Entrevista
PARTE 1
PARTE 2
Filipa Ramalhete
framalhete@autonoma.pt
Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa (CEACT/UAL), Portugal | Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa (CICS.Nova)
João Caria Lopes
joaocarialopes@gmail.com
Atelier BASE | Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa (CEACT/UAL), Portugal
Para citação: RAMALHETE, Filipa; LOPES, João Caria – Entrevista à Marusa Zorec. Estudo Prévio 13. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2018. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://repositorio.ual.pt/handle/11144/2995
É com enorme prazer que temos como nosso convidado o arquiteto e professor Telmo Cruz. Seja bem-vindo. Queríamos começar por pedir que nos contasse o seu percurso académico, que nos falasses dos professores e que exercícios que o marcaram.
Antes de mais, queria agradecer a oportunidade de estar aqui. Como sou bastante reservado, tenho muitas reticências a estas exposições públicas, mas foi uma oportunidade de ouvir todas as entrevistas dos meus colegas. E fiquei muito impressionado! O que mais pressão me fez, porque são todos excecionais!
Desde que me lembro, sempre quis ser arquiteto. Venho de uma terra pequena, Seia, e a primeira memória que tenho é de estar no meu quarto – tínhamos uma televisão pequenina e eu ia para lá ver o Canal 2 – e lembro-me de estar a ver um programa em que apareceu a igreja de Ronchamp, do Le Corbusier, e pensar “É mesmo isto que eu quero!”. E, daí para a frente, nunca hesitei. O que é estranho… aos 12 ou 13 anos eu sabia lá o que queria! Mas foi o que aconteceu. Assim que tive oportunidade, saí de Seia. Passei do Liceu de Seia, que era um liceu pequeno, para o Liceu José Falcão, em Coimbra, e não estava nada preparado para aquilo! Fui viver sozinho – tinha 16 anos – para uma pensão, mesmo em cima da Praça da República, onde todos os estudantes se cruzavam. A viver na pensão tinha jogadores de futebol da Académica de Coimbra, que estavam a estudar engenharia, e aquilo acabou por se tornar numa outra família, da qual eu era o mais miúdo de todos. Lá fiz o liceu, e depois candidatei-me para os cursos de arquitetura de Lisboa. Tinha a sorte de ter boas notas, não tive muito stress para entrar na faculdade.
Quando entrámos na faculdade, vinha com aquele regime do liceu, com tarefas, testes; eu sempre tive boas notas e era muito bom aluno, cumpria tudo, mas na faculdade era um bocado diferente. Só o contacto com o piso das Belas-Artes, com aquela maior informalidade, era tudo muito distinto… Isto era no Chiado, e eu, que já estava contente quando tinha ido para Coimbra, agora tinha vindo para Lisboa!
Não te ocorreu ir para o Porto?
Na altura não. Tinha família em Lisboa. E não me ocorreu. Não fazia ideia do que era uma escola de arquitetura, quanto mais se havia diferenças entre Lisboa e Porto! Isso agora parece-nos muito evidente, mas, na altura, não fazia ideia. Vim para Lisboa, o meu irmão também veio, e ficámos num quarto alugado, como os estudantes todos faziam.
Em relação ao curso, que expectativas tinhas?
Eu era muito miúdo. Tinha aquelas ilusões de que íamos salvar o mundo e fazer casas para todos! Mas, apesar de a escola não ser muito entusiasmante, não ser nada de extraordinário, tive sorte. Como ouvi as outras entrevistas todas, fiquei com aquela visão polarizada de que toda a gente adorou a escola do Porto e toda a gente odiou a escola de Lisboa, mas eu fui apanhando alguns professores que tinham muita paixão pela arquitetura, professores muito jovens. No 5ºano, a escolha pela turma do João Luís Carrilho da Graça já foi uma escolha muito consciente, sabia que era aquilo que queria acompanhar. No 4º ano, fui ver os exames (do 5ºano) das turmas do Carrilho e do (Manuel) Graça Dias – que eram as duas turmas que entusiasmavam a escola – com a Maximina, que é hoje a minha mulher. Tínhamos escolhido o Carrilho, estávamos entusiasmados com aquela forma muito dura, muito direta, de chegar a soluções muito presas a condições do território. E os exercícios eram sempre fantásticos, era tudo extremamente sedutor, as maquetes brancas, era tudo muito entusiasmante. Escolhemo-lo, e o Carrilho não nos desiludiu em nada!
Ainda trabalhei, depois do curso, em 1991, um ano com o João Luís Carrilho da Graça, num projeto teórico, o VALIS. E tudo aquilo que na escola era já muito intenso sobre Lisboa, que se sentia que era um método que estava a crescer – ele próprio ainda estava a construir tudo isto – depois tinha uma repercussão profissional, absolutamente idêntica, e foi muito entusiasmante. O atelier do João Luís, na altura, já tinha muito trabalho, estavam a fazer o projeto de execução da Pousada do Crato, mas eu estava numa sala ao fundo, com uma libanesa e com o Pedro Gadanho, que estava a fazer o estágio académico. Estávamos naquela condição, meio isolada, a continuar, no meio profissional, um projeto que estava a sair diretamente de um exercício de escola sobre Lisboa. E era extraordinário! Tal como foi extraordinário, há pouco tempo, entrar na exposição da Garagem do CCB e ver uma maquete do VALIS, que eu não via há mais de 20 anos! Nós ouvimos, hoje em dia as conferências do João Luís e ele sofisticou imenso o discurso! Agora, começa o discurso em Manhattan… Mas percebemos que este processo teve início naquela altura, naquele momento! E dá sempre um certo prazer reconhecer isso!
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Durante o curso, passaste pela experiência de ir colaborando com ateliers, enquanto estudante?
Sim, comecei logo no 2ºano. A aprendizagem da profissão, era feita nos ateliers, era absolutamente corrente essa prática. Trabalhei com o meu professor do 1º ano, e depois com o meu professor do 2º, e só deixámos de trabalhar no 5ºano, quando decidimos que tínhamos mesmo de focar, intensamente, no curso e na prática do atelier (aulas) do João Luís, que era realmente exigente, muito intensa. As aulas começavam às 8h30 e não saímos antes das 13h, com revisões diárias de todos os projetos, com debate interno na turma de todos os trabalhos. Isso não só mobilizava a turma como um todo, como cada um tinha de desenvolver a sua capacidade critica. Estas aulas eram sempre muito entusiasmantes, o João Luís estava sempre presente para fazer a sua crítica, mais incisiva, mais apurada, mais certeira, sobre todos os exercícios. Tínhamos uma fórmula para cumprir, maquetes brancas, desenhos apenas com linhas. Havia uma certa uniformização da base de suporte do discurso mas, depois, os discursos eram todos diferentes. Eu achei aquele ano muito intenso e entusiasmante.
É claro que na escola havia outros professores… Lembro-me das aulas do Michel Toussaint! Eu, que vinha lá dos confins da Serra da Estrela, nunca tinha ouvido falar de inúmeras coisas que o Michel Toussaint nos ia descobrindo e revelando, naquelas salas abobadadas, com uma projeção ao fundo, onde ele passava exemplos de tudo! Eu sempre gostei de quase tudo! Nunca me foi fácil dizer que só gosto de uma coisa só e aquilo era muito interessante! Também o João Belo Rodeia, que estava, na altura, hiper-focado no Le Corbusier, provavelmente tinha terminado uma tese há pouco tempo, era entusiasmante! Ver uma pessoa que, ao longo de muitos anos, se debruçou sobre um tema fazê-lo “explodir” e largá-lo aos alunos era muito interessante!
Com todos os defeitos e falta de entusiasmo que a escola tinha, e tinha muitos, o curso foi correndo bem. Não me posso queixar muito, embora não nos tenha dado os instrumentos todos para depois, a partir dali, evoluir. Isso tivemos de o fazer nos ateliers.
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Depois do curso, estiveste um ano no atelier do Carrilho da Graça e, depois, foste para o atelier do Gonçalo Byrne…
Fui para o Byrne a 3 de Agosto de 1992. A data é fácil de decorar, porque presumo que entrei por ser período de férias! Na altura, o Manuel Aires Mateus era a figura chave na gestão de todos os projetos, uma espécie de grande coordenador, o que libertava o Gonçalo para uma condição de reflexão e de crítica, ainda hoje ele gosta muito de funcionar assim. E o Manuel terá telefonado ao Carrilho a perguntar se eu valia a pena e o João Luís lá terá confirmado (imagino que sim…).
A partir daí é que comecei mesmo a perceber o que é ser-se arquiteto, neste contexto mais mundial e disciplinar, onde o Gonçalo é uma figura exemplar. É uma das pessoas mais generosas e inteligentes que conheço. Juntando estas duas condições, temos um arquiteto que se empenha, realmente, em fazer cidades e em fazer suportes de vida – ele usa a expressão “contentores de vida” que não é a minha favorita. E a fazer isto de uma forma absurdamente intensa e cultural! Não é corrente em nenhum outro escritório, pelo menos com esta generosidade.
Esta generosidade intrínseca existe também no projeto. Nós ficamos muito entusiasmados com os projetos do Siza, e é verdade que são extraordinários, ele é uma espécie de último Leonardo Da Vinci! Os projetos do Gonçalo não têm aquela sedução de uma espécie de consistência artística que flui de projeto em projeto, mas têm uma enorme consistência no entendimento da cidade de forma plena, e essa condição só se atinge quando se consegue dialogar e integrar paradoxos numa solução. E, no atelier, tínhamos estas duas condições: uma, mais à Siza, e outra, mais generosa do urbano e da cidade; que coexistiam, e bem. Sendo que o Manuel (Aires Mateus) representava o foco mais compositivo da disciplina da arquitetura e o Gonçalo integrava tudo numa solução, porque tem essa enorme habilidade.
Lembro-me de que, quando comecei, estava a fazer-se o concurso da Reitoria da Universidade de Aveiro, que estava a ser desenvolvido pelo Paulo David – há muita gente que ali fez uma aprendizagem muito importante – acompanhado mais de perto pelo Manuel (Aires Mateus), com uma solução muito abstrata e bonita. E há um momento em que o Gonçalo intervém, e faz girar todo o Campus em torno daquele edifício, põe-no numa posição de charneira, e, dentro dele, abre uma pequena cidade, onde se distribuem aquelas funções todas que era preciso distribuir, com hierarquia, com praças, com ruas… tudo dentro daquele pequeno edifício! Naquela altura, eu andava por lá a fazer maquetes, e nem percebia muito bem nada daquilo. Mas há um dia, depois da entrega, em que o Gonçalo faz uma conferência e descreve o projeto e, aí, percebi tudo! E isto era impressionante! E estas coisas parecem-me, ainda hoje, mais entusiasmantes na arquitetura – e provavelmente estarei errado – do que os focos muito intensos sobre as condições mais compositivas e fotográficas da arquitetura.
Ao contrário do João Luís, o Gonçalo Byrne nunca exigiu uma espécie de exclusividade. Ele entendia o atelier como uma espécie de escola, onde que as pessoas entram e saem (e não sei porque é que eu ainda não saí…). E isso era potenciado pela hipótese de se poder continuar a trabalhar fora. E comecei, com a Maximina, a trabalhar com o Paulo David. Saíamos cada um dos seus trabalhos, eu saía com o Paulo e íamos para casa dele. Tínhamos lá um pequeno atelier, saíamos às cinco da tarde, e ficávamos lá até às 2 da manhã. A trabalhar, a fazer o que tínhamos de fazer. E, no dia seguinte, estávamos às 10h da manhã no atelier do Gonçalo. E a possibilidade de ter esta vida dupla – de que na época nós gostávamos, por causa do entusiasmo da arquitetura, mas que, um bocadinho mais maduro, ainda hoje a mantenho, porque fiquei a meio tempo no Gonçalo – dá-nos a possibilidade de trabalhar e refletir a duas velocidades, e a duas distâncias, e deu-me mais capacidade de analisar o que andávamos a produzir. Passando até a ter uma vida tripla, quando me convidaram para dar aulas na Autónoma!
Tudo isto resulta numa espécie de tripla personalidade, que incide sobre o mesmo objeto e acho que é mais entusiasmante do que ter apenas um registo. São registos diferentes, a olhar sobre o mesmo, e cada um acrescenta ao outro. Hoje em dia, se me perguntassem se queria ir trabalhar com o Siza, eu dizia logo que não! Não aguentaria – e é um problema pessoal, não é um problema do Siza – viver apenas num registo único. Só este pendular entre vidas é que me preenche. E tento que elas sejam relativamente estanques. Por questões éticas. Tento nunca estar numa posição de uma poder beneficiar a outra. Isso é uma questão que me preocupa o suficiente para ter as coisas autónomas.
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E essa é a tua estratégia de sobrevivência face àquilo que a arquitetura se está a tornar?
Nunca tinha ligado muito bem essas duas coisas, mas sim. Também um pouco por esta possibilidade de análise tripla e porque, como já referi, gosto muito de arquitetura e custa-me dizer que gosto mais deste do que daquele – meto no mesmo saco o Niemeyer e o Stirling – são distintos, mas cada um tem coisas muito interessantes para nos dizer. Neste momento, intuo uma espécie de condição hedonista da arquitetura portuguesa, que se está a focar numa espécie de consistência regional – que afirma que a arquitetura portuguesa é “isto”. E esse “isto”, vive numa sociedade que pouco tem para investir em arquitetura, e parece-me que, mais cedo ou mais tarde, o investimento global em arquitetura acabará. O contraponto será a Suíça, que, nessa condição de uma certa consistência regional, tem uma sociedade que investe na arquitetura, e é extraordinário quando isso acontece. E não me parece que isso esteja a acontecer com a arquitetura portuguesa, nesta sociedade, que é muito menos estruturada e exigente, onde facilmente se hierarquizam temas que não são hierarquizáveis. Às vezes, fico surpreendido com frases, em conferências, que vão confirmando esta tendência de uma certa condição aristocrática do arquiteto, que se vai encerrando numa forma de fazer, de escrever, de atuar. Este parece-me um caminho que vai limitando, cada vez mais, o que é a arquitetura portuguesa, em vez de explorar claramente a possibilidade que está embebida naquela arquitetura que vem da arquitetura chã: a de otimizar todos os recursos, otimizar todas as oportunidades, de levar tão longe quanto possível, com pouquíssimo material, soluções. Que depois perduram e resistem, porque, pura e simplesmente, não perderam nenhuma oportunidade!
Eu gosto bastante de olhar para as arquiteturas vernáculas do mundo inteiro. Em todas elas se reconhecem estes fios condutores de decisões, que, de geração em geração, vão otimizando soluções. É claro que se vão otimizando para uma visão estreita do território, para aquele bocadinho do território. Mas, se conseguirmos aprender a estratégia e espelhá-la para o mundo, eu acho que é mais entusiasmante. Por isso, custa-me um bocadinho esta espécie de condição de mono-imagem da arquitetura portuguesa. Preferia que ela fosse muitíssimo mais plural do que me parece estar a acontecer.
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Por estar a construir-se uma imagem, que é, de alguma forma, mais única e mais reconhecível internacionalmente, mas não pelos portugueses, e é algo elitista? Ou porque nós não temos cultura arquitetónica, como sociedade e, portanto, não reconhecemos a qualidade intrínseca das coisas?
É claro que a sociedade portuguesa não tem a capacidade de reconhecer os valores com os quais a arquitetura portuguesa pode contribuir para a sociedade – não faz parte das prioridades de nenhum governo, desde que eu me lembro.
Mas o que eu estava a dizer é um bocadinho diferente. Realmente, esta restrição das expressões da arquitetura portuguesa, eventualmente mais nos media do que na realidade (mas também não presumo conhecer muito mais realidade do que aquela que vem nos media) parece estar a construir uma espécie de marca da arquitetura portuguesa, que não é suficientemente rica para resistir àquilo que é a real complexidade do mundo. E, quando se passa a ter encomendas a arquitetos portugueses por via desta condição de branding, eles ficam numa posição muito fragilizada. Porque se espera que produzam determinada coisa. Mas as condições são sempre absurdamente distintas, em cada projeto, consoante os territórios.
Este fim-de-semana, houve um encontro luso-espanhol. Neste evento, a arquitetura espanhola quase sempre foi referida como sendo uma arquitetura mais real – isto são as palavras do (Rafael) Moneo – face a uma arquitetura portuguesa, mais abstrata. E eu acho que isto é uma redução! Não corresponde à realidade. E estamos todos muito entusiasmados com esta condição mais abstrata, mas, esta sim, parece-me um beco sem saída.
De alguma forma, os arquitetos que fazem parte deste leque mais reconhecido, mais até a nível internacional do que nacional, foram beber inspiração à arquitetura popular portuguesa e a outros mestres internacionais. Hoje, achas que o facto de os nossos alunos (da Autónoma) virem de todo o mundo, e não conhecerem necessariamente a arquitetura popular portuguesa, vai alterar alguma coisa? Há aqui uma quebra de um elo qualquer, não há?
É essa quebra do elo que tem contribuído para que exista esta espécie de restrição daqueles que podem ser os temas da arquitetura. Há temas que passaram a não ser tema. Há temas tabu! Se alguém quiser ter uma conversa disciplinar sobre conforto, vai ter inúmeros problemas. Não é tema!
Ora como na Autónoma me convidaram para dar aulas de Construções, é esse o meu tema! Vivo muito no utilitas e no firmitas, e parece que a arquitetura portuguesa vive só no venustas. E isto não faz sentido nenhum! Claro que não deixa de haver uma espécie de tensão, saudável, entre as cadeiras mais instrumentais, de ofício, como as Construções, destinadas à produção de um objeto arquitetónico construído, e as cadeiras mais livres. No entanto, admito que a construção é um meio, posso admitir esta condição, e que a arquitetura, que precisa desta disciplina, pode viver com inúmeras construções, o mesmo significado pode ter corpos distintos. Se há uma coisa que eu tento fazer na Autónoma é não fazer aquilo que odiei na escola. E aí, sim, odiei as cadeiras de Construções, que se posicionavam de uma maneira autónoma da cadeira de projeto, até aristocraticamente autónoma. Como se houvesse um corpo perfeito de conhecimento, autónomo de Projeto. Aquilo era um paradoxo que não fazia sentido nenhum e, quando comecei a pensar como ia lidar com isto – porque eu nunca tinha dado aulas, sou dos professores mais recentes da Autónoma, dou aulas há sete anos e a escola começou há quinze, todos os meus colegas têm um percurso académico muito mais extenso – a primeira que coisa que pensei foi ver se conseguia fazer a interligação com a disciplina de Projeto. Fui sempre, ao longo destes anos todos, procurando a melhor articulação destas disciplinas.
No 4ºano a experiência é quase sempre a mais equilibrada, é aquela que permite à disciplina de Construções (na UAL chama-se Tecnologias) acompanhar mais de perto as decisões de Projeto e fazer com que estas decisões se tornem suficientemente amplas e complexas para integrarem tudo no momento da decisão. Correu sempre muito bem. No 3ºano, já foi mais difícil, e no 1ºano… é um desafio! É um desafio por serem alunos novos, que vêm da escola secundária com outro tipo de preparação, mais distante daquilo que seriam instrumentos necessários para a Arquitetura. Portanto, temos de arranjar uma maneira de colmatar esse hiato, e há que ser muito direto nesta aquisição de instrumentos; é por isso que os alunos do 1º ano andam a fazer levantamentos e a desenhar, porque lhes falta essa possibilidade de comunicar rigorosamente ideias, mas com as frases da arquitetura, com os desenhos da arquitetura.
No 2ºano, que ainda é uma experiência recente, tenho estado a fazer o primeiro reconhecimento das qualidades de alguns materiais. Que será o omnipresente betão, que é um dos materiais mais utilizados na arquitetura atual. Depois o tijolo, como um contraponto, um material que é feito de outra maneira, que vem às peças, para o qual é preciso imaginar as possibilidades expressivas que o tijolo tem versus as possibilidades expressivas do betão. E tem corrido bem, tem-se conseguido articular com Projeto.
E o 5ºano… é um ano muito sofisticado! Quer o atelier da Inês Lobo, quer o do Francisco Aires Mateus, são ateliers que, para aumentar muito a intensidade do trabalho dos alunos, exigem focar muito precisamente, no caso da Inês, num território quase sempre urbano, no caso do Francisco num território normalmente menos consolidado. O que exige uma certa estanquidade da forma do ensino. E esta estanquidade é no sentido de conseguir não destabilizar, não desfocar, e, ainda assim, fazer aparecer decisões que estão mobilizadas por coisas externas, no caso, materiais de construção, oportunidades. O 5º ano é todo ele muito sedimentado na Matéria, em Energia (são os grandes chapéus que vão voando sobre os temas) e o desafio tem sido, sem perturbar e sem desfocar, introduzir estes temas, que são temas globais.
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Sendo a tua área diferente de Projeto, como vês a relação entre a Investigação, a Prática Profissional e o Ensino?
É um tema muito difícil. Por um lado, há alguns fatores que influenciam esta relação. Um deles é a forma como o investimento da investigação é feito em Portugal, porque a investigação não vive sem financiamento, sem recursos. E tudo funciona muito bem quando a profissão e a investigação se confundem, quando temos a investigação em laboratório de química, por exemplo. Assim que a profissão, o dia-a-dia de quem investiga, se divide em profissão-investigação, esta forma entra em crise e, na prática, até por questões regulamentares, exige que se escolha um. Se queres ter profissão, é profissão, se queres ter investigação, tens investigação. Este é um problema nas profissões criativas, e julgo que nas humanísticas também, e não será um problema nas matemáticas puras, na química, profissões em que o laboratório se confunde coim a profissão. O que isto tem como consequência perversa é ter reduzido a um consenso que diz que investigar é “isto”. E qualquer projeto de arquitetura, feito em condições intensas de arquiteto de nível elevado, exige um empenho e um foco tão intenso sobre o objeto de estudo… o número de horas de trabalho de uma equipa de projeto de um edifício pequeno, não precisa de ser um muito grande, excede largamente o número de horas necessárias para fazer um doutoramento! E este esforço, este empenho real, de investigar arquitetura, com o material arquitetura, cabe em nenhuma “gaveta” daquilo que é considerado investigação em arquitetura. Mas depois vemos a investigação formal, a académica, mais estabilizada, usar como objeto de estudo todo aquele esforço! É um paradoxo!
Eu não presumo, nos meus projetos, estar a gerar material tão intenso, mas há muitos casos na arquitetura portuguesa em que isto é assim! Qualquer projeto realizado pelo Gonçalo (Byrne), pelo (Álvaro) Siza, ou por um (Manuel) Tainha, é, por si só, uma tese intensa de investigação. Não tem forma de doutoramento, nem de mestrado, mas tem essa condição. Não seria mau imaginarmos como alterar isto. Não faz sentido dizer a uma pessoa “-Escolhe entre isto ou aquilo”, porque na prática está a fazer os dois…
Ocorreu-me agora uma coisa que o Gonçalo Byrne disse numa conferência: «Eu prefiro a palavra “E” à palavra “OU”! Eu prefiro incluir do que ter de escolher, porque é muito mais entusiasmante!». Isto sintetiza o ponto por onde começámos a falar, sobre a generosidade com que ele atua. Porque nos falta muito este “E”! A estrutura da cidade está muito sustentada nos “OU” e pouco nos “E”. Mas todos nós, individualmente, podemos praticar o “E”! Não custa nada e é muito económico!
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Fizeste-me lembrar uma pequena conferência do Frédéric Druot, que trabalhou com os Lacaton e Vassal, que partia da frase “To give is more!”. E ele falava muito da ideia do esforço do arquiteto, como a pessoa na sociedade que tem a possibilidade de dar como missão. Dar mais do que as pessoas esperariam no início…
Isso seria a razão pela qual todos os jovens quereriam ser arquitetos. Quando existe essa oportunidade de tornar isso consciente, e não perder essa vontade, acho incrível! O risco é um bocado aquilo que anda a acontecer com estas arquiteturas “do social” (ou do pobre), quando fazem afirmações do tipo “não me interessa nada esse mundo aristocrata da arquitetura, interessa-me o mundo pobre da arquitetura” (os Lacaton e Vassal até são dos mais equilibrados porque os resultados são realmente entusiasmantes). E isto não existe! Não existe esta polarização. Quando é bom, é arquitetura! Não é por ser pobre, nem rico. É dizer “Quando há arquitetura, ela está cá”. Quando está para resolver problemas, está, quando é para ser é para ser! Há imensas coisas que são, apenas são.
Nós olhamos para o Palácio da Ajuda, que agora vai levar aquele acabamento, e, essencialmente, é! É uma representação de poder e não deixa de ser arquitetura por causa disso. Há sempre esse risco de selecionar só uma parcela do problema. E eu acho, que seja uma coisa feita com cinco tostões ou cinco milhões de euros, desde que haja intensidade na forma como olhamos para o assunto e na forma como aquilo que estamos a propor pode interferir no futuro do território, seja ele extenso ou não, é incrível! Que profissão pode dizer que está a contribuir, materialmente, fisicamente, para o futuro? Qualquer trabalho de arquitetura que se faça, marca o futuro. Diretamente. Não há muitas profissões que tenham esta condição.
E como vês o futuro da profissão?
Obviamente, todos estamos preocupados com a falta de recursos. Vamos todos ter de nos continuar a adaptar. É muito diferente para um jovem que saia agora da universidade, comparando com a facilidade com que saí da escola, fui para o João Luís, depois de bater a várias portas, 3 ou 4 (não foram umas centenas), e, depois, fui para o Gonçalo.
Fomos nós que fomos construindo esta condição… quando os recursos começam a ser contabilizados, há uma maior exigência. Tenho tido uma espécie de obsessão sobre a qualidade da decisão. Qualificar uma decisão é uma obrigação de todos. Quais são os mecanismos que conseguimos encontrar para melhorar a qualidade das decisões? Sejam eles quais forem. Sejam as que nós tomamos todos os dias, seja as que os governos tomam todos os dias.
Muito do esforço tem sido feito pela via dos recursos. Quando aparece a palavra recurso, ele começa a embeber-se nos processos, a fazer-se sentir como material qualificador. E eu acho bem, mas penso que se têm de arranjar condições para que isso possa permear todos os processos. E não é evidente que os organismos de decisão que temos na sociedade portuguesa o façam, pelo menos do ponto de vista técnico. O Estado tem perdido qualificações técnicas, em favor de jurídicas, a um ritmo galopante. Quando vemos uma decisão, uma Lei, pergunto-me logo “Onde está o estrato que qualificou tudo isto? Porque é que houve esta decisão? Porque é que esta decisão é melhor do que outra qualquer?”
E, se entendermos esta condição de deixar que o recurso, como conceito, permeie todos os processos, eu diria que não vejo o futuro da arquitetura muito mau porque estamos qualificados para lidar com isto.
Independentemente da escassez…
Sim, independentemente da escassez. Preocupa-me é que a escassez esteja não sobre o objeto do estudo, mas sobre quem estuda! Faz-me muita impressão que, em muitos casos, a escassez de recurso de estudo de projeto leve a um compromisso de maior custo na obra. Isto não faz muito sentido! E aí têm de ser os arquitetos a mexer-se para a provar que não deve ser assim.
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Já que estamos em período de eleições para a Ordem dos Arquitetos, achas que estes temas deviam ser alvo de debate?
A Ordem existe como regulador de uma atividade profissional, é uma delegação do Estado numa meia-dúzia de pessoas, que têm de regular a Ética e Deontologia. Mas isto não é sedutor, não ganha eleições, e, portanto, é um discurso que está sempre meio escamoteado, meio esquecido. E, na Ordem dos Arquitetos, percebe-se muito que as questões culturais, como conferências e exposições, recolhem muito mais favores e empenho dos membros do que estas. E isto tem enfraquecido as Ordens.
E acho que o Código de Deontologia da Ordem dos Arquitetos está vetusto, já estava vetusto no momento em que foi feito. É uma dificuldade das Ordens. Todos os arquitetos têm os mesmos direitos e os mesmos deveres. E isto, que é de uma grande evidência, já não é evidente se eu disser que nem todos os arquitetos são iguais. Sem retirar nada da primeira frase, a segunda também tem de existir. E este é um tema muito difícil dentro das Ordens. Dizer que nem todos são iguais mas que todos têm os mesmos direitos e deveres…
Esta semana fiz uma viagem a vários ateliers por todo o país e houve um aluno que me fez uma pergunta que agora te coloco a ti, de forma a poderes falar um pouco sobre o teu atelier, o MXT Studio: Foi mais fácil a passagem da universidade para ir trabalhar num atelier de arquitetura ou sair de um atelier de arquitetura para fazer o teu próprio atelier?
Eu nunca saí! Mas muito pelas razões que expliquei, porque até hoje nunca deixei de estar entusiasmado com as possibilidades que o Gonçalo nos tem posto em cima da mesa. Por isso, não sei se tenho uma resposta muito precisa para dar. O que posso dizer é que trabalhar para um atelier é estar num ambiente protegido. Não é o mesmo que ter um atelier próprio. Trabalhar naquele mundo confortável, em que temos só o tutano da disciplina, sem ter o “sujo” da profissão, é muito bom, é excecional. Ter um atelier exige lidar com o “sujo” da profissão, mas, quando bem balançada, esta condição que a profissão tem de gerar autossuficiência não deixa de ser incrível!
Recentemente, fizemos duas pontes, uma sobre a 2ª Circular, e uma sobre a Linha do Norte. São dois processos que, desde o arranque, são absolutamente diferentes. Um era um concurso internacional, com imensos concorrentes e com um júri convidado que era muito bom. Depois, tivemos um privado a “roer o osso” até ao fim. Este era o da 2ª Circular. O outro era um daqueles processos mais focados nos honorários e na metodologia, com a consciência de que o recurso tempo vai ter um limite, o que nos fez dizer, desde o primeiro momento, que tínhamos de encontrar uma solução que, do ponto de vista da execução, caiba em determinado tempo, que seja muito restrita naquilo que exige, e extraordinariamente inventiva a ultrapassar condicionantes que estavam no regulamento do concurso. Na prática, pediam duas pontes e nós fizemos uma. Fazer uma ponte é sempre mais barato do que fazer duas, e nós fazíamos o mesmo atravessamento. E ganhámos, e está construída, e é verdade que, no fim, uma tem uma restrição geométrica muito precisa, que era para poder ser desenhada de uma forma muito eficaz, a outra era muito mais exuberante porque tinha de passar este crivo do concurso internacional. Logo ali, no arranque houve esta consciência destas duas condições.
A ponte da 2ªCircular ganhámos por sorte! Aquele concurso teve um reboot e só por isso é que conseguimos concorrer, porque as propostas que tínhamos em cima da mesa não estavam a correr nada bem. Com aquele reboot, ganhámos outro fulgor. Apareceu o X em cima da estrada e, com aquele X, começámos a coser outros caminhos, que já lá estavam – entendíamos que esta ponte podia ser uma espécie de protótipo de uma rede que passava por cima daquilo tudo. E foi por aí que aquilo seguiu e, é claro, ficámos muito contentes!
Ganhámos esse concurso dois dias depois de ganhar o do Centro Náutico de Abrantes. Foi uma semana extraordinária!
E a verdade é que isto foi feito num atelier pequeno. Hoje em dia, qualquer aluno que sai da universidade, tem provavelmente mais recursos do que aqueles que eu tenho. Com estes recursos de informática e de renders (3D), que eu não tenho pessoalmente, qualquer grupo de três ou quatro alunos pode dar respostas incríveis nestes processos. E, infelizmente para nós que temos estruturas mais exigentes, as estruturas ligeiras, que se podem montar para responder a concursos de arquitetura, podem dar arranque a coisas incríveis. Muitos dos ateliers que conhecemos, publicados, aqueles espanhóis Barozzi e Veiga, são um exemplo. São ateliers muito ligeiros no início, que depois ganham concursos, e vão por aí a fora até serem quem são agora. Portanto, qualquer estudante da Autónoma pode lá chegar!