Resumo
O desenho urbano para um largo num bairro autoproduzido na periferia de Lisboa é o constituinte central de um projecto de pesquisa multidisciplinar nas áreas do Urbanismo, Antropologia e Design. Através de uma ‘pesquisa pelo desenho’ ensaiada em oficinas participadas, a equipa de investigação e os habitantes do Bairro da Cova da Moura apontaram modelos para propostas de requalificação urbana assentes numa concepção de planeamento que reconhece as práticas espaciais e modos de apropriação dos habitantes, dialogando com o conceito de Direito à Cidade preconizado por Lefebvre (1968) e revisto por Harvey (2008). É através do desenho de um espaço público e das resistências que este gera, sempre presentes nas dinâmicas de transformação urbana que esta metodologia foi ensaiada.
Palavras-chave: research by design, desenho participado, participação, territórios informais,
Introdução
O título deste artigo inspira-se no princípio metodológico do arquitecto Nuno Portas, ‘o processo também desenha’. Definido em 1970 na proposta para a experiência-piloto no ‘bairro de lata’ da Quinta do Pombal em Lisboa, a defesa da arquitectura como um ‘processo’ de projecto que integra uma componente participativa (Grande, 2012, p. 307) abriu caminho ao SAAL mas sobretudo colocou a tónica na dimensão processual de fazer arquitectura.
Considerando que ‘apesquisa também desenha’, reforça-se a investigação feita através do desenho (‘research by design’) como metodologia de pesquisa válida no contexto de projectos de investigação participados em territórios autoproduzidos, alvo de processos de intervenção urbana. A opção pelo conceito da ‘autoprodução’ (Raposo, 2011) usada neste texto afasta-se da terminologia legalista da ‘génese ilegal’, preferindo dialogar com a noção Lefebvriana da produção do espaço enquanto produto e produtor social (Lefebvre, 1991).
‘Research by design’ foi neste texto compreendido como ‘pesquisa pelo desenho’. Utiliza-se a palavra desenho procurando significado na sua raiz etimológica latina, designo (marcar, traçar) e no alargamento do seu sentido inicial: de traço a pensamento [1]. Orientado de forma sistematizada, o desenho pode contribuir para dar resposta a uma pergunta de pesquisa, alargando um corpo de conhecimento. Estas abordagens são recentes e aportam um referencial metodológico ainda em construção na academia e nas escolas de arquitectura, conquistando espaço e legitimidade através da prática (Büchler e Biggs, 2008; Jong, 2002).
À pergunta ‘fazer arquitectura é fazer pesquisa?’ Till (2011) responde acentuando a relevância da pesquisa pelo desenho, ‘research through design’ no original, metodologia que extravasa a divisão dicotómica clássica qualitativa / quantitativa, devendo ser vista como uma metodologia que sintetiza um conjunto de abordagens intelectuais (2011, p. 6) como as descritas por Lawson (2004, 2006) sobre o modo como os arquitectos pensam e trabalham e, acrescenta-se aqui, sobre o modo como estes pesquisam.
No caso que aqui se apresenta esta metodologia de ‘pesquisa pelo desenho’ foi ensaiada partindo de um projecto de investigação multidisciplinar nas áreas do Urbanismo, Antropologia e Design, num contexto urbano autoproduzido, de ‘génese ilegal’, onde o desenho urbano foi constituinte central de um processo participado.
Caso de Estudo
Este artigo toma como caso de estudo o Bairro do Alto da Cova da Moura, bairro autoproduzido do concelho da Amadora, situado às portas de Lisboa, numa extensão de 16,5 ha na freguesia de Águas Livres (antiga Damaia e Buraca). Segundo o estudo das condições de habitabilidade realizado pelo LNEC há 1884 unidades habitacionais onde vivem, estima-se, mais de 5000 pessoas (2008, p. 7). Os seus habitantes são maioritariamente imigrantes africanos, sobretudo cabo-verdianos, havendo também migrantes portugueses rurais e retornados das ex-colónias. A sua ocupação teve início na década de 60, intensificando-se no período pós-revolução com o retorno das ex-colónias, num contexto histórico de ausência de políticas de habitação ou de resposta insuficiente, forte êxodo rural, industrialização tardia e retorno das ex-colónias (Portas, Domingues e Cabral, 2003). Por corresponder à ocupação de um terreno privado e não a um loteamento clandestino, o processo de reconversão urbanística tarda, ainda mais, a acontecer.
Morfologicamente o bairro tem duas zonas distintas. A Sul, o chamado ‘bairro africano’, onde habita maioritariamente a população de origem africana, possui um traçado orgânico de ruas estreitas e labirínticas sendo muito denso na sua ocupação. A Norte o ‘bairro europeu’ de traçado mais regular e menos densificado, apresenta ruas mais largas e moradias com pequenos quintais. Esta divisão aponta para uma organização socio-espacial diferenciada (Horta, 2008) em termos de apropriação do espaço público, privado e semi-privado.
Desde a visibilidade mediática que resultou dos conflitos policiais de 2001, a Cova da Moura vive entre o estigma da insegurança e o reconhecimento de uma existência cultural forte, reflectida na aceitação recente das festividades do kola como património imaterial português [2]. Caracterizado como ‘bairro crítico’, designação surgida no contexto da ‘Iniciativa Bairros Críticos’ [3] da qual a Cova da Moura foi um dos três bairros escolhidos como projecto-piloto, a narrativa dos media referente a um lugar caótico, inseguro e violento não corresponde à visão de muitos dos seus habitantes e visitantes que descrevem o bairro como um lugar de sociabilidades fortes, seguro e com grande dinamismo local.
A mesma visão bipolarizada tem marcado os diferentes tipo de intervenções urbanísticas propostos para o bairro ao longo das últimas décadas. Da demolição quase total proposta em 2002 pela Câmara Municipal da Amadora (CMA) que juntou os habitantes do bairro num protesto colectivo, até à contra-proposta da Comissão de Bairro [4] que assenta na reabilitação do tecido existente sobo mote ‘A requalificação é possível se a gente quiser’, as opções extremadas entre o informal romantizado ou a demolição forçada não têm ajudado a concretizar uma mudança efectiva.
Espaço Relacional e Direito à Cidade
O projecto ‘Espaço Relacional e Direito à Cidade – Laboratório Experimental da Cova da Moura’ [5] (ERDC), projecto exploratório realizado entre Abril de 2013 e Junho 2014, teve como objectivo central operacionalizar o conceito teórico do Direito à Cidade, preconizado por Lefebvre (1968),aproximando-o das lutas dos habitantes e associações locais de um bairro autoproduzido da periferia, confrontando-o com o processo de requalificação urbana.
O projecto ERDC assentou em duas dimensões principais. A primeira refere-se à constituição de um laboratório envolvendo a permanência no terreno da equipa de investigadores através da realização de oficinas e pesquisa etnográfica, na tentativa de estabelecer novos modos de relação entre a academia e actores sociais no terreno. A segunda estabelece uma relação entre a construção de propostas de requalificação e o enfoque no espaço relacional como modo de promover o Direito à Cidade.
No cruzamento destas duas dimensões, um dos objectivos do projecto nasceu da interlocução entre a equipa de investigadores e as associações da Cova da Moura, focando-se em actividades num local específico que deveria servir como ensaio de práticas de planeamento urbano mais próximas aos habitantes. A experiência que aqui se apresenta incide sobre o projecto e a realização de oficinas no local escolhido, o Largo de Santa Filomena, envolvendo uma reflexão sobre as suas características socio-espaciais e potenciais transformações mas também sobre o modo como os habitantes percepcionam aquele lugar, as dinâmicas de apropriação que estabelecem e o modo como participam no desenho de soluções para o espaço que habitam.
Este Largo Podia Ser Assim
O Largo de Santa Filomena, toponímia informal que vai tomando força no bairro, resulta do espaço libertado por uma casa em construção demolida pelo município na década de 1980 na confluência de duas ruas. Este alargamento não-planeado gerou um espaço com cerca de 600 m2 que tem sido usado como parque de estacionamento.
A escolha deste lugar para as oficinas do projecto ERDC, aos quais chamámos ‘Este Largo Podia Ser Assim’ teve uma ancoragem tripla. Uma ancoragem nas práticas locais, beneficiando da abertura de possibilidades que a Grande Orquestra de Verão criou ao tocar no Largo, em Junho de 2012. Uma ancoragem nas dinâmicas locais, justificada pela ‘importância crucial atribuída pelos actores locais às concretizações imediatas, através de intervenções físicas no espaço’ [6], destacando-se o entusiasmo das associações locais com a perspectiva de uma transformação no largo de Santa Filomena, apoiando o projecto de investigação. Por último, houve uma forte ancoragem de ordem técnica na escolha do Largo. Este espaço configura um dos poucos alargamentos disponíveis ao nível do espaço público, traduzindo-se numa das mais importantes centralidades pela sua dimensão mas também por já ser lugar habitual de encontronas festas populares do bairro (Malheiros, Vasconcelos e Alves, 2006, p. 15).
As oficinas, elemento central do laboratório experimental do projecto ERDC, tiveram como ambição gerar resultados de pesquisa que pudessem, em diálogo com o conceito de Direito à Cidade, apontar propostas concretas de requalificação urbana expressas no direito à obra e no direito à apropriação (Lefebvre, 1968).
Partindo da problematização do conceito de espaço/espacialidade de Massey (2005), vendo os lugares como processos com identidades múltiplas e conflituais, produto de inter-relações contínuas, nunca terminadas ou encerradas em fronteiras, interessou à equipa confrontar este olhar com a agenda da requalificação urbana das ‘áreas de génese ilegal’, ligada às condições de habitabilidade, carência de equipamentos/ espaços público/ espaços verdes e a parâmetros como a carga urbana do território ou a evolução morfológica do edificado.
Metodologia adoptada
O processo iniciou-se com a realização de oficinas de exploração, planeamento e construção, directamente com os habitantes num processo dialógico potenciado por objectos. Maquetas, desenhos, elementos prototipados à escala real foram trazidos ou produzidos no local, em três eventos participados no Largo. Gerados num processo cumulativo de dados/resultados que informavam o planeamento das oficinas seguintes, pode dizer-se que as oficinas foram permeáveis ao contexto, assumindo-se como uma prática situada (Doherty, 2004).
Apoiada no conceito de emancipação intelectual de Rancière (2002), contrariando uma habitual “lição” onde “especialistas ensinam”, a primeira oficina, realizada durante um sábado de Junho de 2013, consistiu numa projecção de vídeo numa fachada do Largo com a presença da equipa para conversar com os habitantes, num ambiente festivo e de descoberta mútua. Como contraponto às referências que foram feitas pelos habitantes relativamente ao espaço público, assentes sobretudo nos jardins existentes em redor do bairro, esta acção pretendeu expandir espectro de possibilidades para a intervenção no Largo, apresentando tanto referências arquitectónicas como artísticas, explorando novos usos, diferentes materialidades e técnicas de construção. A criação do ‘programa’ de projecto para o Largo foi feita confrontando o referencial da equipa e dos habitantes através do filme criado ‘Outros Largos’.
Em Julho 2013 a oficina seguinte agiu temporariamente sobre o espaço, expulsando os automóveis e trazendo um módulo expositivo cúbico para afixação das ideias anteriormente recolhidas. Durante todo o dia foi possível ensaiar opções na maqueta do Largo ou criar novas maquetas com propostas. Neste momento de escuta começaram a emergir posições discordantes entre os vários participantes, no entanto todos partilham a ideia de que ‘o poder público não intervém o suficiente no espaço público do bairro’ e que os melhoramentos são urgentes. Neste segundo momento de encontro estiveram presentes habitantes de várias zonas do Bairro, cerca de 45, por oposição à primeira oficina onde só estiveram presentes moradores do Largo.
Como interface de comunicação do projecto foi desenhado um jornal de parede, capaz de chegar geograficamente a todas as áreas da Cova da Moura com baixo custo e abrangência na divulgação, permitindo informar sem impor um encontro físico. Foram feitas 4 edições e cada número focou-se simultaneamente na acção precedente, apresentando resultados, e na acção seguinte, desafiando para a participação ou solicitando recursos para as oficinas que foram abertas à população do bairro.
A terceira oficina testou o conceito da proposta de desenho urbano que a equipa delineou para o Largo, baseada na manutenção e organização do estacionamento existente e criando simultaneamente condições para que as crianças brinquem na ausência dos carros através do desenho de jogos dentro dos lugares de estacionamento. Em Outubro 2013 a oficina focou-se na prototipagem de lugares de estacionamento com jogos e na experimentação com três grupos de crianças do pré-escolar que frequentam três diferentes instituições no bairro da Cova da Moura, um total de 41 crianças entre os 3 e os 5 anos.
Entre Setembro de 2013 e Janeiro de 2014, parte da equipa de investigadores e alunos de Urbanismo e Arquitectura da Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa trabalharam numa proposta para ser discutida com os habitantes. Conceber um projecto como resultado de pesquisa mas também como forma de fazer pesquisa sustentou uma visão do projecto como um ‘produtor de possibilidades’ (Jong, 2001, p. 24), capaz de envolver os habitantes do bairro na discussão da transformação espacial, gerando uma dinâmica colectiva. O projecto foi visto como ferramenta de exploração e não uma proposta representativa da vontade expressa nas opiniões recolhidas, servindo sobretudo como modo de materialização do conflito.
Da análise feita aos eventos no Largo e aos resultados que deles surgiram, foram criados os princípios norteadores do projecto. Gerado num contexto onde a ligação entre o poder público e os actores locais não é nem estável, nem continuada, o projecto assentou num conceito agregador – a utilização partilhada através da sobreposição de usos, construído sobre três premissas: a facilidade de execução, a rapidez de implementação e o custo acessível. Procurou-se uma solução de carácter transitório que pudesse gerar um espaço público qualificado sem colocar em risco intervenções futuras, nomeadamente que não comprometesse o Plano de Pormenor em estudo (em curso desde 2010, entretanto suspenso).
Utilizando uma linguagem mediada entre o saber técnico e o saber local, optou-se pela produção de elementos de projecto que os habitantes pudessem ler/compreender, construindo maquetas a escalas maiores (1:50), representando através de fotografia as fachadas de cada edifício tornando os lugares facilmente reconhecíveis. Todos os elementos urbanos, existentes e propostos, eram reposicionáveis e o seu carácter (quase) lúdico dada a cor e a escala convidava à apropriação. Esta metodologia foi seguida durante as oficinas (acção conjunta) mas também durante a apresentação/discussão do projecto (reflexão conjunta).
Interpretando o processo
Latente durante os momentos de encontro entre investigadores e habitantes (nas oficinas, conversas, entrevistas exploratórias ou semi-dirigidas e em reuniões com associações locais), o debate entre os que querem ver o Largo melhorado e os que preferem a manutenção do estacionamento improvisado extravasa as fronteiras daquele lugar, corporificando a resistência à mudança presente nas dinâmicas de transformação urbana. Incidindo sobre a requalificação de um espaço público num território marcado pela sua ‘génese ilegal’ surgem questões como a legitimidade da intervenção e a quem pertence o poder de decisão sobre a mesma.
Subjacente a este espaço sobressai a discussão: ‘Afinal, de quem é o Largo?’ Os moradores cujas casas estão perto ou no perímetro do Largo temem que a requalificação do espaço atraia grupos de jovens que ali permanecem durante o dia e também à noite, gerando lixo e ruído. Um morador do Largo refere que aumentará a probabilidade de ocorrerem comportamentos desviantes como o tráfico de droga, se o espaço for intervencionado com a colocação de mobiliário urbano novo e mais iluminação por oposição à manutenção do estacionamento existente, escuro e com pouca luz. A justificação pela manutenção do parque de estacionamento referido como ‘imprescindível’ foi também estratégia daqueles que estão contra a transformação. Apesar da observação que a equipa de investigação fez durante 10 meses e de modo sistematizado durante Julho de 2013, medindo a ocorrência diária e a várias horas do dia, verificando que é baixo o número de automóveis estacionados (média de 7), a ideia de perder lugares ou combiná-los com outros usos não alterou o discurso dos que estão contra a mudança. Um morador do Largo refere que se o espaço ‘ficar confortável’ pode aliciar outro tipo de frequentadores, concluindo que ‘piora, se melhorarmos’.
Já os habitantes de outras zonas do bairro vêem neste alargamento físico disponível a solução para algumas das carências relativas ao espaço público. Menos ligados aos constrangimentos que o choque geracional origina (ruído), às questões de segurança (novos frequentadores) ou à questão da manutenção do novo espaço (quem limpa/quem cuida), aceitam mais facilmente a extinção do estacionamento em prol da criação de mais espaço público, alegando que a maioria dos poucos carros não pertencem a moradores das proximidades.
Este discurso da pertençadividido relativamente a este trecho decidade não é novo (Madanipour, 2010), é expectável e acentua-se com a complexificação trazida pela informalidade e ausência de intervenção pública a decorrer naquele território. O desenho procurou gerar um ponto de partida para a discussão entre os habitantes, através da negociação daquilo que é a construção do espaço comum.
Durante a apresentação, na reacção ao desenho e na sua modificação testando novas propostas, comprovou-se que esta metodologia pode servir para efectivar e potenciar a participação de actores tradicionalmente afastados dos processos decisórios, tornando-os mais próximos da transformação que querem para o território que habitam. Agindo sobre um lugar que os moradores conhecem bem, colocando a tónica na dimensão relacional do espaço, os habitantes sentiram-se ‘especialistas em viver ali’, colocando o seu ‘saber vivido’ a par do ‘saber técnico’ que não possuem. A pesquisa participada mostrou aos habitantes que as perguntas de pesquisa podem partir da sua própria problematização socio-espacial e que os resultados da pesquisa a estes pertencem.
Subjaz ao conceito de participação trabalhado neste processo que o desenho deixe de ser exclusivo do arquitecto, estando mais aberto, menos determinado. Sendo mais flexível há que acautelar que os critérios científicos de análise não se alteram no decorrer do processo ou deixam de ser válidos como conhecimento produzido no âmbito de uma investigação. Relativamente ao projecto do Largo, os critérios escolhidos para análise relacionam-se também com os objectivos da investigação, como efectivar o Direito à Cidade discutindo os modelos de intervenção urbana que aqueles habitantes querem (ou não) ver implantados, observando as dinâmicas de acesso, partilha, usos, capacidade de implementação, manutenção e controlo do uso do espaço.
A proposta apresentada para o Largo propunha um novo equilíbrio entre o espaço para automóveis e o espaço para pessoas através de uma utilização partilhada [7]. Seria através o jogo de forças dos seus actores e de uma constante negociação que se ajustaria o uso. A partir desta negociação sugerida para o uso revelaram-se os interesses, pontos de vista e racionalidades divergentes dos vários actores, manifestando-se numa interacção micro-política através de uma arena dinâmica e complexa (Raposo et al., 2012). Por isso mesmo, o afastamento (intencional) da procura do consenso aproxima-se da leitura da participação de Miessen (2007, 2010) sendo assumidamente pós-consensual, redefinindo o papel do arquitecto não como mediador/facilitador mas como um ‘outsider desinteressado’ [8] (2010, p. 24). Uma via mais política menos idealista, assente no capital criativo da disciplina portanto mais próxima do desenho e do projecto, inscrita na ideia de que a democracia não se constrói pelo consenso e que a arena pública não pode ser esvaziada de conflito (Mouffe, 2005; Žižek, 1999), porque é este que sustenta a própria democracia.
Esta reconceptualização da participação ajuda à consolidação de um Direito à Cidade que suporte a transformação da cidade enquanto nos transformamos a nós mesmos (Harvey, 2008), afastando-se da participação construída na actual matriz neoliberal que assenta sobretudo no acesso à informação e na participação como ferramenta de legitimação de processos decisórios políticos.
Existirá melhor modo de pensar a transformação que desenha-la? A ‘pesquisa pelo desenho’ ganha maior relevância em bairros autoproduzidos onde a negociação do espaço público é permanentemente construída, transitória e assenta em processos de requalificação urbana muito longos, potencialmente geradores de actores desmotivados.
Na Cova da Moura apesar do cansaço sentido, após décadas de envolvimento nas lutas do bairro – primeiro por infraestruturas e posteriormente pela regularização urbanística – a produção de um projecto como resultado de uma pesquisa académica motivou associações e moradores a colocar a ênfase no processo em vez do resultado, participando também na interpretação e análise que deixou de ser exclusiva dos investigadores.
Em síntese, falamos de produção colectiva assente numa investigação-acção participada. Produção colectiva de conhecimento, através do encontro entre disciplinas diferentes e produção colectiva criativa, através do projecto participado que (retro)alimenta a pesquisa. Este encontro não é fácil, nem na academia, nem no terreno empírico mas é imprescindível como via de construção para políticas de território mais justas espacialmente (Urbanismo) e de investigações mais ligadas aos contextos sociais que pretendem compreender (Universidades).
Considerações finais
A ‘pesquisa pelo desenho’ junta-se a um corpo de conhecimento em construção que valida o desenho como constituinte no processo de pesquisa. Metodologicamente é análogo à investigação académica no seu carácter cíclico de experimentação, tese, antítese e síntese. Como refere Till (2011)o cruzamento de investigações em vários campos de estudo (histórico/ técnico/ social/ estético) e a utilização de metodologias cuja componente central é a prática das próprias disciplinas, fortalecem-na e afastam-na das margens do debate na investigação onde se encontra hoje.
– Defende-se neste texto que em contextos urbanos complexos ou de impasse urbanístico, tais como os territórios autoproduzidos que aguardam processos de intervenção urbana, desenhar pode facilitar a operacionalização e a compreensão do conceito de Direito à Cidade, espelhando a transformação que os diferentes actores querem ver acontecer no território, ainda que sob formas contraditórias. Aproximando actores e tornando tangível a discussão sobre o espaço, ancorando-a na sua dimensão vivida, aproximam-se aqueles que estão tendencialmente mais afastados destes processos de planeamento.
– Os bairros autoproduzidos, também chamados de ‘génese ilegal’ são normalmente alvo de processos de requalificação urbana que se arrastam por períodos muito longos. A ‘pesquisa pelo desenho’ em articulação com metodologias participativas desenhando futuros possíveis, pode ser o ponto de partida na compreensão de um lugar. Um ponto de partida que antecede a transforma(ac)ção que os habitantes esperam, relativamente à intervenção socio-espacial naquele território.
No caso apresentado, os workshops de planeamento urbano e desenho no Largo de Santa Filomena no bairro da Cova da Moura tiveram como objectivo desenhar um espaço público, problematizando os usos actuais e imagináveis, ligando o projecto ao processo de requalificação urbana que as associações locais querem promover. O projecto de desenho urbano foi praticado como forma de materializar o conflito ao qual os habitantes reagiram e ao qual puderam responder, transformando-o, através de uma investigação-acção participada que sustentou esta hipótese. O conflito, inerente a todas as transformações urbanas, foi o motor de discussão do projecto conduzindo a uma negociação sobre o uso, pertença e manutenção daquele espaço.
Quanto ao largo de Santa Filomena, espera-se que em breve os resultados da pesquisa possam culminar na efectivação do desenho em construção.
Notas de rodapé
[1] Etimologia da palavra ‘desenho’ partindo da definição do Dicionário da Língua Portuguesa sem Acordo Ortográfico da Porto Editora 2003-2014.
[2] O ‘kola’ é uma dança tradicional de Cabo Verde. O anúncio n.º 323/2013 do DR reconhece a festa do ‘Kola San Jon’ como Património Cultural Imaterial de Portugal, reflexo da identidade dos habitantes do Bairro da Cova da Moura.
[3] Iniciativa ‘Operações de Qualificação e Reinserção Urbana de Bairros Críticos’, geralmente resumida a ‘Iniciativa Bairros Críticos’ – Resolução do Conselho de Ministros nº 143/2005, de 2 de Agosto publicada no DR,I Série – B, de 7 de Setembro de 2005. Esta iniciativa foi suspensa em 2012.
[4] A Comissão de Bairro é composta por quatro associações: Associação Cultural Moinho da Juventude, Associação de Solidariedade Social do Alto Cova da Moura, Associação de Moradores do Bairro do Alto da Cova da Moura e Centro Social Paroquial Nossa Senhora Mãe Deus da Buraca.
[5] Projecto ‘Espaço Relacional e a promoção do direito à cidade. Pesquisa experimental na Cova da Moura, Área Metropolitana de Lisboa’, financiado pela FCT- Fundação para a Ciência e a Tecnologia, com a referência EXPL/ATP-EUR/1772/2012. Coordenação: Júlia Carolino (GESTUAL|CIAUD|FA-UL).
[6] Notas da reunião interna do projecto ERDC, 14 Janeiro 2013.
[7] A proposta pode ser vista no vídeo preparado para a discussão, disponível em http://vimeo.com/95164636
[8] Tradução livre da autora. No original ‘uninvited outsider’.
Bibliografia
BÜCHLER, Daniela; BIGGS, Michael – Architectural Practice and Academic Research. Nordic Journal of Architectural Research. ISSN 11025824. Vol.20, nº1 (2008) p. 83-94.
DOHERTY, Claire – Contemporary art: from studio to situation. London : Black Dog Publishing, 2004. ISBN 9781904772064.
GRANDE, Nuno (ED.) – O Ser Urbano: nos Caminhos de Nuno Portas / The Urban Being: on the Trails of Nuno Portas, Lisboa : Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2012. ISBN 9789722720670.
HARVEY, David – The Right to the City. New Left Review. ISSN 00286060. nº 53 (2008) p. 23–40.
HORTA, Ana Paula Beja – Que Cidadania? Etnicidade, Identidades Locais e Agenciamento na Periferia de Lisboa. In VI Congresso Português de Sociologia [Em linha]. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa. 2008. [Consult. 10 set. 2014] Disponível em http://www.aps.pt/vicongresso/pdfs/541.pdf
JONG, Taeke De – Image Archive and Ways to Study Urban, architectural and technical design. In: Research by design: International Conference Faculty of Architecture Delft University of Technology in co-operation with the EAAE/AEEA. Delft: DPU Science, 2001. ISSN 9789040722134 2001. p. 24-31.
JONG, Taeke M. De., Voordt, D. J. M. Van Der – Ways to study and research : urban, architectural and technical design. Delft : DUP Science, 2002. ISBN 9789040723322.
LAWSON, Bryan – What designers know. Oxford : Elsevier/Architectural Press, 2004. ISBN 9780750664486.
LAWSON, Bryan – How designers think: the design process demystified. Oxford : Elsevier/Architectural, 2006. ISBN 9780750660778.
LEFEBVRE, Henri – Le droit à la ville. Paris : Anthropos, 1968. ISBN 9782717857085.
LEFEBVRE, Henri – The production of space. Oxford, OX, UK; Cambridge, Mass., USA : Blackwell, 1991. ISBN 9780631181774.
LNEC – Colaboração do LNEC na análise das condições de habitabilidade do edificado no Bairro do Alto da Cova da Moura. Avaliação das necessidades de reabilitação do edificado [Em linha]. Lisboa : LNEC, 2008. [Consult. 10 set. 2014] Disponível em https://www.portaldahabitacao.pt/opencms/export/sites/ibc/pt/ibc/docs_pdf_ibc/docs_cova_moura/Relatorio_Sintese_LNEC_Cova_Moura.pdf.
MADANIPOUR, Ali (ED.) – Whose public space?: international case studies in urban design and development. Abingdon, Oxon ; New York : Routledge, 2010. ISBN 9780415553858.
MALHEIROS, Jorge; VASCONCELOS, Lia; ALVES, Francisco Silva – Relatório Diagnóstico: Síntese de Caracterização do Bairro do Alto da Cova da Moura. VOLUME I – [Em linha] [Consult. 13 mai. 2012]. Disponível em WWW:.
MASSEY, Doreen B. – For space. London; Thousand Oaks, Calif. : SAGE, 2005. ISBN 9781412903622.
MIESSEN, Markus – The violence of participation. Berlin; New York : Sternberg Press, 2007. ISBN 9781933128344.
MIESSEN, Markus – The nightmare of participation : [crossbench praxis as a mode of criticality]. New York : Sternberg Press, 2010. ISBN 9781934105078.
MOUFFE, Chantal – On the political: Thinking in action. London ; New York : Routledge, 2005. ISBN 0415305209.
PORTAS, Nuno; DOMINGUES, Álvaro; CABRAL, João – Políticas urbanas: tendências, estratégias e oportunidades. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. ISBN 972311061.
RANCIÈRE, Jacques – O Mestre Ignorante – Cinco Lições Sobre a Emancipação Intelectual. Belo Horizonte : Autêntica, 2002. ISBN 8575260456.
RAPOSO, Isabel – Relatório final do projecto de investigação: PTDC/AUR/71721/2006 – Reconversão e reinserção urbana de bairros de génese ilegal. Avaliação socio-urbanística e soluções integradas de planeamento estratégico. 2011. Acessível no Centro de Investigação em Arquitectura, Urbanismo e Design, Lisboa.
RAPOSO, Isabel et al. – Os instrumentos urbanísticos como arena social e a percepção do Direito à Cidade: a regeneração urbana da Vertente Sul de Odivelas. In VII Congresso Português de Sociologia [Em linha]. Porto: Universidade do Porto. Faculdade de Letras, 2012. [Consult. 13 set. 2014] Disponível em WWW:.
TILL, Jeremy – Is doing architecture doing research? In IV Jornadas internacionales de investigación en Arquitectura y Urbanismo [Em linha]. Valencia: Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Valencia, 2011. [Consult. 30 set. 2014] Disponível em http://riunet.upv.es/bitstream/handle/10251/15032/TILL%20J_Is%20doing%20architecture%20doing%20research.pdf?sequence=1
ŽIŽEK, Slavoj – The ticklish subject: the absent centre of political ontology. London ; New York : Verso, 1999. ISBN 185984894X.
Joana Pestana Lages (Lisboa, 1979)
Licenciou-se em Arquitectura em 2003 pela Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa (FAUL). Estagiou com Willy Müller Architects (Barcelona) e no Promontório Arquitectos (Lisboa). Muda para Londres para colaborar com dRMM Architects (Londres). Posteriormente integra a equipa de Renzo Piano em Génova, onde colabora num projecto residencial para Lisboa. De volta a Lisboa termina o Mestrado em Arquitectura e inicia o Doutoramento em Urbanismo pela FAUL, pesquisando projectos e políticas de intervenção urbana em áreas urbanas autoproduzidas. É bolseira da FCT desde 2012.