopista do Tâmega, apenas concluída a sua totalidade em 2013, a Ecopista do Sabor, inaugurada em 2006 e a sul as Ecopistas dos ramais de Mora, Moura, Montemor, Vila Viçosa, Portalegre, Montijo e Reguengos.

 

Tal como qualquer outra decisão que altere por completo a função original de um determinado objeto corre riscos, independentemente da sua escala, também a transformação das centenas de quilómetros de via férrea em caminhos de pé posto ou alcatroados teve resultados divergentes. Se no caso da Ecopista do Minho “a sua concretização revelou-se um caso de sucesso, comprovado pela forte adesão popular, não só de Portugal como do outro lado do rio Minho”(Costa, Pimentel, Gambóias, Balegas, & Silva, 2009, p. 21), o cenário atual da Linha do Sabor é diferente onde “a vegetação vai tomando conta da ecopista”(Belo, Caminhos-de-ferro a pé, 2014), por não existir uma população interessada pelo seu usufruto.As Ecopistas falham neste aspeto. As soluções têm que se adequar aos lugares específicos e não a uma ideia de plano que generaliza as qualidades locais de cada região, população e situação demográfica.

 

Apesar de nem sempre funcionarem, é necessário compreender em que situação o processo de conversão foi iniciado. À data da criação das ecopistas, como referido anteriormente, grande parte delas estariam já numa situação irreversível relativamente à sua função original (transportar sobre carris volumes em movimento). Os carris desapareceram, quer pela vontade do homem quer pela vontade da natureza. No entanto, para que o mesmo não se repita no futuro, é necessário procurar, hoje, nestes lugares específicos, estratégias que voltem a valorizar quer as regiões quer os caminhos de ferro que com elas se relacionam, estratégias que olhem esta infraestrutura como um conjunto de linhas, plataformas e edifícios e não peças individuais e estratégias de intervenções que procurem restabelecer novos significados.

 

As linhas de caminho de ferro têm, intrinsecamente, qualidades que promovem o desenvolvimento das regiões que percorrem. Quando o comboio circulava, a sua função original era ligar pessoas e lugares. Agora, como refere Duarte Belo em relação à linha do Tua, “este itinerário continua a ser extremamente interessante para quem o percorrer, não apenas por lhe estar associado um traçado ferroviário, mas porque atravessa uma multiplicidade de lugares que, no seu conjunto, espelham o carácter de uma região.” (Belo, A Linha do Tua, 2013, p. 4)

 

Paralelamente à questão do canal ferroviário desativado, a situação das estações de caminhos de ferro e apeadeiros merecem igual atenção, apesar da resposta ao seu encerramento poder ser mais rápida. Existe uma espécie de cadência de fases até ao seu encerramento total. Primeiro deixaram de ser precisos recursos humanos a operarem (e a viverem!) nas estações, tornando-as alvos de vandalismo e degradação por serem lugares vazios de pessoas e vida; de seguida, nos casos onde há encerramento de serviços de passageiros, as estações reduzem-se a lugares esquecidos pela população, fechando portas; por fim, e apenas nos casos mais extremos, a própria linha é desativada fazendo com que o controlo e visionamento destas estações de torne mais difícil.

 

No entanto, são vários os casos de intervenções que souberam responder de forma positiva a estas situações. Em Marvão-Beirã, às portas de Espanha, parte dos edifícios da estação foram convertidos num espaço de hotelaria e procura-se, no futuro, conseguir criar um lugar de dinamização cultural da região em colaboração com a estação mais próxima, Castelo de Vide (também ela desativada). Na Estação da Curia, inserida na linha do Norte que faz a ligação Porto-Lisboa (mas sem paragem), instalou-se a sede da Rota da Bairrada, promovendo a cultura e os produtos locais.

 

Contrariamente a estes exemplos, há estações para as quais os programas que nelas se inseriram não valorizaram o edificado nem serviram um propósito local (ou até mesmo nacional) e as respostas que foram dadas ao longo do tempo, aliadas ao descuido das intervenções realizadas, apenas contribuíram para a total descaracterização e destruição do seu património.

 

A Estação Alcácer do Sal e a Linha do Vale do Sado, na qual se insere, são um exemplo interessante de estudo. Pela insuficiência das intervenções que recebeu à possibilidade de uma total desativação, este é o momento ideal para construir um novo pensamento sobre este caso específico. Compreender que património é este de que falamos, assim como conhecer a paisagem cultural que o valoriza, são temas de reflexão que farão parte deste trabalho.

Figuras 3, 4 e 5 – Linha do Vale do sado. VICENTE, Raquel 2015

 

2 – Linha do vale do Sado

“Se os primórdios da construção ferroviária ao sul do Tejo não houvessem sido conduzidos um tanto ao acaso (facto compreensível na hesitação dos primeiros tempos) é coisa segura que esta linha teria sido das primeiras a ter execução, tal a sua significação e importância, sob todos os pontos de vista. O arguto Sousa Brandão já em 1877 visionava a sua vantagem; de facto, o encurtamento do caminho para o Algarve, a própria facilidade oferecida pelo terreno (exceção ligeira da passagem do esteiro da Marateca), as riquezas florestais, agrícolas e mineiras da região interessada, tudo são fortes motivos que aconselhavam a sua pronta realização.” (Torres, 1931)

 

A Linha do Sul, na qual se insere a antiga Linha do Vale do Sado, é considerada a segunda linha de caminhos de ferro mais importante do país, a seguir à do Norte (Lisboa-Porto). O troço norte que chega a Alcácer foi inaugurado em 1920 e 5 anos depois a construção da ponte sobre o Sado permitiu fazer a ligação ao sul do país. Foi, portanto, a ponte entre Lisboa e Setúbal, terminando em Tunes. Se no passado esta linha teve a sua importância enquanto principal meio de transporte de diversas populações, são várias as razões para que encontremos, hoje em dia, parte dela com o serviço limitado. Existem dois momentos chave que justificam a situação atual, quer do troço em estudo quer da Estação de Alcácer do Sal e que são reflexos de tantas outras linhas abandonadas ou em risco de abandono por todo o país.

Em 2011, de forma a reduzir custos, a Comboios de Portugal (CP) eliminou do percurso de intercidades Lisboa-Faro as Estações de Setúbal e Alcácer do Sal, levando ao total encerramento dos serviços da estação.

 

A implantação sinuosa da linha ao longo do território que abrange o Sado e que passa na cidade de Alcácer do Sal, que chegou a provocar acidentes, bloqueando por completo o acesso ao sul do país, levou a que, em 2006, se começasse a pensar numa alternativa para este troço. Assim surge a Variante de Alcácer (2010), que estabelece uma alternativa rápida entre os quilómetros 59 e 94 da Linha do Sul, com uma extensão de 29 quilómetros. Desta forma, é de esperar que os 40 quilómetros de via antiga que apenas servem, esporadicamente, para o transporte de mercadorias, sejam, no futuro, completamente desativados. Já em pleno isolamento encontram-se as estações e apeadeiros inseridos neste troço: a norte, a estação de Monte-Novo-Palma, de seguida a estação de Alcácer do Sal e a sul o apeadeiro de Vale do Guizo. Encontram-se, no geral, entaipadas ou muito arruinadas.

 

Pensar uma alternativa para uma linha onde ainda circulam comboios não é desejar a sua desativação. É, pelo contrário, pensar nas possibilidades que esta infraestrutura possibilita sem que o seu desmantelamento tenha início.

 

Pensar numa estratégia para este caso em particular leva-nos a conhecer as suas relações com a paisagem produtiva, caracterizadora de toda a sua envolvente, com o rio, com as poucas salinas que ainda sobrevivem, com os arrozais e com as pessoas que recordam o comboio a parar.

 

A Linha do Vale do Sado segue o rio a norte até ao momento que encontra Alcácer do Sal. A partir daqui os trajetos seguem destinos diferentes. A linha atravessa quilómetros de pinhais e montados de sobro, em direção a sul. O rio segue até à Serra da Vigia, a montante. Está implantada, maioritariamente, em zonas completamente desabitadas, mas existem exceções. Em Monte Novo, no Bairro da Quintinha ou em Forno da Cal, a população aproxima-se, cada vez mais, do caminho ferroviário. Sem receios, plantam-se hortas ao longo da linha e criam-se passagens de nível para terrenos disponíveis. Entre outros, o ritmo lento e quase inexistente deste troço é pautado, todos os anos, pelas rotas migratórias de milhares de aves que ali nidificam.

 

A Linha do Vale do Sado é mais um exemplo da importância que os caminhos de ferro têm no desenvolvimento das cidades, mesmo já não respondendo à sua função original. Implantadas, normalmente, fora dos núcleos urbanos têm a capacidade de revelar paisagens difíceis de encontrar na maioria das restantes vias de comunicação. Resta encontrar uma razão para que, a partir desta infraestrutura obsoleta, se consiga voltar a pôr no mapa a cidade de Alcácer do Sal.

 

Figuras 6 e 7 – Linha do Vale do sado. VICENTE, Raquel 2015

 

3 – Porquê construir um atlas do território?

A vontade de desenvolver um processo de trocas entre o território e os seus observadores surgiu das circunstâncias atuais da cidade de Alcácer do Sal.

 

Desmotivada pelo seu constante despovoamento, a cidade não encontra razões que consigam gerar uma fixação de pessoas no seu território. Se em tempos era servida pelo comboio, hoje já não o é. E se a vista do viaduto da estrada nacional que segue para o Algarve trazia motivos para uma paragem na cidade, com a construção da autoestrada, Alcácer do Sal saiu dos destinos da maioria dos portugueses. Por outro lado, a escassez de transportes públicos que a liguem ao resto do país dificulta, de igual forma, a chegada de turistas, quer estrangeiros quer nacionais. O esquecimento é visível de diferentes perspetivas: do grande número de edifícios abandonados na cidade e nas aldeias que vivem (viviam) este lugar, ao encerramento de alguns edifícios de carácter público, como é o caso do cineteatro, chegamos aos lugares que arquivam a memória deste território – por exemplo, o arquivo histórico e arqueológico, a biblioteca municipal e o museu Pedro Nunes. Apesar da vontade das pessoas que neles trabalham e que se encarregam de descobrir o seu passado, não são criados resultados, os quais, quer a nível nacional quer a nível local, incentivem a cidade a voltar a ter o seu lugar na memória das pessoas. É, precisamente, esta memória que o atlas quer revelar.

 

Foi a partir do caminho que a via férrea constrói que se conheceu e surgiu, durante este trabalho, o fascínio pelas paisagens que o rio Sado consegue alcançar. Se durante o seu funcionamento trouxe consigo em cada viagem o progresso referido anteriormente, é agora, no seu processo contínuo de desativação, que se propõe pensar (já) uma nova solução, quer para o caminho de ferro, quer para a cidade de Alcácer do Sal, para Monte Novo, para o Bairro da Quintinha, Lezíria, Barrosinha… para os lugares que olham o Sado.

 

O processo assume, nesta parte do capítulo, o seu remate final: depois da construção e da desativação, chegamos ao momento da recriação desta antiga via férrea.

 

Pretende-se, com a construção do lugar para um atlas de produção coletiva, em constante transformação e que funcione como espelho de um território, conhecer, revelar e transformar a forma como olhamos, daqui para frente, o lugar que o rio Sado ocupa. A sua construção física resulta da requalificação da antiga estação de Alcácer do Sal (interface do circuito fechado que se propõe), atribuindo-lhe qualidades que permitam transformar este lugar esquecido num novo espaço público, coletivo e de referência para o território. O objetivo não se limita à construção de um lugar-depósito de objetos, de carácter quase arquivista, considerando-se de maior importância o processo de criação deste conteúdo e o cruzamento dos vários atores ao longo dele.

Para além de um repositório de memórias, das várias arqueologias e paisagens deste território, pretende-se que o atlas seja capaz de representar o presente e de se transformar ao longo do tempo.

 

Mas o que define, então, um atlas?

 

“Chamamos atlas, em geografia, ao conjunto de mapas compilados em forma de livro, facilmente manejável. Poetas e artistas utilizaram com frequência esta forma, desviando-a da sua lógica de utilização: Lewis Carrol com o seu mapa vazio, Arthur Rimbaud e o seu atlas recortado em pedaços, Marcel Broodtharaers e o seu minúsculo e irónico atlas. Não esquecendo a forma habitual – embora por vezes não menos poética – de coleccionar cartões postais para reinventar as viagens mais longínquas à escala de uma simples mesa de trabalho… ou de jogo.” (Didi-Huberman, Atlas: Cómo llevar el mundo a cuestas?, 2011, p. 322)[1]

 

Assume-se, de uma perspetiva geral e facilmente reconhecível, que um atlas é um conjunto de objetos que, ao serem interligados, formam um conhecimento específico sobre um determinado tema. Num atlas, o observador é atraído por imagens individuais e interpreta-as. Depois procura as que com ela se relacionam e, por fazerem parte de um grande sistema de significados, compreende de uma forma mais clara (e, talvez, sempre pessoal) o que cada pormenor representa.

 

A ideia mais comum e aquela que está na sua origem é a de Atlas Mundo onde, a partir de uma representação geográfica, se constrói a imagem que temos hoje do mundo que partilhamos. É a partir desta ideia de partilha que se propõe, neste caso específico, a criação de um lugar que funcione como motor gerador de conhecimento sobre este mesmo território, ativado pela reflexão de diferentes pessoas. O atlas assume, então, proporções que se refletem no modo como habitamos a cidade, a paisagem, como olhamos um lugar, não nos limitando a ser meros voyeurs.

 

A utilização do termo “Atlas” evoluiu desde a sua primeira representação. Em todos os momentos em que foi construído, desde o século XVI à contemporaneidade, nunca se distanciou da ideia de servir a produção de conhecimento. Mais do que procurar um tipo de construção de formas, os atlas serviram (e servem) para compilar e organizar um pensamento, independentemente da área em estudo. Pretende-se, de seguida, fazer uma digressão pela evolução do termo e das diferentes formas de apropriação por parte de astrónomos, geógrafos, artistas e arquitetos, tendo como ponto de partida o frontispício do Atlas de Gerardo Mercator[2], de 1595.

 

“Em cento e sete mapas dedicava dezasseis às ilhas britânicas, dezasseis à França e à Suíça, nove à Bélgica e Holanda, vinte e sete aos países germânicos, vinte e dois à Itália e à península balcânica e apenas três aos continentes extra-europeus, além de um mapa-mundo em abertura. Esta proporção correspondia sem dúvida a um determinado nível de conhecimento geográfico, mas exprimia também uma graduação do interesse: o globo terrestre, sustentado pelo mitológico personagem, tinha o seu núcleo essencial na Europa.” (Tucci, 1984, p. 131)

 

Acredita-se que é a partir deste livro de cartografia que o termo começa a ser utilizado com frequência para denominar este tipo de manuscritos. Já no século XIX, começa a ser utilizado para qualquer compilação de investigações em suporte de livro e sob diferentes campos científicos (anatomia, ciências, geografia, astronomia, biologia). Em Digressão, é a partir da cartografia marítima e do trabalho de dois autores do século XX e XXI, Aby Warburg e Gerhard Richter, que se exemplifica a complexidade da construção de um atlas. O capítulo termina com o Atlas do Sado.

 


Figuras 8 a 11 – Atlas de Fernão Vaz Dourado DOURADO, Fernão Vaz, 1571. http://digitarq.arquivos.pt/details?id=4162624

 

4 – Digressão

“Existe um poder fictício na cartografia e na representação espacial. Mesmo o mapa aparentemente mais analítico é, em última análise, sempre uma leitura interpretativa do que pretende descrever – tanto uma redução como uma construção do real.”(Guġġer & Costa, 2014, p. 34)[3]

 

Na construção de um atlas, as imagens e as peças visuais produzidas desempenham um papel fundamental. São sempre interpretações críticas do passado ou do presente, representadas a partir de diferentes suportes e são resultado de um processo de construção muitas vezes inconsciente. É sobre os diferentes processos de criação que o presente capítulo pretende discursar, mais do que pormenorizar teoricamente os vários exemplos/autores escolhidos. A construção de um atlas não segue nenhum estilo ou regra. O seu objetivo é “fazer entender a ligação que não é a ligação baseada no similar, mas na conexão secreta entre duas imagens diferentes. O Atlas é uma ferramenta muito mais visual do que qualquer arquivo. O Atlas é um trabalho de montagem em que se unem tempos distintos. É um choque. Não se baseia em colar coisas bonitas na parede. É um processo de trabalho.”(Didi-Huberman,“Atlas, Entrevista a Georges Didi-Huberman”)[4]

 

Como referido, a representação cartográfica desenvolvida a partir do século XVI, impulsionada pelas navegações marítimas, foi o primeiro conjunto de documentos aos quais o termo atlas foi atribuído.[5]Esta cartografia, para além de servir fins práticos como a navegação e o comércio quinhentista, ou de prova de uma determinada posição económica e alcance na esfera mundial, representava a visão do novo mundo, dos lugares que se descobriam, através de um “amontoado de informações de boa fonte e de elementos fantásticos incontrolados…”. (Tucci, 1984, p. 131)

 

Com o aperfeiçoamento e o desenvolvimento técnico ao longo dos séculos, a cartografia deixou de ser meramente sugestiva e interpretativa. Alcançou a precisão e rigor necessários e passou a ser vista como uma ciência que explora minuciosamente a superfície terrestre, representando-a faseadamente e através de vários temas (políticos, económicos, climáticos, etc.).

 

No entanto, não deixando de servir um processo que pretende sempre, a partir da combinação de dados adquiridos alcançar novas verdades, “uma actividade desta natureza e desta amplitude não podia jamais confinar-se a ela própria: as consequências, que eram inevitáveis, viriam a desfazer lendas, a efabular outras, e sobretudo, a dilatar a visão que o Homem possuía sobre o planeta em que vivia.” (XVII Exposição Europeia de Arte, 1983, p. 45)

 

É dentro desta ideia de evolução e contradição a um pressuposto que aparece, já no século XX, a investigação mais importante do historiador alemão Aby Warburg[6]. A concretização do Atlas Mnemosyne surge num contexto político e social completamente diferente das representações cartográficas do século XVI e formula-se, igualmente, sob uma área de estudo diferente. Têm, no entanto, princípios idênticos: constroem-se a partir da combinação de vários elementos e o conhecimento que produzem resulta sempre do seu confronto.

 

Segundo Christopher D. Johnson, o Atlas Mnemosyne não se afasta completamente da ideia de cartografia, reinventando-a para um novo objectivo: “Transformando a noção cartográfica de um “atlas” (que surgiu pela primeira vez no Atlas de Mercator de 1595 “sive cosmographicae meditationes de fabrica mundi et fabricati figura”), a partir dos seus estudos anteriores sobre a história da astrologia e dos esforços da humanidade na orientação num universo hostil (orientierung), Warburg utiliza-o para unir material cosmográfico e histórico-artístico num novo conceito.” (Johnson, 2012, p. 10)[7]

 

Como o nome indica, Mnemosyne ou Bilderatlas Mnemosyne (nome original), foi uma investigação realizada entre 1924 e 1929 que tinha como principais objetos de estudo a memória e a imagem. Procurou, com estas ferramentas, e a partir de uma “franca repulsa pela história de arte que se orienta para um paradigma estetizante” (Cantinho, p. 3), mapear novos caminhos para o seu estudo. Com Atlas Mnemosyne, Aby Warburg concretizou a sua proposta. Ao longo de cinco anos e em sessenta e três painéis de madeira de 150×200 cm forrados com pano preto, o atlas de Aby Warburg construiu-se a partir de um processo de recolha, acumulação e combinação de imagens a preto e branco que pretendia atribuir novas formas de interpretar a história da arte.

 

O tema central do estudo do Atlas Mnemosyne é o Renascimento, mas o conjunto de imagens que cruza é representado por vários tempos da história – desde a antiga Babilónia até à República de Weimar. É do vazio que resulta da combinação das várias imagens que surgem novos significados e é o contexto em que se inserem que se torna decisivo, mais do que a individualidade de cada uma. Os painéis eram, por sua vez, organizados e numerados segundo temas sequenciais.

 

“As imagens são relacionadas por analogias reforçando um caráter de programa aberto, na medida em que se tornam recetivas e influenciadas pelo sentido das outras, possibilitando assim o deslocamento incessante das imagens, de painel em painel, por movimentos de troca, repetição e variação.” (Sá, 2012, p. 24)

 

Para além de dispor as imagens em painéis e interpretar os significados que daí derivavam, a memória de cada distribuição era igualmente importante enquanto processo de pensamento e, por isso, fotografada.

 

A data da sua morte coincide com o fim da produção do atlas. No entanto, considera-se que esta investigação tem um carácter inconclusivo, por ter como ambição representar algo que se transforma ao longo do tempo (tal como se espera no Atlas do Sado). Foi, no entanto, uma obra fascinante para os historiadores de arte a partir do século XX e continua, atualmente, a servir como referência para inúmeros artistas e arquitetos. Foram vários os que produziram trabalhos a partir desta “forma visual de conhecimento”. Entre eles, Gerhard Richter[8], seu conterrâneo. É interessante como o século XX, apesar de toda a destruição que protagonizou para o mundo em geral, em particular para a Alemanha, foi capaz de produzir novos pensamentos e impulsionou, sem dúvida, a produção artística. Se no caso de Aby Warburg que, curiosamente, começou o seu Atlas Mnemosyne depois de estar internado numa clinica onde recuperou de um colapso psicótico devido ao início da Primeira Guerra Mundial (chegou mesmo a ser considerado esquizofrénico), foi a situação geopolítica da Alemanha da segunda metade do século XX que impulsionou este arquivamento de “memórias”, no caso de Richter.

 

O século XX representa para o país a destruição dramática de uma memória histórica, tanto patrimonial como identitária e é dentro desta questão que surge este caso.

 

A construção deste arquivo pessoal, iniciada em 1962, surge depois do artista deixar a sua cidade natal, Dresden, para se fixar na Alemanha ocidental. Poderia chamar-se “Woher komme ich” (“de onde sou?” ou “qual é a minha origem?”)[9]por ser, precisamente, uma procura pessoal do artista num momento em que a identidade de um país inteiro se dividida e era ignorada.

 

Figura 12 a 17 – Atlas Mnemosyne – WARBURG, Aby, 1924-29. http://warburg.library.cornell.edu/about/mnemosyne-themes

 

A necessidade desta experiência mnemónica surge, então, da repressão de um passado muito recente.

 

O atlas de Richter é um trabalho que representa um processo de criação mais individual, quando comparado ao Atlas Mnemosyne. Neste caso, o que o constitui são peças que resultam de uma produção íntima, inicialmente relacionadas com memórias familiares (às quais não teríamos acesso numa exposição tradicional), mas também com processos de desenvolvimento projetual. A complementar a questão da “crise de memória” do pós-Segunda Guerra Mundial, surge outro fator de importância para a sua criação: a crescente produção fotográfica da época. A obra produzida por Richter baseia-se diretamente na relação entre a fotografia e a pintura. As fotografias são ferramentas de estudo para a produção de quadros. A fotografia é parte de uma procura e, por isso, não existe um ponto de vista ou uma fotografia mais válida que outra:

 

“Vejo inúmeras paisagens, fotografo apenas 1 em 100 000, pinto apenas 1 em 100 daquelas que fotografo. Estou, portanto, à procura de algo específico e a partir daí concluo que sei o que quero.” (Richter, Elger, & Obrist, Text. Writings, Interviews and Letters. 1961-2007, 2009, p. 163)[10]

 

O elemento fotográfico está presente ao longo de todo o atlas e sempre apresentado em séries. É, possivelmente, o tema central da sua construção.

 

A partir de 1962, Richter começou a usar fotografias como ferramenta para as suas pinturas, arquivando-as posteriormente. Estas fotografias surgem dos seus álbuns pessoas e de amigos, assim como de recortes de revistas e jornais que colecionou. Ao contrário do habitual, Gerhard Richter exibe as suas memórias ao público. No entanto, este atlas não é apenas uma representação biográfica. É um processo de produção criativa e imaginária.

 

Em 2012, à data da exposição em Dresden, o atlas contava com 802 painéis. Apesar de ter começado a guardar fotografias e recortes na década de 60, apenas a partir de 1970 começou a organizá-las em suporte de papel. Tal como no Atlas Mnemosyne, cada painel ou, em alguns casos, conjuntos de painéis, abordam temas diferentes.

 

Como refere Helmut Friedel em relação à organização da exposição de Dresden, “Há surpresas, mudanças de ritmos, tempos diferentes e eu acho que é isso o Atlas provoca.”  (Richter, Elger, & Friedel, Gerhard Richter: Atlas, 2012)[11]

 

 

 

Figura 18 a 20 – Atlas Gerhard Richter. RICHTER, Gerhard, 1962.

https://www.gerhard-richter.com/en/art/atlas

 

5 – Atlas do Sado

“É apenas documentação. Não, não é uma peça de arte, não penso assim. Poderia ser interessante, mas…” (Richter, Elger, & Obrist, 2009)[12]

 

É ao seu atlas que Gerhard Richter se refere na citação anterior, mas poderia ser ao Atlas do Sado. É desta despreocupação em criar peças finalizadas que o atlas se constrói.

Pretende-se, deste modo, criar novos significados para as várias partes que produzem este pensamento: da forma como se PERCORRE e se tem acesso a lugares desconhecidos, ao CONTEÚDO deste atlas, às PESSOAS que o constroem e que nele trabalham, e à construção do LUGAR em si.

 

O “Atlas do Sado” desenvolve-se no limite entre a interpretação individual de cada um e a história de uma região, de carácter mais tradicional, recuperando situações e acontecimentos aparentemente banais e desconexos que habitam na memória de quem os viveu. Contribuímos, portanto, para o seu conhecimento. E, apesar de contribuirmos com a nossa interpretação e experiência pessoal, o resultado será sempre a favor da memória e do conhecimento coletivo.

 

Enumeram-se, de seguida, e de forma sucinta, as qualidades deste novo lugar do território, o lugar do atlas do sado.

 

O lugar de produção.

O lugar de produção quer ser o reflexo das várias possibilidades que este território representa. Recebe diferentes formas de estar, trabalhar, habitar e diferentes tempos de permanência. Quer ser um lugar para o coletivo e para o individual, simultaneamente. Constroem-se ao longo do território e da via férrea, mas afirma-se na estação de Alcácer do Sal onde assume um carácter público e coletivo que se relaciona com o aglomerado urbano que o rodeia. Chama-se ATLAS ao novo espaço da estação por receber, em si, um acervo do território em constante transformação. [13]

 

O objeto produzido.

“A imagem de uma procura e a procura de uma imagem. Uma representação de Portugal é um trabalho em permanente construção, em progresso evolutivo, quer corresponda a uma síntese, como aquela que aqui se apresenta, quer seja um projeto individual ao longo de um período mais ou menos longo. Um dos méritos desta exposição é o de juntar, num mesmo espaço, uma multiplicidade dinâmica de olhares, de reflexões sobre a natureza da paisagem e do povoamento do solo português.” (Belo, Cidade Infinita, 2015)

 

É a partir da “…articulação de imagens recolhidas, de produção própria, que se referem à nossa memória colectiva ou que emanam da memória individual, mas que são, sempre, o resultado de um processo de criação” (Sardo, 2000, p. 15), que o seguinte capítulo, “Atlas colectivo do Sado”, se desenvolve. Com a recolha de referências que fui encontrando ao longo dos últimos doze meses e com o conjunto de peças que alguns colegas partilharam comigo, o próximo capítulo pretende, ainda, ser uma espécie de resenha de um possível acervo que, hoje, em 2016, encontraríamos neste ATLAS. A ambição deste lugar que se constrói terá a capacidade para acolher peças de vários suportes: imagens, fotografias, textos, filmes, investigações, pinturas, peças arqueológicas, escultóricas, instalações, banco de sementes, de flora, etc. Não se procura valorizar mais a propriedade individual do objeto do que a experiência individual de cada pessoa, que surgirá depois do confronto das várias representações que constituem o acervo – o acervo é a exposição.

 

É no espírito que está toda a arte. Não é na peça. Somos nós que inventamos a experiência da arte.” (Murdock, 1990, p. 17)

 

As pessoas que o constroem.

Mais uma vez, é da variação de disciplinas existentes que se desenvolve esta ideia. Desta forma, conclui-se que este lugar pode receber pessoas de várias áreas do pensamento, investigação, várias faixas etárias e, pela sua proximidade com a cidade de Alcácer do Sal, pode receber os seus próprios residentes. É do seu confronto diário destas pessoas que este espaço ganha vida.

 

A forma como se percorre.

A forma como se percorre não é ditada pelo projeto “Atlas do Sado”. É a partir da liberdade individual que se (re)conhece o território. No entanto, propõem-se atribuir novas qualidades e funções à linha de caminho de ferro, a partir de uma estratégia territorial, que revalidará, dentro de um sistema fechado, o movimento inerente a esta infraestrutura.

 

 

Figura 21 e 22 – Atlas Gerhard Richter. RICHTER, Gerhard, 1962.

https://www.gerhard-richter.com/en/art/atlas

 

Conclusão

Se perdermos os caminhos de ferro não estamos a perder apenas um valioso recurso, ao qual a sua reactivação ou requalificação seriam intoleravelmente caras. Devemos reconhecer que nos esqueceríamos de como viver colectivamente. Se deitarmos fora as estações de comboios e as linhas que nos conduzem a elas, vamos estar a deitar fora a nossa memória de como viver seguramente em comunidade.(Judt, 2011, p. 7)[14]

 

A minha curiosidade pelo mundo ferroviário existe há muito tempo. Talvez por ter uma família que, muito saudosamente, o recorda e talvez porque as histórias de tempos passados, quando são contadas, passam-se sempre em diferentes lugares de Portugal. O meu avô era ferroviário, chefe de estação e, como tal, não viveu apenas numa cidade ou numa região. Percorreu toda a linha da Beira Alta e com ele levou a sua família. Abordei, portanto, o tema com especial interesse. No entanto, esta vontade de repensar o mundo ferroviário deveria pertencer a todos. Tal como refere Tony Judt, mais do que um sistema de transporte, este universo representa a forma como partilhamos o mundo que habitamos, seja esta partilha feita em movimento, em viagem, nas estações, nos lugares públicos de permanência e de trânsito.

 

Tem-se encontrado soluções interessantes e com sucesso para requalificar as estações de caminhos de ferro inseridas em núcleos urbanos, como a estação do Cais do Sodré ou do Rossio e, futuramente, a estação de Santa Apolónia. Apesar de num contexto muito diferente das estações em meio rural, como a Estação de Alcácer do Sal, estes casos deveriam servir de exemplo (não obrigatoriamente programático) e motivação para futuras intervenções no interior do país.

 

Devolver a estação de caminhos de ferro à cidade e população, transformando-a, novamente, num lugar de intercâmbio e convívio social foi o principal objetivo. Para isso construiu-se um pensamento que o justificasse e incluísse a linha que nos transporta até ela. Se no século XVI as representações cartográficas representavam o mundo que se conhecia através das navegações marítimas propõem-se, em 2016, construir a partir da linha férrea uma reflexão profunda sobre este território. À medida que o conhecimento sobre o território do Sado aumenta e é necessário espaço para o acumular, imagina-se que a torre que se propõe construir na estação possa transformar-se, também ela, fisicamente, crescendo em altura.

 

Apresenta-se, por fim, o mapa que deu origem a todo o trabalho por representar a evolução do pensamento sobre este lugar. Da mesma forma que foi informando cada vez mais, encara agora a responsabilidade de servir como base para futuras reflexões sobre este território.

 

 

Figura 23 – Atlas do Sado. VICENTE, Raquel, 2018.

 

Notas

[1] Llamamos atlas, en geografía, al conjunto de mapas compilados en forma, fácilmente manejable, de libro. Poetas y artistas han utilizado con frecuencia esta forma desviándola de su lógica utilitaria: Lewis Carroll y su mapa vacío, Arthur Rimbaud y su atlas recortado en trozos, Marcel Broodtharaers y su minúsculo e irónico Atlas. Sin olvidar la manera más usual – aunque a veces no menos poética – de colecionar tarjetas postales para reinventar los viajes más lejanos a escala de una simples mesa de trabajo… o de juego.”

 

[2]Gerhard Kremer (1512-1594), foi um geógrafo e conhecido cartógrafo flamengo. Latinizou o seu nome para Gerardus Mercator ou Gerardo Mercator quando entrou na universidade. É conhecido pela importância dos seus mapas terrestres que impulsionaram a forma como se representava o mundo.

 

[3]“There is a fictional power in cartography and spatial representation. Even the most seemingly analytical map is, ultimately, always an interpretative reading of what it purports to describe – both a reduction and a construction of the real.”

 

[4]“The aim of an atlas is to make you understand the link, which is not the link of similarity but the secret link between two different images. The atlas is a more visual tool than any archive of course. An atlas is a work of montage in which different times come together. It’s a shock. It’s not only a question of hanging beautiful things on the wall. It’s about the working process.”

 

[5]Segundo Jacques Le Goff, “A memória colectiva e a sua forma científica, a história, aplicam-se a dois tipos de materiais: os documentos e os monumentos. (…) O termo latino documentum, derivado de docere ‘ensinar’ evoluiu para o significado de ‘prova’ (…)”. (Goff, 1984, p. 95)

[6]Historiador de arte alemão. Abraham Moritz Warburg, Hamburgo, 1866-1929.

 

[7]“Transforming the cartographic notion of an “atlas” (which made its first appearance in Mercator’s 1595 “atlas sive cosmographicae meditations de fabrica mundi et fabricati figura”) from his earlier studies of the history of astrology and humanity’s efforts at Orientierung (orientation) in a hostile cosmos, Warburg makes it serve as a conceit to yoke together cosmographical and art-historical material.”

 

[8]Gerhard Richter é um artista plástico alemão. Nasceu em Dresden em 1932 onde viveu cerca de dezasseis anos sob o regime soviético até se fixar em Düsseldorf.

[9]Helmut Friedel em entrevista sobre a exposição realizada em 2012. “Gerhard Richter: Atlas”, Kunsthalle no Lipsiusbau em Dresden de fevereiro de 2012 a abril de 2012. Helmut Friedel é director da Städtische Galerie Lenbachhaus e do Kunstbau em Munique.

 

[10]“I see countless landscapes, photograph barely 1 in 100,000, and paint barely 1 in 100 of those that I photograph. I am therefore seeking something quite specific; from this I conclude that I know what I want.”

[11]Helmut Friedel em entrevista sobre a exposição realizada em 2012. “Gerhard Richter: Atlas”

“There are surprises, changing rhythms, different tempos and this is what I think Atlas marks”

[12]“It is just documentation. No, it is not a work of art, I don’t think so. It might be interesting, but …”

 

[13]Não se fala deste lugar como um museu por se considerarem limitadas as suas características programáticas, em relação ao que se quer propor. Este não será um lugar de visita de um dia. Também não se “sacraliza” o seu conteúdo. Por outro lado, é um lugar onde a criação/produção e a exposição se cruzam.

 

[14]“If we lose the railways we shall not just have lost a valuable practical asset whose replacement or recovery would be intolerably expensive. We shall have acknowledged that we have forgotten how to live collectively. If we throw away the railway stations and the lines leading to them, we shall be throwing away our memory of how to live the confident civic life.”

 

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Biografia

Raquel Vicente

Concluíu o Mestrado em Arquitetura pela Universidade Autónoma de Lisboa (2016) com a tese “Atlas do Sado: processo de recriação de uma infraestrutura férrea desativada”, trabalho desenvolvido sob orientação dos arquitetos Inês Lobo e Joaquim Moreno. Desde 2016, é professora assistente do International Master’s Programme of European Architecture e colabora com o CEACT/UAL (Centro de Estudos de Arquitectura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa) no projeto de investigação Atlas da Avenida Almirante Reis. Atualmente, trabalha no atelier João Luís Carrilho da Graça.