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João Ferrão

Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa

 

Para citação: FERRÃO, João – Pessoas, casas e cidades: a trilogia de um arquiteto-cidadão. Estudo Prévio. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2016. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]

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Resumo

A sua influência, decisiva em relação ao modo como evoluíram em Portugal o conceito e os critérios construtivos da designada habitação social, fez-se sentir através da palavra, como consultor e “formador” dos que com ele trabalhavam ou o contactavam, e da obra, como arquiteto, e não tanto pela escrita ou por intervenções em encontros de natureza académica e de ações de diálogo ciência-sociedade. Ao Nuno Portas cosmopolita, irrequieto, leitor compulsivo, exímio na reflexividade crítica, interdisciplinar, quase não-arquiteto, opunha-se o outro Nuno (Teotónio Pereira), sempre arquiteto-cidadão, discreto mas assertivo nas suas opiniões e nos seus conselhos, leal aos princípios modernistas, preocupado em garantir uma habitação decente a todos os portugueses e em combater qualquer forma de segregação social urbana.

Palavras-chave:Nuno Teotónio Pereira, cidade, pessoas, atelier-escola, arquiteto-cidadão.

 

© Pedro Frade – Todos os direitos reservados

 

O meu contacto pessoal com Nuno Teotónio Pereira foi tardio. Nunca fiz parte dos vários círculos em que ele se moveu como profissional e cidadão: o mundo das habitações económicas, os chamados católicos progressistas, o seu atelier-que-era-uma-escola, o Movimento da Esquerda Socialista (MES), para dar apenas alguns exemplos. Claro que o conhecia bem enquanto figura pública, ativista contra a guerra colonial e o Estado Novo, defensor de uma habitação digna para todos, preso político libertado de Caxias no seguimento do 25 de abril de 1974. E conhecia também a sua obra, desde os edifícios icónicos à sua intervenção mais recente no âmbito do Polis da Covilhã. Entre nós havia amigos comuns, com destaque para Nuno Portas, e ligações indiretas, umas ténues e temporalmente distantes (caso da escola “Os Castores”, dirigida nos anos 60 por Ivone Leal, onde os seus filhos estudaram e uma das minhas irmãs foi professora de música), outras igualmente frágeis, mas mais recentes (CIDAC, por exemplo).

Tendo Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas uma amizade de décadas e partilhado cívica e profissionalmente tantas iniciativas e experiências, é interessante perceber por que motivos conheço tão bem e há tanto tempo o segundo e contactei tão tardiamente o primeiro. Talvez a principal razão seja simples: a partir de certa altura, o atelier era o centro da vida e o foco de influência de Nuno Teotónio Pereira, enquanto no caso de Nuno Portas foram o LNEC, a Universidade e as múltiplas conferências, palestras e seminários em que participava que o colocaram em contacto com áreas científicas e profissionais muito distintas.

 

Nuno Teotónio Pereira colaborou no Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal (Zona 4 – Estremadura), foi consultor e arquiteto no domínio da habitação social, projetou bairros acessíveis às populações de baixo e médio rendimento. Mas, ao contrário de Portas, a sua atividade não o levou a estabelecer relações duradouras com outras comunidades disciplinares, como a sociologia, a geografia ou o paisagismo, ou a envolver-se ativamente em qualquer associação profissional de urbanistas. Era, e sempre assim se manteve, um arquiteto, um arquiteto-cidadão, um arquiteto com uma visão humanista, social e urbanística, mas um arquiteto.

A sua influência, decisiva em relação ao modo como evoluíram em Portugal o conceito e os critérios construtivos da designada habitação social, fez-se sentir através da palavra, como consultor e “formador” dos que com ele trabalhavam ou o contactavam, e da obra, como arquiteto, e não tanto pela escrita ou por intervenções em encontros de natureza académica e de ações de diálogo ciência-sociedade. Ao Nuno Portas cosmopolita, irrequieto, leitor compulsivo, exímio na reflexividade crítica, interdisciplinar, quase não-arquiteto, opunha-se o outro Nuno, sempre arquiteto-cidadão, discreto mas assertivo nas suas opiniões e nos seus conselhos, leal aos princípios modernistas, preocupado em garantir uma habitação decente a todos os portugueses e em combater qualquer forma de segregação social urbana.

 

Foi já neste século, em 2006, que tive o gosto de estabelecer um contacto pessoal com Nuno Teotónio Pereira, eu como Secretário de Estado do Ordenamento do Território e das Cidades (2005-9), ele como vogal do Conselho Consultivo do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) e membro do Conselho Editorial da Revista Monumentos, uma publicação periódica com um prestigiado passado e à qual se adicionou na altura o subtítulo “Cidade, Património e Reabilitação Urbana”, visando sublinhar o âmbito mais alargado que se pretendia imprimir à Revista. A escolha da sua presença em ambos os Conselhos não foi minha: ela resultou de propostas efetuadas por Nuno Vasconcelos, então Presidente do IHRU. Mas a concordância com as sugestões apresentadas foi imediata.

Iniciou-se, então, um relacionamento irregular mas, creio, reciprocamente enriquecedor. Claro que das reuniões tanto do Conselho Consultivo do IHRU, que se realizavam três ou quatro vezes por ano, como do Conselho Editorial da Revista Monumentos, me chegavam ecos da forma serena, sábia e convincente como Nuno Teotónio Pereira intervinha, opinava, aconselhava, influenciava orientações e decisões nas diversas matérias em debate, com destaque para a habitação “socialmente acessível” e para as intervenções de regeneração em áreas urbanas e periurbanas.

 

Foi neste contexto que nos encontrámos e falámos diversas vezes. Quanto aos temas das nossas conversas, é fácil adivinhá-los: como desenhar políticas eficientes e sólidas nos domínios da habitação, da reabilitação e do urbanismo, não a partir de teorias abstratas mas dos ensinamentos que era possível retirar tanto de casos bem-sucedidos como de soluções interessantes nunca concretizadas ou de ações bem-intencionadas mas fracassadas. Debatíamos tudo, dos paradigmas de ação (como passar de uma política de habitação social a uma política social de habitação?) aos instrumentos a utilizar (da ideia de Planos Integrados concebida no contexto do III Plano de Fomento / 1968-73 ao Programa Polis ou à então recém-criada Iniciativa Bairros Críticos).

Recordo com particular saudade essas conversas, pela experiência e sageza de Nuno Teotónio Pereira, a que a sua surdez, que obrigava a uma proximidade física maior do que a habitual, acrescentava um ambiente de cumplicidade, intimidade e até ternura, entre quem governava mas precisava de aprender e quem não detinha qualquer poder formal mas comandava a conversa, as ideias, as propostas.

 

A minha saída do Governo e a sua cegueira, primeiro parcial e depois total, abrandaram e, mais tarde, interromperam os nossos contactos irregulares no tempo, mas regulares na previsibilidade dos temas das nossas conversas: as pessoas e a cidade, a cidade para as pessoas. Nunca falámos de arquitetura. E cada vez falámos menos de habitação de interesse social como um tópico autónomo. Pessoas, casas e cidade diluíam-se em conversas sobre a vida humana decente e digna entre dois indivíduos que continuavam a conhecer-se relativamente mal mas que partilhavam o encantamento pelas cidades como constructo civilizacional, neste caso simbolicamente representado pelo “seu” Bairro de Alvalade.

O Prémio Universidade de Lisboa 2015 foi atribuído a Nuno Teotónio Pereira. O discurso de elogio foi proferido por Nuno Portas, seu amigo e companheiro de sempre. O primeiro não teve força física suficiente para comparecer à sessão de entrega do prémio. O segundo não encontrou força psicológica para ocultar a sua emoção durante a leitura do discurso. Os presentes, que ocupavam a sala magna da Reitoria da Universidade de Lisboa, viveram, quase constrangidos, um momento único: a do encontro, não físico mas espiritual, de dois génios, o arquiteto-cidadão e o arquiteto do território, que marcarão para sempre a história da arquitetura e do urbanismo em Portugal e para quem a urbe (a cidade construída) era vista como o reflexo da civitas (a sociedade e os seus valores) e da polis (a política), e não o oposto.