Rui Mendes
Arquiteto, doutorando no IST
Para citação: Mendes, Rui – Terrain Vague, de Ignasi de Sola-Morales. Estudo Prévio 1. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2012, p. 112-114. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net].
TERRAIN VAGUE *
Para uma renovada cartografia do espaço urbano
“Habituámo-nos a julgar a obra à luz da sua adequação face ao aparato; talvez seja tempo de começar a julgar o aparato à luz da sua adequação face à obra” George Brecht, 1930
TERRAIN, extensão de solo de limites imprecisos, de caráter urbano e estranhos à eficácia produtiva da cidade.
VAGUE, vago como ausência de uso, mas em simultâneo como potência do porvir, espectante e disponível, onde as questões identitárias invisíveis contêm algum espectro de revelação.
É sobretudo em torno do trabalho de alguns fotógrafos que, nos anos 1970, dirigem o olhar sobre os espaços urbanos em falência, tornados obsoletos, desativados e esquecidos no curso da expansão urbana do pós-2ªguerra mundial, que o ensaio de Sola-Morales (1995) constrói uma nova cartografia do espaço urbano. O fascínio por estes “novos” espaços é exponenciado na designação TERRAIN VAGUE, e no que ela contém de múltiplos significados e ambiguidades. Indicia uma dupla condição: a estranheza perante espaços que se encontram fora do domínio genérico de uma ocupação reconhecível e, portanto, apaziguadora e conformadora; o sentido de liberdade e de crítica no interior “mental” da cidade, um espaço alternativo de fuga e impunidade para a construção de outras identidades.
Sola-Morales convoca para a sua reflexão o pensamento de vários autores que lhe permitem consolidar uma caracterização do sujeito urbano face a estes territórios de indefinição. Na época da estranheza perante o mundo (Marquand citado por Sola-Morales) as imagens fotográficas destes TERRAIN VAGUE têm o poder de se converter em indícios, como “índices mais do que icones” (Kraus, 1985), que fazem eclodir problemas éticos e estéticos no interior da vida social contemporânea.
Concentrando a problemática na resposta a estes espaços imprecisos, Sola-Morales convida em simultâneo a um olhar renovado sobre a cidade consolidada a partir dos espaços que ficaram de fora de uma determinada ideia de urbanidade.
A posição assumida neste ensaio, com quase 20, anos inaugura uma nova e complexa sensibilidade que conduz a um questionamento dos valores hegemónicos (que Sola-Morales associa à herança moderna de matriz iluminista), que se vêm revelando inadequados em muitas intervenções nos interstícios e espaços residuais na cidade existente.
Em contraponto ao modo como a arquitetura tem vindo a produzir critérios de uniformização genérica, refém de modelos que assentam essencialmente em edificar qualquer “vazio”, são sobretudo artistas e cineastas que têm revelado entusiasmo por estes espaços de conotações negativas, ativando noções de pertença através da preservação e registo da sua memória.
Os espaços marginais, em estado transitório, que resistem às estratégias de poder e à imposição de identidades, transportam, na sua frágil condição, características que permitem sustentar elos de ligação e de continuidade dos vários tempos de transformação da cidade. Contêm ainda a possibilidade de encontrar para a arquitetura um desempenho que não esteja exclusivamente do lado da produção da forma, do ótico e do figurativo. Em conclusão, Sola-Morales sublinha esta ideia como uma procura dos sistemas de forças em lugar das formas, do encaixe em lugar do autónomo, do rizomático em lugar do planeado.
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Desde a sua primeira publicação1 em 1995, que os Terrenos Vagos das cidades ganharam outra condição de visibilidade e motivaram reflexões várias. Retomando experiências anteriores como a Derive (Debord, 1956) (que instala através do quotidiano e do banal uma experiência de intervenção urbana, como materialização de um modo alternativo de habitar a cidade) e propostas mais recentes como as “Áreas de impunidade” (Ábalos e Herreros, 2002), o contexto atual propicia a releitura destes princípios de ação, agora a partir de uma segunda natureza de ativação: a construção de apropriações mais plurais com programas e usos em mutação, para uma recriação permanente do espaço urbano. Construir o espaço construído.2
1 A primeira apresentação do texto do arquiteto catalão Ignasi de Sola-Morales teve lugar num seminário académico no Canadian Centre for Architecture, em Montereal no Canadá, em 1994. Enquadrado numa série de conferencias intituladas ANYONE, as ANY conferences decorreram na última década do séc.XX, à razão de uma por ano, subordinadas a temas que tiveram como base as 10 composições da palavra ANY no dicionário inglês. ANYPLACE foi a quarta conferência, em 1994, e cujos trabalhos vieram a ser publicados em 1995. Em 2002, é publicada numa coletânea de textos sob o tema TERRITÓRIOS pela editora Gustavo Gili. É o primeiro volume de um conjunto de 5 livros que reúnem os textos mais relevantes de Ignasi de Sola-Morales, publicados entre 2002 e 2006.
2 Mendes, Rui. Projeto de Doutoramento no IST 2011
Bibliografia
Sola-Morales (1995), Terrain Vague, em Territórios, Editorial Gustavo Gili, SA, Barcelona, 2002 Kraus, Rosalind, The originality of Avant-Garde and Other Modernist Myths, MIT Press 1985
Guy Debord (1956) Theory of the Dérive. Les Lèvres Nues #9 (Paris, November 1956). Reprinted in Internationale Situationniste #2 (Paris, December 1958).
Ábalos, Inaki e Herreros, Juan, (1997) áreas de impunidade. Actar, Barcelona 2000