Entrevista
PARTE 1
PARTE 2
Filipa Ramalhete
framalhete@autonoma.pt
Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa (CEACT/UAL), Portugal | Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa (CICS.Nova)
João Caria Lopes
joaocarialopes@gmail.com
Atelier BASE | Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa (CEACT/UAL), Portugal
Para citação: RAMALHETE, Filipa; LOPES, João Caria – Entrevista à Marusa Zorec. Estudo Prévio 13. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2018. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://repositorio.ual.pt/handle/11144/2687
É com enorme prazer que hoje temos como nosso convidado o arquiteto e professor Pedro Reis. Seja bem-vindo! Queríamos por começar por pedir que nos contasse o seu percurso académico como aluno, como foi o seu curso de arquitetura, que professores e exercícios marcantes é que teve.
Em primeiro lugar queria agradecer a oportunidade para participar num projeto da UAL que eu acho que é ótimo e que nos ajuda a desenvolver a ideia de escola e de todas as atividades que passam por lá.
A minha ideia para vir para arquitetura começou muito cedo. Quando era adolescente já tinha a noção de que era um curso que eu gostava de fazer. Já gostava imenso dos edifícios, do espaço.
Eu cresci numa casa muito grande, que era uma casa muito bonita, em Silves, no Algarve. Tinha sido desenhada por uma arquiteta, claramente influenciada pelo Raul Lino, era uma casa muito bonita, uma casa especial. E desde muito cedo senti, também com a influência de uma série de pessoas que estavam à minha volta, que a arquitetura era uma coisa que realmente fazia sentido e de que eu iria gostar. Obviamente, sem saber nada sobre o que era arquitetura, mas já tinha, de certa forma, alguma sensibilidade para os espaços e gosto pelos edifícios e pela construção.
Estudei até ao nono ano, em Silves, no Algarve, e depois, com a ideia de vir estudar para Lisboa, para uma escola já direcionada para as artes, vim para a (Escola Secundária Artística) António Arroio. E foi também uma oportunidade para sair de casa porque, de facto, viver numa cidade pequena não era uma coisa que me interessava muito. E vim viver sozinho, com 15 anos, o que na altura não era uma coisa normal, com grande coragem dos meus pais – não minha, porque eu vinha ligeiramente inconsciente – e, simultaneamente, de confiança. E, por isso, tinha de correr bem. E correu bem, fiz a António Arroio.
© Pedro Frade – Todos os direitos reservados
A partir daí havia a questão de ter boas notas para entrar na Universidade. Nessa altura já era difícil entrar em Lisboa e o Porto tinha, de facto, uma nota mais baixa e era a escola para onde eu queria ir. Eu não percebia nada de arquitetura. Tinha algumas noções básicas e, no fundo, eram os amigos e pais de amigos que sempre me disseram que a escola do Porto era melhor, na altura. Tinha um ensino muito mais rigoroso, já tinha uma história, relativamente às décadas anteriores, de ser uma escola bastante diferente de Lisboa e muitos dos futuros arquitetos iam estudar para o Porto. E lá fui.
Foi uma mudança para uma cidade nova, que não conhecia. Também gostava da ideia do Porto… O granito intenso, o nevoeiro! Todo aquele universo era uma coisa a que eu achava alguma graça! E foi muito simples. Tinha colegas que foram comigo para o Porto, mas depois conheci o Rogério Gonçalves, o José Adrião. Como a escola era relativamente pequena, nós conhecíamos pessoas de vários anos. Não havia a tendência de fazermos amizades só do próprio ano. E eu, talvez por ter alguma autonomia, por viver sozinho há bastante tempo, aproximei-me de pessoas mais velhas, que já estavam mais autónomos, e também porque era mais estimulante para mim… E rapidamente me integrei na cidade e no circuito dos jovens estudantes e da escola.
O primeiro ano na escola do Porto foi, de facto, um ano muito marcante. Não por ter logo a sorte de ter um ótimo professor – quando cheguei praticamente não tive professor, porque ele estava a fazer um doutoramento e por isso pouco passava por lá, e acabei logo por ter de ir à procura de outros professores que me conduzissem nos trabalhos e nos apoiassem no projeto – mas foi muito marcante pela cadeira de Desenho. Porque foi uma cadeira que nos obrigou a observar, e isso para mim foi uma revelação enorme. Obviamente que as cadeiras de Projeto e de História – que era o professor Fernando Távora que dava – eram fantásticas e nos faziam entrar no mundo da Arquitetura de uma forma fascinante – mas a cadeira de Desenho foi a que me deu uma ferramenta para eu poder olhar para o mundo de uma forma completamente diferente. A partir do momento em que aprendemos a desenhar, aprendemos a observar. E isso é uma ferramenta de projeto fundamental.
Entre o 1ºano e o 2ºano houve um interregno de um ano, fui para a tropa e quando voltei já vinha com mais maturidade e também já apanhei na turma outras pessoas. Conheci o Nuno Brandão Costa, que depois foi sempre um dos meus amigos mais próximos, o Francisco Vassalo e muitos outros. Criámos aí um novo grupo de amigos, já diferente do grupo que tinha inicialmente, mas tive sempre esta relação com os alunos mais velhos e que andavam mais à frente, o José Adrião, o Paulo Seco, o Pedro Pacheco, o Francisco Vieira de Campos e a Cristina Guedes. Parte deste grupo tinha começado a fazer um atelier que era o Atelier dos Almadas, que era um atelier fantástico porque nós estávamos todos fora de Lisboa – e como apanhámos a transição entre as Belas-Artes e o novo Pavilhão Carlos Ramos, o espaço da escola era um bocado exíguo e, portanto, não havia grandes condições para trabalhar – era de facto um universo de grande intensidade! Nós quase tínhamos uma escola paralela. Numa segunda fase, entrei para esse atelier e aquilo era a nossa segunda casa. Divertíamos, obviamente, mas o trabalho era o centro da nossa vida.
Em relação à Escola do Porto, o que a escola nos propunha era uma aprendizagem sobre metodologia de trabalho, através de uma série de ferramentas, para o desenvolvimento do projeto, para as leituras da cidade, do território, das relações sociais. E isso foi a coisa mais importante que a escola nos ofereceu. Mas, ao mesmo tempo, era bastante rígida na forma como estruturava os exercícios, os objetivos e os campos de exploração. A partir de certa altura, nós começávamos a ver revistas de arquitetura e a conhecer outros arquitetos. A escola também se empenhava a fazer conferências. Houve uma fantástica, que e marcou imenso a minha geração, veio o Jaques Herzog, o Peter Zumthor, o Giorgio Grassi, o David Chiperfield, que eram arquitetos que estavam a ter os seus primeiros trabalhos importantes (exceto o Grassi) e isso chegou com uma frescura enorme para a escola e, de facto, marcou esta geração.
© Pedro Frade – Todos os direitos reservados
Ao mesmo tempo, eu sempre tive vontade de conhecer coisas novas, de viajar e de ter contacto com realidades diferentes. Não só como turista, mas conhecer maneiras novas de funcionar e de como as sociedades se organizam e, portanto, no 4º ano, quis ir para Londres. E aproveitei a oportunidade de haver o Erasmus (provavelmente apanhei o 2ºano de Erasmus) de tal forma que nem havia candidatos, acabei por receber uma dupla bolsa. Fui com o Francisco Vassalo, que também teve uma dupla bolsa, e fizemos um ano em Londres. Fomos para o Politécnico de Southbank, que hoje é universidade. Foi uma aventura fantástica, porque fomos entrar num sistema de ensino completamente diferente. Não havia propriamente uma metodologia de trabalho, havia vários ateliers e várias linhas de orientação de projeto, com temas variadíssimos, com abordagens variadas, com temas de projeto completamente diferentes, e isso para mim foi uma lufada de ar fresco. De repente podia pensar em projeto de uma maneira completamente diferente, passar um ano a refletir sobre a forma como nos relacionamos com o mundo e, a partir dessa experiência, partir para uma ideia de projeto.
Havia um campo de exploração muito alargado, o que era muito refrescante e entusiasmante ao mesmo tempo. Podíamos conhecer a cidade, com uma arquitetura completamente diferente da que se possa ver no Porto
Eu já tinha conhecido Londres como turista e também já tinha lá estado a trabalhar no verão, no 3ºano – eu sempre trabalhei no verão, até antes de vir para arquitetura já tinha trabalhado em campos arqueológicos, trabalhei dois verãos a fazer um levantamento arquitetónico da construção em terra do Algarve, com o arquiteto José Alberto Alegria – porque conhecia o Jorge Carvalho e a Teresa Novais que estavam a trabalhar no Chiperfield e no Foster e fui para lá trabalhar no verão, para o atelier do Staton Williams, que era um atelier com ótima arquitetura e com ótima qualidade. Fiz aqueles trabalhos de verão… passar desenhos a tinta, fazer maquetes e tal.
A seguir voltei para o Porto, e apanhei outra alteração que foi a transferência da Arquitetura das Belas Artes do Campo Alegre para a nova Universidade de Arquitetura já desenhada pelo arquiteto Álvaro Siza. E, nessa transição, o ano de estágio curricular passou para o 5ºano e fui fazer o estágio para o atelier do arquiteto Fernando Távora. E foi um estágio absolutamente fantástico, com uma pessoa com uma sabedoria, inteligência e sensibilidade fantásticas e que me deu uma primeira abordagem sobre o que é o desenvolvimento do projeto, o acompanhamento da obra. Mas, sobretudo, mais do que o que se aprendia em projeto, foi a convivência com o arquiteto Távora a coisa mais importante.
Depois do estágio, o 6ºano foi um ano mais dedicado ao urbanismo, com uma intervenção de larga escala. Ao mesmo tempo, comecei a trabalhar, com o arquiteto José Fernando Gonçalves, num projeto para o arquiteto Souto de Moura para o centro de estudos empresariais na Maia. Como eu já tinha passado um verão no atelier do arquiteto Souto Moura a acabar (de passar a tinta) um projeto de execução para o Pavilhão de GeoCiências da Escola de Aveiro – surgiu a oportunidade de continuar nesse trabalho e acabei por ir trabalhar para com o arquiteto Souto de Moura, onde fiquei mais quatro anos.
© Pedro Frade – Todos os direitos reservados
Depois dos quatro anos no atelier do Souto de Moura, sei que ainda viajaste para outro país? Tiveste sempre esta vontade de ir à procura de outras fontes?
Sim. Para mim o percurso com o Eduardo Souto de Moura foi muito marcante. Eu comecei num projeto que já estava numa fase de projeto de execução, quase a começar a obra e, de certa forma, eu era a pessoa com mais conhecimento sobre o projeto, e tive logo um primeiro contacto, duro, com a realidade de enfrentar uma obra. Acabei de sair da universidade e tive logo de acompanhar uma obra relativamente grande, que era o Centro de Estudos Empresariais na Maia, uma obra que depois não chegou a acabar… Mas foi logo um primeiro contacto com a realidade de ter de produzir desenhos, de dar uma resposta… E isso deu-me, de certa forma, alguma confiança para depois começar a desenvolver uma série de outros projetos no atelier e tive a oportunidade, com o Eduardo, de trabalhar numa serie de projetos, desde casas a grandes edifícios, e em todas as fases do projeto. Até que, depois, acabei por sair porque queria ir fazer outra coisa, não que não gostasse de trabalhar com o Eduardo, sempre gostei e que ainda hoje somos amigos, mas tinha outros desafios pessoais e era importante fazer essa mudança. Mas foi, sem sombra de dúvida, o arquiteto que mais marcou a minha formação.
A seguir foi um salto para Nova Iorque! Fui porque queria mudar de vida. A ideia era inicialmente vir para Lisboa, mas depois percebi que não ia fazer nada em Lisboa. Na altura não havia mais nenhum arquiteto com quem fizesse sentido trabalhar. Depois de estar no Souto de Moura ainda estava um bocadinho embebido naquela intensidade toda! Porque eram muitas horas de trabalho, muito intenso, todos os dias. Nós dedicávamo-nos imenso ao atelier, a minha vida era praticamente trabalhar, com todo o gosto. Mas não fazia muito sentido, depois de estar com o Souto de Moura, trabalhar com outro arquiteto em Lisboa. E então acabei por decidir ir para Nova Iorque.
Foi um salto enorme. Não em termos de escala de trabalho porque até fui para um atelier relativamente pequeno, por opção. Assim que cheguei a Nova Iorque, depois de ter estado a trabalhar com o Eduardo, tinha um passaporte… eu não tinha essa noção, mas, ao fim de uma semana, já tinha não sei quantas ofertas de emprego. Tinha a hipótese de ir para grandes ateliers, como o SOM ou outros grandes, mas de facto era uma escala que não me interessava. Não tinha a intenção de ficar muito tempo em Nova Iorque e apetecia-me entrar no universo de projeto, na relação que se estabelece com todos os atores do processo do projeto e da construção. E então optei por ir para um atelier mais pequeno, o de Toshiko Mori, que é uma arquiteta japonesa que já há muitos anos que trabalhava em Nova Iorque e que tinha feito uma série de casas na Florida e mais alguns projetos de interiores em Nova Iorque, e tinha a possibilidade de fazer uns projetos novos na Florida e, isso para mim foi determinante, porque podia acompanhar a conclusão de uma obra, num espaço de dois anos, era mais útil do que estar num atelier grande a fazer (desenhar) casas-de-banho, por exemplo.
Esse trabalho foi importante porque percebi como funciona todo o sistema de acompanhamento de obra, todo o sistema da relação com as empresas de construção, a questão da legislação, que é uma coisa que se tem de perceber, porque é um constrangimento enorme para o projeto, era um desafio. Ao mesmo tempo, a obra na Florida era uma oportunidade de conhecer mais a América. Foi muito interessante.
Esse período de Nova Iorque foi um período de descoberta da cidade, da arquitetura, de começar a perceber a importância da arquitetura numa escala tão grande como a cidade de Nova Iorque… de conhecer o Mies e uma série de edifícios que marcam a cidade… de facto, nessa altura, a arquitetura contemporânea não era muito interessante em Nova Iorque, a arquitetura dos anos 50 e 60 tinha mais interesse…
Depois a Toshiko era professora em Harvard, mais tarde veio a ser a diretora do departamento de arquitetura, e ainda tive a oportunidade de ir lá fazer crítica dos trabalhos aos alunos, foi uma experiência ótima, mas senti que “ou eu fico aqui para o resto da minha vida ou tenho de mudar”.
E, entretanto, quando estava nessa fase de mudança houve a destruição de Timor. E eu estava numa fase de transição na minha vida, a planear vir para Lisboa, e, entretanto, decidi que as minhas coisas iam para Lisboa, mas eu ia para Timor. Porque, de uma certa forma, um pouco romântica, achava que, depois de ter lido o (Ruy) Cinatti e de vir com toda a formação da Escola do Porto e de ter estado dois anos a fazer casas de milionários que só iam usar as casas durante uma semana, apetecia-me encontrar ali outro foco de interesse para o trabalho e outra abordagem, ligada à resolução de problemas que seriam vitais para a vida das pessoas. E esse sentido da arquitetura era o que estava a faltar na experiência de Nova Iorque.
Ainda vim para Lisboa, estive cá estacionado a fazer uns concursos com o José Adrião e o Pedro Pacheco durante um ou dois meses, mas rapidamente fui para Timor e comecei a trabalhar.
Depois fui convidado pelas Nações Unidas para montar, no fundo, a operação de reconstrução do país. Porque com a destruição, a seguir ao referendo, como é sabido instituiu-se a missão das Nações Unidas com o objetivo de fazer a transição, de reconstruir o país e organizar a administração do território, numa fase de transição, até se conseguir implementar uma administração timorense. Portanto, o mandato era muito claro: era preciso reconstruir as infraestruturas básicas, reconstruir e construir edifícios para podermos ter uma administração a funcionar – não havia nem tribunais, nem hospitais, nem escolas, nem prisões – e era preciso montar uma estrutura para fazer esta operação. Numa fase inicial, da parte da ONU, houve uma certa dificuldade em compreender a abrangência deste mandato, porque até lá as Nações Unidas estavam habituadas a fazer missões de manutenção de paz, e, de facto, fazer uma operação para a reconstrução de um país e estabelecer uma administração transitória não é só uma operação que tem a ver com questões militares e administrativas. Mas rapidamente se percebeu isso e foi aí que eu entrei. Obviamente, porque tinha um percurso como arquiteto, já tinha alguma experiência, tinha a vantagem de ser português e de poder usar a minha língua e também ter à vontade para usar o inglês como língua de trabalho e essa conjugação fez com que fizesse sentido ir para lá montar isto.
© Pedro Frade – Todos os direitos reservados
Partimos do zero, definimos uma estratégia. Primeiro fizemos um levantamento de todos os edifícios destruídos, fizemos uma análise sobre as possibilidades de reabilitação dos edifícios – muitos deles, para além de ser originalmente mal construídos, também tinham sido bastante afetados pelo fogo, as estruturas estavam deformadas, muitos deles, irrecuperáveis – mas, dentro daquilo que foi possível, estabelecemos este plano, definimos quais eram os edifícios na cidade… Mas estamos a falar de uma pequena escala! Timor tinha 800 mil pessoas, na altura. Estamos a falar de uma operação a nível do país todo, mas era uma coisa relativamente pequena.
E no fundo este trabalho não era propriamente de Projeto. Era um trabalho de gestão, no qual a minha formação de arquiteto foi, de certa forma, vital para conseguir hierarquizar e construir aquilo que eu acho que é fundamental, que é construir a equação certa. Perceber quais são os problemas, como é que se formula a equação e, a partir daí, tentar resolver a equação. E havia duas coisas que eram muito importantes: primeiro, tinha de se fazer tudo num curto espaço de tempo – muito curto porque a missão tinha a duração de dois anos e nós tínhamos de ter, supostamente, todos os edifícios a funcionar onde as pessoas possam trabalhar normalmente. Depois, havia a questão do financiamento – havia vários fundos que participaram na reconstrução, uns da ONU outros através do Banco Mundial, e era preciso conjugá-los. Depois, havia vários tipos de projetos – de grande escala e de menor escala – e, a certa altura, apercebi-me de que se todos estes processos fossem incorporados na ONU o que iria acontecer é que íamos fazer uns concursos públicos aos quais só as grandes empresas é que podiam concorrer, iam ser só empresas estrangeiras, todo este financiamento que entraria, rapidamente iria sair… O que eu tentei fazer, dentro da ONU, foi definir pacotes diferentes. Ou seja, agrupar alguns edifícios que claramente precisam de maior capacidade para serem executados rapidamente, e aí não há alternativa a não ser ir buscar grandes empresas, que conseguem dar a resposta rapidamente, mas os edifícios de pequena escala, podiam ser feitos por empresas locais. Existia imensa mão de obra no país, que era basicamente gerida por uma série de empresas indonésias, na altura, e havia duas ou três com o mínimo de estrutura. E o meu trabalho, nessa altura, foi andar pelos distritos todos a fazer sessões de esclarecimento e a tentar mobilizar as pessoas que tinham o mínimo de know-how para se juntarem e fazerem pequenas empresas para poderem concorrer a pequenas obras.
Trabalhar para as Nações Unidas tinha graça porque eu tive de montar uma equipa e esta equipa tinha engenheiros do Nepal, arquitetos de todas as partes do mundo… muitas vezes, eram enviadas pelo sistema sem ter qualquer noção do sítio para onde iam, foi muito difícil montar esta equipa. Senti que havia uma grande dificuldade, da parte da ONU, em encontrar as pessoas certas para o lugar certo. E não conseguíamos fazer o trabalho enquanto não conseguíssemos juntar todas aquelas pessoas de forma a elas não se sentirem completamente inúteis. Tínhamos um duplo trabalho! Eventualmente as coisas foram melhorando e foram resultando e fomos conseguindo trazer para a equipa pessoas com um perfil mais adequado, mas foi uma grande dificuldade. E, desde logo, tentámos envolver timorenses e pessoas que tivessem alguma relação com Timor e que tivessem alguma formação ou experiência.
© Pedro Frade – Todos os direitos reservados
Numa segunda fase, passámos para o projeto da reabilitação escolar, que foi um plano financiado por doadores e administrado pelo Banco Mundial. Fazia parte do plano da Indonésia a ocupação do território; o domínio político garantido através da presença dos militares mas, sobretudo, através das escolas, da educação e da instalação de uma série de empresas e indústrias e de criação de trabalho. Havia escolas e casas para os militares todos os aglomerados em Timor…. Houve muita construção, desde os anos 70 até ao final do século passado, mas a maior parte daquelas escolas já não fazia muito sentido. E, portanto, houve um grande projeto de mapeamento escolar para definir quais fechavam, quais as que se poderia melhorar e quais é que não fazia sentido existirem. E o que nós fizemos foi, basicamente, um plano para definir diferentes escalas de projeto e aqui, pela primeira vez, se punha a questão da arquitetura. Até aqui, o que fazíamos era definir uma série de standards mínimos de construção, infraestruturas técnicas e de acabamentos, mas nas escolas estávamos a criar a partir do zero.
Já tinha existido uma equipa anterior, com quem não tinha corrido nada bem, porque chegaram lá já com um modelo completamente imposto. E o que é que eu fiz? Montei uma equipa de timorenses, com mais arquitetos e engenheiros que levei de Portugal e da Austrália, e estivemos, de certa forma, a desmontar o modelo da escola. Fomos perceber quais eram os modelos que eram conhecidos no território, fomos ver os indonésios, outros modelos já usados pelo Banco Mundial noutras situações idênticas, modelos anteriores, até ao tempo português, e fomos tentar analisar quais eram as vantagens e desvantagens de cada um e como é que nós podíamos criar um modelo que fosse adaptável às várias topografias do país e que, de certa forma, surgisse desta discussão e deste projeto. Que fosse algo que fosse aceite por todos como o projeto de uma escola para Timor, que, no fundo, era o que estávamos a fazer. Eu lancei as bases desse projeto, mas depois voltei. Mas esse trabalho foi feito e está feito.
Depois, com as Nações Unidas, ainda melhorámos o processo porque tudo tinha de ser, construtivamente, muito simples. E ao mesmo tempo que fazíamos a construção das escolas a ideia era fazer aprendizagem, ou seja, a ideia era fazer o treino das equipas de construção, melhorar a qualidade da construção. Porque, na realidade, era aquilo que faltava. Era muito difícil subir um patamar no desenvolvimento se não atacássemos todos os elementos e todas as ações que interferem numa obra. Depois a equipa que montei, ficou autónoma e com a Independência, decidi vir para Lisboa.
© Pedro Frade – Todos os direitos reservados
E quando voltaste, foi quando decidiste montar um atelier próprio? Como é que foi esse processo?
O tempo de Timor foi muito intenso. Nós trabalhámos das sete da manhã à meia-noite, todos os dias, durante dois anos e pouco. Era muito intenso porque havia uma energia fortíssima na cidade.
Nunca mais me esqueço que, quando chegámos lá, a cidade ainda cheirava a fumo, a queimado; as chuvas tropicais prolongavam os cheiros da madeira queimada e, durante meses e meses, a cidade cheirava a queimado. Até que, passado um ano, começaram a aparecer os primeiros pássaros. É uma coisa fantástica! De repente, começam-se a ouvir pássaros na cidade e ao fim de dois anos a cidade, de facto, tinha renascido. E nós nem nos apercebíamos disso! Foi uma missão muito especial, porque trouxe pessoas muito novas, com vontade de fazer, e trouxe o melhor que as Nações Unidas tinham na altura. E isso sentia-se porque a vontade de que aquela missão corresse bem era enorme e nós estávamos super empenhados. E, de facto, dá um gozo enorme sentirmos que o nosso trabalho tem um impacto imediato na vida das pessoas. Ao contrário do que acontece com os nossos projetos de arquitetura, que demoram imenso tempo até se conseguirem realizar, nós sabíamos que ali tínhamos uma missão para desenvolver num curto espaço de tempo e os resultados não só são imediatos como são compensadores, porque sabemos que a vida das pessoas mudou, de facto, para melhor.
A seguir vim para Lisboa! Tinha de reiniciar a minha vida, já há muito tempo que não vinha a Lisboa e decidi começar o meu atelier. Tive um pequeno projeto de um apartamento de uma amiga… a seguir, logo nos meses a seguir, fiz um concurso para o Museu de Arte Contemporânea de Elvas, com uma equipa multidisciplinar com o designer de equipamento Filipe Alarcão e o designer Henrique Cayatte e o Arquiteto João Regal e tivemos sorte! Conseguimos ganhar o concurso e foi o projeto de arranque.
Eu não tinha tido grande experiência de projeto pessoal, tinha sempre trabalhado em ateliers e, por isso, este foi o meu primeiro. E foi um ótimo projeto para começar! A seguir a isso, foi o desenvolvimento normal, fazer umas casas e uns concursos, e ter a sorte de ganhar mais uns concursos…
© Pedro Frade – Todos os direitos reservados
E essa experiência de coordenares equipas muito grandes (noutros ateliers) dá-te vontade de aumentares o atelier ou, pelo outro lado, um atelier mais pequeno, como procuraste em Nova Iorque, é o teu modelo de atelier?
Aí há uma questão que é decisiva e fundamental. Uma coisa é nós gerirmos uma empresa, ou estrutura, ou organização, para a qual não temos qualquer responsabilidade em pensar na gestão financeira e em custos – como quando trabalhamos na ONU ou noutra organização, o lucro não é o objetivo e há sempre alguém que trata dessa parte e nós concentramo-nos só em resolver o nosso trabalho – quando falamos da organização de uma grande estrutura de atelier e temos de perceber em como se financia tudo isto, é completamente diferente. Mas, de facto, se fosse um objetivo meu ter um atelier que tinha de crescer imenso, teria sido esse o caminho que teria procurado desenvolver, mas não, não foi. Sempre apostei em ter um atelier relativamente pequeno, onde consigo estar envolvido em todas as fases do projeto, desde a conceção até ao acompanhamento de obra, e, sobretudo, na relação com o cliente, que é das coisas que mais prazer me dá e à qual eu dou bastante importância. Não que tenha alguma coisa contra os grandes ateliers, acho que deve ser fantástico desenvolver projetos enormes e com imenso impacto, mas, de facto, a pequena escala é a forma como me estruturei.
© Pedro Frade – Todos os direitos reservados
Contaste-nos a tua experiência enquanto aluno, por um lado na Escola do Porto com uma metodologia muito clara, e depois, como aluno Erasmus, em Inglaterra, com uma liberdade muito diferente. Tem sido uma constante nos últimos entrevistados, a ideia de dar aos alunos aquilo que eles não tiveram enquanto alunos, tentar ser o professor que nunca tiveram… Como é que passas essas experiências para a tua experiência enquanto professor?
Não há uma preocupação minha de tentar dar aos alunos aquilo que não tive. Acho que tive a sorte de ter uma escola que me permitiu ter uma formação muito sólida, que foi a Escola do Porto. Que me deixou marcas, ainda hoje sinto imensas vantagens na forma em como desenvolvo o projeto, em relação à metodologia; mas também sinto que ela é, de certa forma, castradora de outras possíveis abordagens. Porque, de facto, foi muito marcante e isso condiciona a minha maneira de trabalhar, há uma série de opções que eu não tomo, simplesmente porque sei que aquele sentido não é a forma como o meu raciocínio está estruturado.
A relação entre a forma como eu olho para o meu percurso como aluno – e de como eu posso transpô-lo para a minha aprendizagem como professor e para a relação com os meus alunos -, no fundo é muito direta! Acho que é importantíssimo que os alunos sintam, no professor, alguém que lhes está a direcionar uma pesquisa e que lhes está a balizar o seu desenvolvimento, mas tem que ser o próprio professor a definir e abrir o campo de abordagem. E a metodologia, muitas vezes, passa por isso.
Por exemplo, eu comecei a dar aulas ao 1º ano, antes da Autónoma, ainda na Universidade Moderna, quando o professor Ricardo Carvalho me convidou (na altura ele era lá professor, estava também o professor José Adrião), e comecei logo a perceber que havia um campo de pesquisa enorme e que podíamos fazê-lo logo no 1º ano.
O 1ºano, para mim, é um ano muito especial para um aluno porque, se correr bem, se o professor for bom, e se o aluno estiver minimamente interessado, é um ano em que conseguimos incutir nos alunos o fascínio pela arquitetura! É o ano em que conseguimos deixar lá uma semente que depois o aluno vai desenvolver, com a cultura que vai adquirindo com o percurso na escola.
Mais tarde fui convidado pelo (Manuel) Graça Dias para vir para a Universidade Autónoma, e fui assistente dele, com exercícios muito interessantes, e também fui desenvolvendo outros, e fomos tentando diversificar um leque de exercícios que permitam aos alunos perceber a capacidade transformadora da arquitetura. Como esta pode, de facto, transformar a vida das pessoas, e como um espaço com configurações diferentes, pode ter um efeito completamente diferente na forma como nós o vivemos… No fundo, conseguir uma série de ferramentas que lhes permita compreender o mundo à sua volta, e como o pode transformar. Esta compreensão é fundamental! Depois, obviamente, é preciso introduzir cultura! Cultura arquitetónica. É preciso que olhem para o mundo que está à sua volta, não com um olhar de adolescente mas com um olhar de um jovem adulto que está a descobrir e a construir a sua formação para uma eventual profissão.
© Pedro Frade – Todos os direitos reservados
Nos últimos anos começaste a lecionar, também, no 4ºano?
Sim! O 1ºano é muito intenso! E quando chegamos a um ponto em que sabemos que já não estamos a 100%, quando há um desgaste e antes que ele se manifeste, é preciso mudar. E eu achei que era importante fazer uma transição para outra fase no percurso da aprendizagem em que já há mais conhecimento arquitetónico, já há mais cultura, já há mais desejo pela investigação (que é algo que, no 1ºano, ainda não existe), e tenho estado com o professor Nuno Mateus a seguir o 4ºano, na UAL.
Temos desenvolvido uma abordagem que pode ser muito estimulante para os alunos, que é a ideia de nós conseguirmos desenvolver uma metodologia de trabalho sobre várias cidades europeias e potencialmente em qualquer parte do mundo. Como se conhece e compreende o território, como se abordam os sistemas de transformação da cidade, os sistemas morfológicos, as topografias, como conseguimos compreender a cidade, numa primeira análise, para depois conseguirmos, de uma forma operativa, numa abordagem muito próxima áquilo que é a abordagem do trabalho que se desenvolve no atelier – obviamente, não tentando ser mimético mas aproximando de algumas preocupações que nós temos no universo profissional – permitir que os alunos adquiram uma série de ferramentas que lhes permitam, não só ter uma metodologia de trabalho, como ganhar a confiança para perceber que podem chegar a qualquer parte do mundo e têm ferramentas para descodificar qualquer lugar e, a partir daí, desenvolver um projeto. Isso, para mim, parece-me uma aprendizagem cada vez mais útil porque, com a globalização, com a capacidade que hoje temos de ir trabalhar para sítios diferentes e com a necessidade que temos de o fazer. E acho que a escola tem essa obrigação. De preparar os alunos para, pelo menos, fazê-los ver que o campo de atuação do arquiteto pode ser em qualquer parte do mundo. Isso parece-me ser fundamental.
Obviamente, houve sempre arquitetos a viajar, mas a partir dos anos 90, a mobilidade é muitíssimo diferente. Simultaneamente, aquilo que era o trabalho clássico num atelier também é hoje muito diferente. Que conselhos davas a um aluno finalista hoje? Ou seja, se acabasses o curso hoje, qual seria o teu percurso? O que é que um aluno de hoje tem que não tinhas, que ferramentas é que importa ter para cada um escolher a sua rota?
Eu acho que as ferramentas são fundamentais. Acho que podemos ter todos a ilusão de que, com pequenos conhecimentos, podemos ir para o mundo inteiro fazer coisas fantásticas e isso não é verdade. Não é verdade, porque temos de ter conhecimentos minimamente sólidos e temos de ter a confiança para chegar a um sítio e saber o que se pode fazer, e procurar ver como se pode fazer aquilo que queremos fazer. Porque coisas para fazer no mundo há em todo o lado! Agora, o que interessa é perceber aquilo que, de facto, pode transformar a vida das pessoas e ter impacto na nossa própria vida, em termos de retorno que possamos daí tirar.
O conselho que dou é que invistam numa formação sólida. Têm de ter uma experiência de projeto a sério, num atelier de que gostem e que faça um trabalho consistente e de qualidade. Porque isso é a base para depois se poder olhar e partir para qualquer parte do mundo e conseguir ter segurança para se sentir bem e começar a desbravar outras aventuras e outros sistemas. E acho que isso é fundamental porque, hoje em dia, há esta ideia de que nós podemos ir para qualquer sítio, fazer coisas super interessantes e que são super mediatizadas e que nos preenchem as páginas da internet, mas que depois tem muito pouco impacto na vida das pessoas. Acho que há uma certa desproporção, acho que a arquitetura, hoje, é demasiado mediatizada, é um excesso. Acho que é fantástica a maneira como a fotografia de arquitetura revolucionou a forma como se comunica a arquitetura, sem dúvida nenhuma, mas acho que é um excesso porque, às tantas, é um percurso paralelo. Há uma realidade, que é a arquitetura, a realidade dos edifícios, que tem impacto na vida das pessoas. Outra coisa é todo o universo que acontece em paralelo. E, às tantas, estamos a falar de coisas que são completamente diferentes e isso não é arquitetura. A arquitetura não é uma bolha!