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Ricardo Carvalho

rcarvalho@autonoma.pt
Universidade Autónoma de Lisboa, Portugal.

 

Para citação: CARVALHO, Ricardo – Os Quinze Anos Vermelhos de Viena, de Eve Brau. Estudo Prévio ZERO. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2012, p. 41-43. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net].

Creative Commons, licence CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

Os Quinze Anos Vermelhos de Viena, de Eve Blau

 

 

Em 1932, doze anos depois do início do processo de construção de habitação coletiva que seria conhecido como Viena Vermelha, uma exposição de arquitetura marca o fim de uma época. Comissariada pelo arquiteto Josef Frank (1885-1967) a exposição Werkbund Siedlung mostrava arquitetura doméstica produzida por arquitetos comprometidos ideologicamente com o tema da habitação nas cidades pós-industriais austríacas. Mas aquilo que tinha marcado a Viena Vermelha, na sua componente de construir cidade, dava agora lugar a uma exposição sobre a arquitetura dos edifícios. E a Viena Vermelha não consistia na unidade mas sim no conjunto. O livro de Eve Blau The Architecture of Red Vienna 1919-1934, publicado pelo MIT, em 1999, descreve a analisa detalhadamente este momento singular de união entre politica e arquitetura.

 

Voltemos a 1919, um ano depois do fim da Primeira Guerra Mundial. A Áustria conhecia um momento turbulento na sua definição intrínseca enquanto país – um país que fazia uma transição rápida de uma cultura rural, marcada por divisões regionais, para uma outra marcada pelo proletariado urbano concentrado em Viena. Com ascensão dos Sociais Democratas ao poder local em Viena, e em conflito com um poder central mais conservador, foi possível usar a capital para pôr em prática as políticas urbanas necessárias à fixação desse novo proletariado. É o movimento social que a autora, Eve Blau, apelida de passagem da Volkskultur à Arbeiterkultur, ou seja, a passagem de uma cultura tradicional assente no passado rural para uma outra urbana, emblemática do século XX – a do trabalhador.

 

Para se compreender o impacto desta estratégia política que envolveu a arquitetura temos que recorrer aos números. A Viena Vermelha realojou um décimo da população da cidade. Foram construídos quatrocentos edifícios de habitação coletiva que incluíam parcialmente creches, bibliotecas de bairro, clínicas dentárias, lavandarias coletivas, teatros, lojas de cooperativas, instalações desportivas e generosos espaços públicos ajardinados. Aquilo que foi pedido aos arquitetos foi a construção de uma sociedade urbana proletária capaz de se rever na sua própria cultura através da arquitetura. A resposta dos arquitetos – foram cerca de duzentos os arquitetos envolvidos a convite do programa – consistiu genericamente em blocos habitacionais de média dimensão, incorporados em quarteirões da cidade ou em áreas de expansão da mesma, mas sem qualquer rutura com o ambiente ou morfologia urbana pré-existente. A revolução urbana da Viena Vermelha foi feita de um modo amável. Os marxistas austríacos chamaram-lhe a “Revolução pela Reforma”.

 

Parte dos arquitetos envolvidos no programa pertenciam aos círculos das chamadas vanguardas radicais, e, embora se revelassem críticos em relação ao tipo de arquitetura da Viena Vermelha, acabaram por participar. As críticas dos arquitetos da vanguarda, segundo Eve Blau, residiam sobretudo na génese da arquitetura a adotar. Ou seja, a crítica ia na direção da defesa pela opção de abordagens urbanas mais experimentais e de eventual rutura com a cidade histórica.

 

As vanguardas alemãs, que exerciam grande influência sobre a Europa Central, tinham desenvolvido um conceito de bairro-jardim operário, chamado siedlung, herdeiro das cidades-jardins inglesas do final de oitocentos, que associaram à pré-fabricação a expressão plástica de coberturas planas e depuração formal. Os siedlungen pressuponham ainda uma outra ambição, aquela da autonomia social e morfológica face à metrópole, ou seja, a possibilidade de uma associação a um sistema industrial ou agrário. Foi exatamente isso que o arquiteto Walter Gropius (1883-1969) tentou pôr em prática nas proximidades da Bauhaus de Dessau, a escola da qual foi o primeiro diretor. Tratava-se de um conjunto habitacional, chamado Törten, para agricultores onde o único edifício singular era o da cooperativa e centro cívico.

 

Mas a Viena Vermelha não coincidiu com este modelo puro da vanguarda, foi antes um híbrido de várias matrizes. E aqui reside a sua especificidade face à arquitetura do Movimento Moderno. O quarteirão urbano foi o modelo mais usado, em prol dos bairros periféricos constituídos por siedlungen modernos. E a recusa da pré-fabricação prendia-se com a tentativa de reduzir os níveis de desemprego. Com o recurso a técnicas construtivas tradicionais e standartizando apenas portas, janelas e alguns acabamentos foi possível gerar emprego massificado na construção civil e, também, destinatários das casas capazes de pagar as rendas. Deste modo a Viena Vermelha não produziu dois edifícios iguais.

 

O mais emblemático dos projetos de habitação da Viena Vermelha é o conjunto Karl Marx Hof, que poderíamos traduzir por Quarteirão Karl Marx. Desenhado pelo arquiteto Karl Ehn (1886-1959), um discípulo de Otto Wagner (1841-1918), reconhecido arquiteto e urbanista vienense. O projeto foi construído entre 1926 e 1933 e assume-se como a afirmação monumental da cultura proletária através de um conjunto com um quilómetro de comprimento. As entradas, que convidavam a cidade a participar do sistema, consistem em grandes vãos em arco, deixando antever os jardins no interior. No interior dispõem-se os pavilhões dedicados aos equipamentos. Os topos são torres de expressão defensiva que atribuem carga simbólica ao conjunto.

 

Da sua ambição urbana, feita de mil e trezentos apartamentos com unidades mínimas de habitação (com áreas de quarenta metros quadrados, em média), ressalta a afirmação do espaço público com vastos jardins e áreas de estar, mas também a afirmação de uma vida em comunidade apoiada por uma biblioteca e teatro de bairro, escola pré-primária e lavandarias. Não por acaso foram os seus habitantes o símbolo dos resistentes à viragem ideológica pró-nazi de Viena. Em 1934 a Viena Vermelha barricou-se quinze dias no edifício, enquanto os disparos dos canhões tentavam derrubar o espírito coletivista do Karl Marx Hof.

 

BLAUN, Eve [1999], The Architecture of Red Vienna 1919-1934, The MIT Press, Cambridge, Massachusetts.