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Ricardo Carvalho

professor e director do Departamento de Arquitectura da Universidade Autónome de Lisboa

 

Para citação: CARVALHO, Ricardo; – Ler Nuno Teotónio Pereira: uma realidade existencial. Estudo Prévio. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2016. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]

Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

Resumo

O arquiteto Nuno Teotónio Pereira foi um dos protagonistas da reflexão sobre o lugar da arquitetura e da sua experiência coletiva em Portugal. Foi o arquiteto que se interessou sobre o espaço interior da casa, sobre a sua formalização e perceção desta como cidade e ainda sobre uma noção vasta do termo território – no fundo a sequência conceptual da visão moderna do mundo. Com projetos, obras, escritos e ativismo político colocou a reflexão sobre a disciplina num patamar de ambição improvável no contexto português. Este texto propõe uma digressão sobre os seus escritos e baseia-se num dos temas ao qual dedicou parte da sua vida, a habitação coletiva.

Palavras-chave:Nuno Teotónio Pereira, realismo, arquitetura, social, ativismo.

 

© Pedro Frade - Todos os direitos reservados

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Ler Nuno Teotónio Pereira: uma realidade existencial. [1]

“nenhum mal se perdeu

nenhum bem foi em vão

à luz clara tudo arde

mas não pode ser só isto”

 

Arseny Tarkovsky, O Verão Partiu

 

O arquiteto Nuno Teotónio Pereira foi um dos protagonistas da reflexão sobre o lugar da arquitetura e da sua experiência coletiva em Portugal. Foi o arquiteto que se interessou sobre o espaço interior da casa, sobre a sua formalização e perceção desta como cidade e ainda sobre uma noção vasta do termo território – no fundo a sequência conceptual da visão moderna do mundo. Com projetos, obras, escritos e ativismo político colocou a reflexão sobre a disciplina num patamar de ambição improvável no contexto português. Este texto propõe uma digressão sobre os seus escritos e baseia-se num dos temas ao qual dedicou parte da sua vida, a habitação coletiva.

O conceito de realismo norteou alguma da arquitetura mais significativa produzida em Espanha, Itália e Portugal comprometida com a habitação de promoção pública. Josep Maria Montaner localiza os antecedentes do realismo na obra filosófica de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), na literatura de relato social de oitocentos, mas também no Manifesto do Partido Comunista de 1848, no sentido em que “Se parte em busca da realidade, tentando encontrar uma realidade contemporânea e autêntica, longe de convenções, estereótipos e normas estabelecidas (…) uma realidade existencial”[2].

 

O realismo procurou recentrar as questões do destinatário da arquitetura e uma possibilidade de saída do impasse teórico gerado pela propagação das propostas do Movimento Moderno, mantendo contudo uma ligação ao projeto moderno. O arquiteto Ernesto Rogers, a partir de Milão, com a sua produção teórica permitiu ao debate da época reiniciar uma relação com a história, reabilitar o conceito de tradição, manter uma continuidade com o projeto moderno, bem como não perder com o projeto de arquitetura o contacto com a realidade – ou seja, não perder contacto com os homens e mulheres que iriam habitar os espaços públicos e privados, com uma certa memória coletiva da cidade que configurou a comunidade.

Esta tensão entre tradição e modernidade vai permitir aos projetos de arquitetura fazer prevalecer os valores culturais e sociais sobre os valores tecnológicos[3]. Esta posição não-tecnológica vai permitir a reabilitação do conceito de tradição e valorização social da comunidade. Ambicionava-se construir arquitetura não baseada nos valores tecnológicos, mas antes baseada numa ideia de valorização cultural dos materiais e dos espaços. O arquiteto Nuno Teotónio Pereira será um dos responsáveis pela construção de uma passagem, uma conexão, dos postulados do Movimento Moderno a uma ideia de realismo.

“O Inquérito à Arquitectura Regional foi realizado no último momento possível para registar em toda a sua plenitude um mundo prestes a desaparecer. (…) O que aconteceu é que, por dever de ofício, confrontados por um lado pela estreiteza censória do portuguesismo estado-novista, e por outro lado pelo radicalismo sem fronteiras do international style, sentiram a necessidade procurar raízes na arquitectura mais vernácula.”[4]


“Ventos eufóricos de mudança e de progresso, dominados por uma lógica individualista e desordenada, varreram a terra portuguesa, num afã de apagar as marcas de um passado que era preciso sepultar para sempre. A ignorância e uma noção deturpada dos valores patrimoniais, vigentes na época – ambas cultivadas pelo salazarismo – deram livre curso à descaracterização e à destruição de um espaço edificado longamente sedimentado.”[v]

Mas é necessário recuar à receção do Movimento Moderno em Portugal para melhor enquadrar o conceito de realismo. Baseados na crença de possibilidade de construção de uma realidade a partir da arquitetura doméstica, os princípios do Movimento Moderno aspiravam a fundar uma nova experiência do habitar baseada em pressupostos sociais, artísticos e técnicos. A habitação coletiva seria o programa que possuía a capacidade de realizar extrapolações no que diz respeito ao problema da densidade urbana, ao problema dos complexos semirrurais dispersos, às condições precárias das classes desfavorecidas, e, inevitavelmente, à denúncia da especulação imobiliária[vi]. Aí estaria o arquiteto Nuno Teotónio Pereira, procurando afirmar de forma pioneira uma nova abordagem à arquitetura de promoção pública.

“A construção de empreendimentos habitacionais não atingirá os seus objectivos sociais sem um padrão de qualidade ao nível do projecto. Qualidade na concepção interior do fogo, qualidade nas formas de agrupamento das habitações, qualidade da inserção no território.”[vii]

 

Na década de 1940 generaliza-se, progressivamente, o conceito da Cidade-Radiosa, lançado por Le Corbusier, associado à divulgação da Carta de Atenas e das estratégias complementares de densificação pela verticalidade e zoning na atribuição de áreas funcionais dispostas no território. A Carta de Atenas é traduzida para português em 1944, por Nuno Teotónio Pereira e Costa Martins. Inicia-se assim um debate público sobre o habitat, a forma urbana e a habitação coletiva assente em premissas distintas das anteriores, consubstanciado em encontros, publicações e cuja discussão culminará na organização do primeiro congresso de arquitetos em Portugal em 1948.

“Aos arquitectos, finalmente, deve pedir-se-lhes que trabalhem para o esclarecimento da autoridade e da opinião, que aperfeiçoem os seus conhecimentos técnicos e tomem uma mais nítida consciência da sua época, que lutem sem transigências contra todas as pressões e tentações prejudiciais para a integridade e pureza da obra de arquitectura”[viii]

Nesse mesmo período foi criado um organismo semipúblico integrado no Ministério das Corporações, com o objetivo de aplicar capitais provenientes da Previdência, e que iria proporcionar novas soluções no âmbito da arquitetura habitacional coletiva, e uma escala de atuação muito mais ambiciosa – nasce assim em 1947 a Federação de Caixas de Previdência responsável pelas Habitações Económicas. Segundo Nuno Teotónio Pereira este organismo reflete a adaptação do Estado Novo à nova condição geopolítica saída da Segunda Guerra Mundial. O objetivo do programa era a cobertura do território, que tinha como destinatário principal já não as populações operárias mas a classe média.

“Para enfrentar a situação de subdesenvolvimento do país e fazer face a uma oposição revigorada (…) o regime empreendeu um certo número de reformas (…). Foi neste quadro que foi criada a Federação, com incumbência de promover a construção de edifícios plurifamiliares de caráter social em regime de arrendamento (…) com o máximo consignado de rés-do-chão e 3 andares”[ix].

 

A ligação da tradição moderna europeia (do Movimento Moderno) à cultura local irá conhecer neste contexto várias contribuições internacionais que irão influenciar o contexto português[x] nas décadas de 1950 e 1960. Este é o momento em que o arquiteto Bruno Zevi publica, em 1945, o livro Verso un’Architettura Organica, fazendo a apologia de uma arquitetura não autoritária (reativa em relação ao passado totalitário recente no país) e assente na valorização social, psicológica e técnica da atividade do arquiteto. Nasce assim uma proposta para a criação de uma arquitetura mais autêntica – termo que neste contexto estava associado a um desejo de realismo e a um afastamento das ideias em torno da abstração serial que caracterizavam o Movimento Moderno. Nuno Teotónio Pereira, o arquiteto tradutor da Carta de Atenas, será também o arquiteto, juntamente com Nuno Portas, que procura um caminho no sentido de uma arquitetura não autoritária, e, supostamente, autêntica.

“É nesta perspectiva que se deve enquadrar o problema da habitação para o maior número. Não se trata apenas de uma questão de quantidade; existe um aspecto qualitativo igualmente importante, gerado pela mesma quantidade, e que implica alterações estruturais, impostas pela passagem de uma sociedade de base rural apoiada em centros urbanos a uma sociedade de raiz urbana. (…) Para enfrentar o problema da habitação para o maior número, será necessário construir muitas centenas de milhar de casas – aspecto quantitativo; mas, além disto, algo mais será necessário resolver: para quem as construir?; onde as construir?; como as construir? E mais ainda: construir, não somatórios exaustivos de habitações, mas conjuntos urbanos equilibradamente organizados e equipados.”[xi]

 

Ao longo da década de 1960 ocorreram vários colóquios onde o tema do habitat, da habitação e da cidade foram abordados. É o caso do “Colóquio sobre o Habitat”, realizado em Lisboa em 1960, com organização a cargo do Sindicato Nacional dos Arquitectos, onde foram apresentadas as realizações das Habitações Económicas no âmbito da Federação de Caixas de Previdência e onde o sociólogo francês Paul-Henry Chombart de Lawe, especialista em sociologia urbana e crítico das propostas estandardizadas do Movimento Moderno, foi convidado a participar. Analisam-se neste encontro o Plano de Extinção das Ilhas no Porto, o Plano dos Olivais-Norte em Lisboa e as obras da Federação de Caixas de Previdência, apontando-se vários tipos de organização dos fogos e das morfologias urbanas, reequacionando-se o modelo do quarteirão, do bloco vertical isolado, do sistema distributivo em galeria ou da tipologia da casa-pátio[xii].

Em 1962, no número 76 da revista Arquitectura, é publicado um artigo sobre esta problemática assinado por arquitetos e engenheiros, entre eles Nuno Teotónio Pereira e João Braula Reis. O artigo, intitulado “Problemas de base postos pelo estudo da Habitação Económica”[xiii] resultou de uma comunicação ao Colóquio Nacional do Trabalho, da Organização Cooperativa e da Previdência Social. Não existe nesta comunicação qualquer proposta no âmbito da arquitetura ou do urbanismo. O artigo aborda a questão do financiamento, da aquisição de terrenos, da questão da demografia e conclui que a situação é grave e que a “Habitação económica só tem sentido se for ordenada por um objetivo social”[xiv], transversal a todas as classes sociais.

Seria o Plano do Restelo, de 1970 (edifícios com projeto de 1972-1975), de Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas, o projeto onde a densidade horizontal seria apresentada como manifesto de valorização da rua, numa afirmação de matriz alternativa ao modo de construção dominante. Este projeto está informado quer pela cidade histórica (aquela constituída de vários tempos cronológicos e civilizacionais), quer pelas experiências europeias da arquitetura moderna anteriores à Segunda Guerra Mundial. O Plano previa a construção de um bairro numa área com 12 hectares. Esta zona possuía duas matrizes urbanísticas distintas na sua proximidade imediata. A primeira, a da Garden-City, está explanada no Bairro do Restelo, fruto do Plano da Ajuda de Faria da Costa. A segunda, a matriz da Carta de Atenas, está explanada na versão especulativa de alta densidade nos edifícios de habitação e comércio conhecidos por Torres do Restelo, projeto do arquiteto Zinho Antunes. A proposta de Nuno Teotónio Pereira irá procurar fazer a síntese das duas matrizes, propondo superar uma e outra, recorrendo à baixa altura horizontal e à retoma de elementos da cidade histórica como o rua-corredor, os largos, as passagens, com enfiamentos visuais para o Rio Tejo. É uma súmula do percurso como arquiteto, como pensador, como ativista – uma possibilidade de ligação entre a cidade histórica e a tradição moderna.

 

Nuno Teotónio Pereira foi um dos arquitetos portugueses cuja obra permitiu contrariar uma realidade verificável na contemporaneidade que é pobre de significado e frágil em termos de capacidade de resposta. O seu trabalho e o atelier-escola que criou procurou uma realidade existencial e uma alternativa ao desfasamento progressivo entre a ordem territorial e as possibilidades geradas pela produção teórica. Ler os seus escritos e visitar a sua obra construída é um convite a partilhar os valores coletivos permitidos pela arquitetura.

 

Bibliografia

ALEXANDRE, Álvaro; RICON, Gastão; REIS, João Braula; PEREIRA, Nuno Teotónio; NUNES, Paulo – Problemas de Base Postos pelo Estudo da Habitação Económica. Arquitectura. nº 76, outubro 1962.

AYMONINO, Carlo – La Vivienda Racional. Ponencias de los Congressos CIAM 1929-1930. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 1976.

GUTIÉRREZ, Victoriano Sainz – Aldo Rossi. La Ciudad, la Arquitetura, el Pensamiento. Buenos Aires: Nobuko, 2011.

MONTANER, Josep Maria – Depois do Movimento Moderno. Arquitetura da Segunda Metade do Século XX [Después del Movimiento Moderno. Arquitetura de la Segunda Mitad del Siglo XX 2001]- Barcelona: Gustavo Gili, 2003.

PEREIRA, Nuno Teotónio – A Federação de Caixas de Previdência 1947-1972 [1983]. In Escritos. Porto: Faculdade de Arquitetura Universidade do Porto, 1996.

PEREIRA, Nuno Teotónio – A Situação da Arquitetura em Portugal [1953]. In Escritos. Porto: Faculdade de Arquitetura Universidade do Porto, 1996.

PEREIRA, Nuno Teotónio – Habitação Social Hoje [1992]. In Escritos. Porto: Faculdade de Arquitetura Universidade do Porto, 1996.

PEREIRA, Nuno Teotónio – Habitações para o maior número [1969]. In Escritos. Porto: Faculdade de Arquitetura Universidade do Porto, 1996.

PEREIRA, Nuno Teotónio – O Portugal Desaparecido [1987]. In Escritos. Porto: Faculdade de Arquitetura Universidade do Porto, 1996.

TARKOVSKY, Arseny – 8 Ícones. Lisboa: Assírio & Alvim, 1987.

TOSTÕES, Ana – A Idade Maior Cultura e Tecnologia na Arquitetura Moderna Portuguesa. Porto: Faculdade de Arquitetura Universidade do Porto, 2015.

TOSTÕES, Ana – Os Verdes Anos na Arquitetura Portuguesa dos Anos 50. Porto: Faculdade de Arquitetura Universidade do Porto, 1997.

 



[1]
O presente texto será publicado, sob autorização da revista estudoprevio, no livro Evolução das formas de habitação plurifamiliar na cidade de Lisboa, publicado pela Câmara Municipal de Lisboa.

[2]Josep Maria Montaner, 2003, p. 108.

[3]Victoriano Sainz Gutiérrez, 2011, p. 36.

[4]Nuno Teotónio Pereira [1987] 1996, p. 214.

[v]Ibid.

[vi]Carlo Aymonino, 1976, p. 65.

[vii]Nuno Teotónio Pereira [1992] 1996, p. 251.

[viii]Nuno Teotónio Pereira [1953] 1996, p. 19.

[ix]Nuno Teotónio Pereira [1983] 1996, p. 206.

[x]Ana Tostões, 2015, p. 563.

[xi]Nuno Teotónio Pereira [1969] 1996, p. 80.

[xii]Ana Tostões, 1997, p. 170.

[xiii], Álvaro Alexandre; Gastão Ricon; João Braula Reis; Nuno Teotónio Pereira e Paulo Nunes, 1962, p.47.

[xiv]Ibid p. 50.