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Marluci Menezes

(Investigadora LNEC) marluci@lnec.pt

 

Para citação: MENEZES, Marluci – As (não) diversidades da Baixa de Lisboa. Estudo Prévio 11. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2017. ISSN: 2182-4339 [disponível em: www.estudoprevio.net]

Recebido a 24 de outubro de 2019 e aceite para publicação a 29 de novembro de 2019.
Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

Resumo

Discute-se o interesse que a diversidade sociocultural, económica e funcional pode ter na promoção da revitalização e salvaguarda dos centros históricos. A título de exemplo, debate-se sobre determinadas características da organização e uso socioespacial da Baixa, em Lisboa, procurando realçar o potencial interesse de uma intervenção que promova uma ocupação social, cultural, económica e funcional diversificada.

Palavras-Chave: diversidade, revitalização, salvaguarda, centro histórico.

 

Introdução

O contexto de partida desta reflexão é o centro histórico de Lisboa. Onde, da premência em lidar com as questões da perda de população, envelhecimento, desvitalização socioeconómica, de degradação do tecido edificado e conservação do património, passou-se a adotar estratégias de intervenção que, em termos gerais, privilegiam a reabilitação do edificado, a requalificação do espaço público e a revitalização socioeconómica a partir de um forte investimento no setor turístico, na economia cultural e na atratividade de setores económicos de média/alta renda. As transformações induzidas por estas estratégias não tardaram em aparecer e sucedem em modo acelerado. No encadeamento destas transformações e, em termos da esfera pública, observa-se um crescente aumento de questionamentos acerca do presente urbano e do que se deseja como futuro para a cidade. Afinal, para quem e para que serve a cidade, nomeadamente o seu centro histórico?

Para o desenvolvimento desta reflexão toma-se, a título de exemplo, o caso da Baixa Pombalina. Comenta-se sobre determinados aspetos da sua organização socioespacial, procurando realçar o premente interesse de uma intervenção integrada que promova uma ocupação social, cultural, económica e funcional diversificada (Menezes, 2010, 2011).

 

Organização socioespacial da Baixa

Numa análise do quotidiano da cidade durante os séculos XVI e XVII, Teresa Rodrigues (1997: 57) assinala que a diversidade da vida urbana em Lisboa concentrava-se na Baixa, sobretudo junto do Terreiro do Paço e da zona da Ribeira do Tejo: “(…) onde se fixaram também as casas e estabelecimentos de comércio com o Império e onde residia a Corte e os grupos mais abastados e influentes, em termos políticos e socioeconómicos. Para o interior ficava o Rossio, outro ponto de intensa atividade”. A autora assinala ainda a diversidade aliada aos modos de ocupação humana do solo, já que “correspondiam atividades económicas distintas e formas particulares de associação e quotidiano” (Rodrigues, 1997: 57).

A cidade do período pós-terramoto representa, todavia, uma rotura com a cidade pré-pombalina. Designadamente esta rotura reflete-se na adoção de uma morfologia urbana de traçado ortogonal, na especialização funcional e numa ocupação social que se pretendia igualmente especializada. Para além de corresponder a uma distinção entre a cidade medieval/barroca e a moderna (França, 1989) [1], a nova cidade que se constituiria a partir da Baixa, caracterizava-se por uma separação entre a cidade burguesa e a cidade popular – sobretudo a parte oriental e associada à uma Lisboa antiga (Malet Calvo, 2011) [3].

A cidade de “cariz iluminista” refletida na Baixa pós-terramoto, “era então concebida como uma cidade comercial, utilitária e burguesa, orientada no sentido do desenvolvimento económico, cujo objetivo era a modernização de Portugal” (França, 1989: 34). O que, em outras palavras, definiu a “substituição de uma vida de corte de outrora por uma vida «moderna», quer dizer, por uma vida «útil», comercial, desembaraçada do palácio de um rei tornado inútil” (França, 1977: 123). Uma cidade moderna e comercial que, entretanto, forçaria a deslocação do comércio mais popular em direção norte-oriental, com destaque para o eixo Rossio-Praça da Figueira (Malet Calvo, 2011).

Como observado por Matias Ferreira: “Num tal contexto, é, pois de sublinhar as componentes sociourbanísticas decorrentes daquele movimento de centralização urbana da capital do país, centralização que se apoia, por um lado, numa diferenciação social bastante acentuada – através de um processo de especialização corporativa de «artes e ofícios» na Baixa Lisboeta – e, por outro, numa diferenciação urbanística, de que a demarcação social e simbólica da Praça do Comércio, «praça real por excelência», e o Rossio «lugar do povo», traduzem emblematicamente o próprio modelo sociourbanístico que haveria de determinar, a partir de então, o «modo de urbanização» da cidade de Lisboa” (Matias Ferreira, 1987: 84) [2].

A Baixa Pombalina desenvolve-se, então, num traçado ortogonal organizado em quarteirões, cujo esquema modular se espelha numa rede de ruas longitudinais – que fazem a ligação entre a Praça do Comércio (antigo Terreiro do Paço) e o Rossio – e ruas transversais que se entrecruzam em ângulos retos, sendo a Rua Augusta o eixo central. A funcionalidade da Baixa identifica padrões específicos de organização do espaço, onde os edifícios urbanos foram sobretudo destinados ao arrendamento e organizados de modo a que os pisos térreos tivessem uma função comercial e os pisos superiores (3 pisos com tipologia esquerdo/direito) uma função habitacional e um telhado com trapeiras alternadas. Entretanto, a função habitacional foi sendo alterada em decorrência do tendencial aumento da atividade terciária­. Neste sentido, Teresa B. Salgueiro (2004) refere uma segregação funcional que refletia a própria morfologia urbana e ortogonal da Baixa, onde de sul para norte ter-se-ia a administração pública e local, relacionadas com a Praça do Comércio e a Praça do Município, seguindo-se o setor financeiro, depois o setor comercial e, por fim, as áreas de atividades lúdicas (cafés, cinemas, teatros) e identificadas com o Rossio e os Restauradores. Numa cota mais elevada surge ainda o Chiado, cujas atividades lúdicas proporcionadas seguem em direção ao Bairro Alto. Já no sentido leste para oeste, observa-se uma segregação funcional socioeconomicamente diferenciada e relacionada com a “clientela e standing de pontos de venda”.

Na primeira metade do século XX as ruas principais da Baixa e do Chiado “concentram o comércio de maior nível”, enquanto as ruas secundárias e orientais da Baixa seriam sobretudo “ocupadas por serviços de apoio à população empregada, com menor representação dos serviços financeiros e menor especialização do comércio, aparecendo unidades destinadas a profissionais, grossistas e um comércio popular, o centro dos pobres e remediados” (Salgueiro, 2004: 215-216). Uma nova forma de fazer e usar a cidade refletia-se na recombinação de um conjunto de aspetos sociais, culturais, económicos e funcionais que viriam a contribuir para mudanças em termos da intensidade e da diversidade da vida urbana que se refletiram sobre a Baixa e que, juntamente com o Chiado, se assumiria como eixo central da cidade, de um ponto de vista político e cultural (Salgueiro, 2004). Nesta época, “(…) frequentavam-se os cafés do Rossio ou do Chiado, passeava-se para ver montras, para ver e ser visto na Baixa e, especialmente, no Chiado, ia-se à Baixa para fazer compras de artigos não diários, para ir ao banco, para tratar de vários assuntos e muitos trabalhavam na Baixa” (Salgueiro 2004: 215). Mas, como também salienta a autora, a partir dos anos de 1970, a Baixa perderia a sua importância face à expansão da cidade e à deslocalização de muitos dos serviços municipais e administrativos ali existentes para as Avenidas Novas e para a zona do Marquês de Pombal. O incêndio no Chiado em 1988 foi um acontecimento que marcou definitivamente o acelerar da desvitalização da Baixa, situação sobretudo agravada com a edificação do Centro Comercial das Amoreiras (1985), seguindo-se-lhe outros centros comerciais.

Entretanto, com a reconstrução do Chiado a vida urbana ganha nova vitalidade. Em 2004, Teresa B. Salgueiro já apontava a tendência para um comércio de alto standing no Chiado pós-incêndio e já reconstruído, bem como um comércio de qualidade inferior na Baixa: “o comércio da Baixa habituara-se a ter uma posição hegemónica e pouco fez para captar novas clientelas e para se modernizar. E foi envelhecendo, como os imóveis e o ambiente da área do qual faziam parte e para o qual contribuem” (Salgueiro, 2004: 221).

As funções urbanas iniciais foram-se alterando e conduzindo também a transformações sociodemográficas que viriam alterar a dinâmica urbana local. As funções associadas aos serviços passaram a ter uma presença saliente, acentuando a tendência para a terciarização local. Em paralelo assistia-se à diminuição da expressão residencial e à alteração das funções comerciais, administrativas e industriais inicialmente predominantes. Ao longo da segunda metade do século XX estas tendências refletiram-se no esvaziamento da população residente, na diminuição dos serviços e do emprego e respetiva estagnação do comércio tradicional.

 

 

Algumas recentes perspetivas de revitalização da Baixa: breves notas

Em trabalho sobre a Baixa Pombalina coordenado por Guerra (1999) é considerado que, a partir da década de 1980, esta área da cidade se caracterizaria pelos seguintes principais problemas:

  • Alteração de funções, perda da população residente e terciarização acentuada (com a transferência generalizada da função residencial para outras funções), verificando-se uma tendência para o predomínio do comércio de vestiário e calçados, serviços financeiros e pessoais.
  • Significativas alterações na estrutura etária da população residente, com diminuição dos jovens e aumento do número de idosos residentes, envelhecimento do parque habitacional, entretanto deficiente em indicadores de conforto.
  • Diminuição do número de população ativa e aumento do número de reformados.

Em 2000, ao assinalar o valor patrimonial da Baixa no livro “A Baixa Pombalina: Passado e Futuro”, Maria H. Ribeiro Santos sublinhava o estado de degradação da mesma, assinalando mais tarde a urgência de “Um Plano para a Baixa” (Santos, 2001) [4]. A situação dedegradação e abandono do tecido edificado e de desvitalização socioeconómica da Baixa voltaria, em 2006, a ser objeto de atenção, culminando com a constituição de um Comissariado Baixa-Chiado. Neste período, num Relatório elaborado sobre a “Proposta de Revitalização da Baixa-Chiado” em setembro de 2006, é evidenciado o termo mistura funcional, no âmbito de uma perspetiva de revitalização a ser ali acionada. Segue a referida indicação:

“A Baixa é um espaço com uma grande concentração de atividades onde os serviços públicos e privados, o comércio, os equipamentos culturais e religiosos têm uma presença preponderante mas onde a residência, permanente ou temporária, joga um papel essencial na vitalidade da área ao longo de todo o ciclo do dia. É esta a mistura de funções sabiamente organizada por estratos – o sub-solo da arqueologia e do metropolitano, o rés do chão e a sobreloja do comércio, os primeiros pisos dos serviços, os últimos de habitação e as coberturas dos terraços e miradouros – que vai propiciar uma intensa vida dos edifícios e do espaço público” (Proposta de Revitalização da Baixa-Chiado, Relatório de setembro de 2006: 21).

Na sequência do “Projeto de Revitalização da Baixa-Chiado” apresentado pelo Comissariado da Baixa é elaborado o “Plano de Pormenor de Salvaguarda da Baixa Pombalina” (Publicado no Diário da República 2ª Série, n.º 55 de 18 de março de 2011). No Relatório que enquadra o referido Plano de Salvaguarda são defendidas três ideias de base, designadamente:

“1) Conquistar uma função comercial e de lazer relevante para a Baixa-Chiado, como centro histórico de vocação comercial e turística; 2) Dinamizar o surgimento de novas atividades, privilegiando a zona com instalação de centros de decisão e criatividade públicos e privados; 3) Dotar a Baixa-Chiado de um espaço residencial específico, superando as limitações físicas e de mobilidade e oferecendo soluções de comércio de proximidade para os moradores” (Relatório de 14.02.2011, p. 16).

 

Estas três ideias de base são operacionalizadas em sete projetos prioritários e que, no entendimento dos relatores, prefigurariam uma intervenção integrada. Os projetos citados respeitam a: a) Recuperação e reabilitação do edificado; b) [Criação Frente Ribeirinha; c) [Dinamização] Um novo Terreiro do Paço; d) [Dinamização] Pólo cultural; e) [Criação] Espaço comercial a céu aberto; f) Construção de um espaço público de excelência; e g) Reforço da mobilidade interna e externa.

Neste Relatório, a revitalização da Baixa é ainda considerada a partir de diferentes níveis de intervenção:

“ (…) repovoamento, recuperação do edificado, qualificação do espaço público, criação de atividades inovadoras e de qualidade, reestruturação da estrutura viária e da mobilidade (…), envolvendo três ideias chave: uma função comercial e de lazer relevante, uma zona renovada de localização de atividades de decisão e criativas, um “modelo específico de habitação”, superando as limitações físicas e de mobilidade com soluções inovadoras e oferecendo soluções de comércio de proximidade” (Relatório de 14.02.2011, pp. 137-138).

 

Um dos eixos dinamizadores do Plano é o “repovoamento” da Baixa, entretanto explicitado em função do seu “cenário demográfico” e, curiosamente, em termos do “turismo”, o que é um indicador das ideias previstas para o local e que se interliga com a ideia de revitalização dos bairros de Lisboa a partir do turismo. Refira-se que a ideia de “Bairros de Turismo”, surge como particularmente expressiva no âmbito da Semana de Reabilitação Urbana de Lisboa, que decorreu entre 19 e 26 de março de 2014.

Mas, voltando ao referido Plano de 2011, observa-se que a ideia de repovoamento é referida do seguinte modo:

 

“Trazer para a Baixa novos residentes permanentes e temporários que contribuam para a povoar e reequilibrar do ponto de vista etário, socioeconômico, etc., promovendo habitação de várias tipologias, residências universitárias e para idosos, casa própria e arrendamento, hotelaria e alojamento local, etc., é, portanto, uma aposta forte deste plano já que, se acredita, seja determinante à sua revitalização. (…). Paralelamente dever-se-á promover o apoio às populações afetadas por fenómenos de desqualificação, pobreza e exclusão social” (Relatório de 14.02.2011, p. 139).

 

No mesmo Relatório (de 14.02.2011, p. 140) é ainda referido o interesse de que na Baixa haja uma “distribuição tripartida de forma equitativa entre as três grandes funcionalidades”, designadamente: habitação, serviços e comércio. Relativamente ao eixo dinamizador do “turismo”, o Relatório identifica as potencialidades da Baixa para a dinamização desta atividade, bem como os problemas que mais afetam os visitantes do local, sendo observado o interesse em apostar-se numa revitalização que tenha em consideração os seguintes aspetos:

“(…) reconversão de edifícios de traça pombalina em pequenos e médios hotéis de charme (capacidade entre 50-100 unidades de alojamento), na criação de equipamentos culturais de visitação e instalação e exploração de restaurantes e esplanadas de qualidade.” (Relatório de 14.02.2011, p. 143)

Em teoria, as iniciativas previstas vislumbravam – umas vezes mais diretamente, noutras mais indiretamente – uma perspetiva de mistura, sobretudo enquanto promoção da mistura funcional [5]. No entanto, estas iniciativas não são necessariamente explícitas relativamente ao que se entende por estas perspetivas de mistura – social e funcional.

 

De que trata ou pode tratar a revitalização urbana?

Muitos centros históricos que são ou foram objeto de intervenção urbana têm vindo a ter uma valorização fundiária e imobiliária em função da melhoria das condições de habitabilidade, observando-se ainda casos em que a função terciária tende a predominar sobre outras, nem sempre promovendo a sustentabilidade urbana e a salvaguarda do património numa perspetiva mais abrangente e a médio-longo prazo. Os antigos residentes nem sempre conseguem suportar as situações de especulação imobiliária, enquanto que o comércio de proximidade e mais vocacionado para satisfazer os residentes encontra dificuldades em manter-se. Por outro lado, os potenciais jovens moradores nem sempre conseguem suportar as rendas elevadas e os casais com filhos sentem a falta de equipamentos específicos (tais como creches e escolas, parques infantis, comércio local variado). Mesmo quando a revitalização dos espaços públicos e de comércio passam por uma alteração em toda a sua estrutura, frequentemente se verifica que os mesmos passam a estar orientados para grupos sociais específicos, muitas vezes, associados a uma ocupação provisória, à gentrificação e ao turismo [6].

Voltando ao caso da Baixa é, todavia, de considerar que se até a década de 1990 manteve-se a aposta na realização de centros comerciais de grande dimensão, sobretudo nas extremidades dos limites da cidade e mesmo na sua envolvência, a par da sua crescente desvitalização, o virar do século viria demarcar uma outra estratégia urbana e que passaria a estar intimamente associada ao comércio. Esta nova estratégia considera o consumo como linha estruturante da “problemática de reorganização territorial, observando que a localização dos equipamentos comerciais “passa a ser usada como instrumento de intervenção urbanística” (Graça, 2007: 234). Ao que, segundo Miguel S. Graça, a reabilitação urbanística passou a incidir com particular atenção na “promoção e do enaltecimento histórico e funcional”, iniciando uma outra dinâmica socioeconómica no eixo Baixa-Chiado/Marquês de Pombal, de que é exemplo a relação entre o Centro Comercial dos Armazéns do Chiado e o Tivoli Fórum (Graça, 2007: 235).

A revitalização de cunho urbano-comercial que se faz notar na Baixa tem contribuído para não só acentuar a terciarização local, como realçar uma especialização turístico-cultural. O que, na esfera pública, tem levantando muitas vozes a favor desta especialização funcional, mas também contra [7]. Em 2014 uma notícia no jornal Público intitulada “Há ou não hotéis a mais projetados para a Baixa Pombalina?” chamava a atenção para esse facto (Boaventura, Público: 2014.03.20). Nessa notícia o então Vereador do Urbanismo defendia “uma mistura de usos, com residentes, emprego e comércio”. Na altura o autarca admitia também poder-se estar a “assistir” a “«uma coisa perversa» nesta zona: a transformação de «muita habitação» em habitação de curta duração”.

Desde então a questão da “turistificação de Lisboa”, considerada como algo que somente tende a aumentar (Gorjão Henriques, Público, 2014.08.31), torna-se tema recorrente na comunicação social. A zona da Baixa recebe, todavía, um especial destaque nestas noticias, já que uma “Avalanche turística está a destruir a qualidade de vida na Baixa, dizem residentes” (Alemão, O Corvo, 2015.03.16); “Lisboetas sentem-se cada vez mais acossados pelos turistas” (Nogueira, Público: 2015.06.01);“Porta sim, porta não, a Baixa está entregue aos turistas” (Soares, Público, 2015.11.08); “Um quarteirão inteiro para (mais) um hotel de charme” (Soares, Público, 2015.11.08).

Em junho de 2013, já o Presidente da Junta de Freguesia de São Nicolau havia sublinhado que:

“O que presidiu ao Plano de Pormenor e Salvaguarda da Baixa Pombalina [aprovado em dezembro de 2011] foi a reabilitação do seu edificado e a regeneração da sua atividade económica e habitacional. Não foi transformá-la num condomínio fechado de hotéis de charme, ligados a fundos imobiliários nacionais e estrangeiros, que estão a destruir o tecido econômico e empresarial da Baixa. (…). Estamos a assistir à gentrificação da baixa. (…) Está tudo vocacionado para o turista”. (cf.: http://ocorvo.pt/2013/06/11/a-baixa-de-lisboa-esta-a-mudar-de-rosto/)

É ainda de assinalar que, a par de uma presença quotidiana de imigrantes e descendentes na região da Baixa – com destaque para o Rossio e o Largo de São Domingos, esta dimensão social, cultural e económica do uso e ocupação do espaço é pouco – ou mesmo nada – valorizada nas propostas de revitalização. Como refere Daniel Malet Calvo (2011a):

“(…) atualmente, encontramos a diária e povoada concentração das classes populares de hoje em uma das suas esquinas, algo que a olisipografia conservadora se nega a reconhecer: os luso-africanos souberam ressuscitar o Rossio como espaço de encontro e convivência, desmentindo os lamentos da olisipografia sobre o declive das funções históricas da praça”.

 

Notas finais

O caso da Baixa Pombalina, em Lisboa, foi aqui pretexto para abordar a premente necessidade de uma intervenção urbana integrada aliada à uma perspetiva de promoção da diversidade – social, cultural, económica e funcional. Abordando alguns aspetos da sua organização socioespacial ao longo da história, observou-se que a diversidade ali presente não esteve imune aos processos de diferenciação e distinção social, o que viria a refletir uma ocupação desigual do seu território. Mostrou-se ainda que a alteração das suas funções urbanas iniciais, com a consequente terciarização e significativa alteração do perfil sociodemográfico, aliadas a posterior desvitalização da sua atividade comercial nas últimas décadas do século XX, reverteram numa perda da sua posição na dinâmica urbana. Com o virar do século, a sua emergente situação de desvitalização viria a mobilizar a esfera pública, conduzindo a um conjunto de tentativas de recondução do seu papel no contexto mais abrangente da cidade. A estratégia de reabilitação que se destaca aponta para uma perspetiva urbano-comercial e partidária de uma exaltação histórico-patrimonial, mas nem sempre refletida numa efetiva salvaguarda do património urbano. Na segunda década do século XXI as transformações verificadas são significativas, como se realizam de modo acelerado. O que se manifesta de modo expressivo é a tendência para uma apropriação turístico-cultural do lugar da Baixa. O que, em termos gerais, poderá comprometer uma revitalização que, aliada à uma efetiva salvaguarda do património cultural, paralelamente perspetive a inclusão social através da diversidade.

Para finalizar, vislumbra-se uma perspetiva de intervenção integrada que, salvaguardando o seu património, assente numa ocupação diversificada do território em termos das suas características sociais, funcionais, económicas e culturais. E, no âmbito desta perspetiva de invenção, será fundamental considerar um melhor entendimento da relação entre diversidades, diferenças e desigualdades, já que aqui reside uma hipótese de invenção de um programa de inclusão social.

 

Notas

[1] “A empresa pombalina, na sua brutal operação cirúrgica, marca uma etapa fundamental, separando duas Lisboas – a medieval e barroca e a moderna, que o século XIX desenvolverá” (França, 1989: 53).

[2] O autor seguidamente observa que, em finais do século XIX, a racionalidade e a funcionalidade do modelo pombalino de urbanização ficaria “bloqueado nas suas próprias virtualidades de expansão e de valorização da capital do país” (Matias Ferreira, 1987:84), vindo tendencialmente a dar lugar a uma organização urbana que passaria a incluir componentes periféricas inscritas numa lógica centro-periferia.

[3] Para uma compreensão crítica dos usos sociais da Baixa Pombalina, bem como de um suceder de propostas de revitalização, é fundamental consultar o trabalho de Daniel Malet Calvo (2011). Pode-se, através desta leitura, verificar a crítica à excessiva patrimonialização das características monumentais do território, concebendo que esta perspetiva de intervenção projeta a fissura urbana criada pela empresa pombalina quando da sua reconstrução.

[4] “Para a área do Plano, segundo os dados dos censos de 2001 ao nível da subsecção estatística, a população residente apurada foi de 1772 habitantes, o número de alojamentos existentes de 1606 Fogos, e o de alojamentos vagos de 698 Fogos” (cf. Relatório que enquadra o Plano de Salvaguarda da Baixa Pombalina, 14.02.2011, p. 140).

[5] O livro “Mixed Communities: Gentrification by Stealth?” (Bridge, Butler & Lees 2012) realiza uma interessante reflexão sobre a atual tendência para a substituição da noção de gentrificação, associada a um sentido negativo, pela de mistura, entretanto positivada, nomeadamente pelo discurso político e técnico quando da exposição das políticas e de novas perspetivas de intervenção urbana. Os autores demonstram, contudo, que a substituição de um termo pelo outro, isto é, de gentrificação pelo de mistura, não necessariamente altera o tipo de política e de intervenção pretendidas.

[6] Para aprofundar o assunto é de interesse consultar Luís Mendes (2006), como também os volumes: 1-2 [132-133] da revista “Espace et Societé” (2008) sobre a temática da gentrificação urbana; 16 [32] dos “Cadernos Metrópole” (2014) sobre “desenvolvimento desigual e gentrificação da cidade contemporânea”.

[7] O Dossier n.º 256 do Jornal Esquerda Net (2016.10.08) sobre “Turismo – Cidade e Gentrificação” realiza uma compilação de 19 artigos de interesse para refletir sobre a atualidade de Lisboa.

 

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NOGUEIRA, Regina – “Lisboetas sentem-se cada vez mais acossados pelos turistas”, in Público, 2015.06.01.   Disponível em: https://www.publico.pt/2015/06/01/local/notícia/lisboetas-sentemse-cada-vez-mais-acossados-pelos-turistas1697332

SOARES, Marisa – “Porta sim, porta não, a Baixa está entregue aos turistas”, in Público, 2015.11.08.  Disponível em: https://www.publico.pt/2015/11/08/local/notícia/hoteis-na-baixa1713580

SOARES, Marisa – “Um quarteirão inteiro para (mais) um hotel de charme”, in Público, 2015.11.08. Disponível em: https://www.publico.pt/2015/11/08/local/notícia/um-quarteirao-inteiro-para-mais-um-hotel-de-charme1713576

 

Documentos e Legislação consultada

Diário da República 2ª Série, n.º 55 de 18 de março de 2011.

Proposta de Plano de Pormenor de Salvaguarda da Baixa Pombalina. Relatório de 14.02.2011. Disponível em < http://www.cm-lisboa.pt/viver/urbanismo/planeamento-urbano/planos-eficazes/plano-de-pormenor-de-salvaguarda-da-baixa-pombalina>. Acesso em: 15 janeiro 2017.

Proposta de Revitalização da Baixa-Chiado, Relatório de setembro de 2006 – Anexos Técnicos. Câmara Municipal de Lisboa. Disponível em . Acesso em: 15 janeiro 2017.

 

Biografia

Marluci Menezes: Geógrafa, Mestre e Doutora em Antropologia, Investigadora no LNEC, onde desde 1991 estuda as culturas urbanas de uso e apropriação do espaço, de conservação do património e de reabilitação urbana. Foi Coordenadora do Núcleo de Ecologia Social/LNEC (maio 2009/2013). Na área da intervenção socio-urbanística, coordenou o Apoio Técnico-Metodológico ao Projeto Velhos Guetos, Novas Centralidades (fundos EFTA). Presentemente estuda as questões socioculturais associadas ao uso e conservação de recursos culturais, às dinâmicas de adaptação aos processos de transformação urbana, e à relação entre património material e imaterial na conservação do património arquitetónico.