Ana Catarina de Sousa Louro Ferreira
catarinaslferreira@gmail.com
Assistente de Investigação
Ana Catarina Ferreira (Lisboa, 1985) é licenciada em Estudos Arquitectónicos pela Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, tendo frequentado o 2º ciclo do Mestrado Integrado na mesma instituição. No final de 2014 conclui o Mestrado em Estudos Urbanos no ISCTE-IUL com uma dissertação que explora as potencialidades da arquitectura, enquanto prática disciplinar, para a introdução e dinamização de inovações sociais no território urbano. É, desde Abril de 2015, assistente de investigação do DINAMIA-CET’IUL.
Resumo
Este artigo pretende evidenciar as linhas orientadoras e os resultados fundamentais de uma investigação conduzida no âmbito do mestrado em Estudos Urbanos (ISCTE-IUL/FCSH-UNL) e focada nas relações entre as emergentes iniciativas de intervenção urbana local, promovidas por arquitetos ou coletivos de arquitetura e motivadas por questões sociais e políticas, e a dinâmica de inovação sócio-territorial. Partindo de uma breve reflexão sobre a participação do arquiteto na sociedade contemporânea, e na qual se inscrevem conceitos críticos como Arquitetura Não-Solicitada ou Agenciamento Espacial, a problemática desta investigação desenvolve-se em torno do real poder transformador dos contextos sociais e institucionais das referidas intervenções. Através de um estudo de caso exploratório, as iniciativas TISA e Casa do Vapor – desenvolvidas no bairro informal da Cova do Vapor (Almada, Portugal) –, esta investigação demonstra que, apesar de não serem geradoras de Inovação Sócio-Territorial em todas as suas dimensões, estas iniciativas revelam características das Estratégias Sociais Criativas e, por isso, algumas capacidades para o seu impulso.
Palavras-chave: Arquitetura Não-Solicitada, Agenciamento Espacial, Estratégias Sociais Criativas, Inovação Sócio-Territorial, Cova do Vapor.
Arquitetura e Inovação Social: interseções no território da Cova do Vapor
I. Introdução
Se a temática da participação em arquitetura, tão em voga nos anos 60 e 70 do século XX, recaía sobre a necessidade de uma maior integração das populações/utilizadores nos processos de design e construção arquitetónicos (Carlo, 2010 [1980]), no início do século XXI parece reemergir associada, sobretudo, à necessidade de um envolvimento mais direto do arquiteto com a realidade sócio-espacial urbana (Bunschoten, 2003). Embora o debate sobre o compromisso social do arquiteto seja resgatado e alimentado por alterações estruturais deste período – como a mobilidade acrescida, a facilidade de circulação da informação e a expansão das redes sociais através das novas tecnologias –, este é particularmente intensificado em 2007/2008 com o despoletar da crise económica e financeira global, que afetou fortemente o mercado da arquitetura na Europa, e especialmente em Portugal, reduzindo drasticamente a procura e aumentando os níveis de desemprego na profissão. É no emergir e no decorrer desta crise que se desenvolvem novos conceitos críticos à participação do arquiteto, tidos como manifestos por uma prática de iniciativa própria, tais como: Unsolicited Architecture (Bouman, 2007), Critical Spatial Practice (Miessen, 2010) e Spatial Agency (Awan; Schneider; Till, 2011).
Estes conceitos/manifestos, e outros discursos que se vão produzindo sobre as práticas proactivas em curso, estão, na sua maioria, associados a motivações de transformação social e política: sejam os que salientam a necessidade dos arquitetos deixarem de ser simples “desenhadores de edifícios” e passarem a “moderadores de mudança” (Lepik, 2010), ou os que reforçam o esforço de alcançarem, conjuntamente com algumas comunidades, “soluções inovadoras para os graves problemas sociais e urbanos” (Leite; Ribeiro, 2013: 109). Contudo, pouca ou mesmo nenhuma informação é produzida sobre os reais efeitos destas iniciativas. Protegidas pela crítica e pela academia no enorme guarda-chuva da “arquitetura social” ou da “arquitetura participativa”, e analisadas apenas sob o ponto de vista das suas motivações e modelos de desenvolvimento, estas iniciativas carecem de estudos sobre o verdadeiro poder transformador dos contextos sociais e institucionais onde têm lugar.
Esta carência levou à realização de um trabalho de investigação que cruza o domínio científico da arquitetura com as ciências sociais (Ferreira, 2014). Deste cruzamento resultou o enquadramento da problemática identificada na literatura teórica contemporânea referente às Estratégias Sociais Criativas – novas respostas da sociedade civil para problemas inadequada ou insatisfatoriamente resolvidos pelo Estado ou mercado (André; Rousselle, 2010) –, e à Inovação Sócio-Territorial – processo resultante dessas estratégias, implicando a satisfação de necessidades humanas não satisfeitas ou não reconhecidas, o empowermentde grupos excluídos ou marginalizados e a mudança das relações sociais e de poder em termos de governança territorial (González; Moulaert; Martinelli, 2010). Tal possibilitou a experimentação de um modelo de avaliação da essência e dos impactos das decorrentes iniciativas locais e a sua aplicação num estudo de caso exploratório – as iniciativas de intervenção dos arquitetos na Cova do Vapor (Almada, Portugal), nomeadamente os projetos TISA – The Informal School of Architecture e Casa do Vapor. Neste artigo pretende-se, essencialmente, sintetizar a investigação desenvolvida a partir de três capítulos fundamentais: o enquadramento teórico-conceptual, o desenho de pesquisa e o estudo de caso.
II. Enquadramento teórico-conceptual
1. A Participação do Arquiteto na Sociedade Contemporânea
De acordo com Montaner e Muxí (2011), o monopólio do poder económico, que caracteriza o início do século XXI, veio tornar a função do arquiteto “más ambigua e ambivalente” (id.: 38). Para estes autores, o arquiteto tem vindo a tornar-se escravo dos interesses do poder privado e da ideologia do poder público, o que lhe tem anulado “las possibilidades de desarrollo de una cultura crítica” (id.: ibid.). Nas suas visões, esta crise que a profissão atravessa, não resulta unicamente de um desajuste entre a cultura do arquiteto e o que a sociedade lhe exige, mas, igualmente, de uma formação elitista, isto é, centrada na criação de um “grupo de excelencia”, cuja atuação deve ser entendida como meramente assistencial e encontrar-se ao serviço do poder, das classes mais favorecidas. Perante este cenário, os autores evidenciam duas posições tomadas pelos profissionais da arquitetura: os que se mantêm “fieles al status quo”, procurando mediatismo e reconhecimento social, e os que “intentan mejorar la vida de las personas” através de projetos sociais e de cooperação multidisciplinar (id.: ibid.).
Na visão de Massad e Guerrero Yeste (2014), os limites desta divisão podem não ser tão claros quanto parecem. Segundo estes autores, alguns arquitetos que se têm vindo a envolver em projetos sociais, fazem-no, muitas vezes, com o intuito de manter o mediatismo e reconhecimento social que lhes fora consagrado. Massad e Guerrero Yeste (2014) salientam que o surgir do interesse de alguns arquitetos por este tipo de projetos deve-se, em grande parte dos casos, à antevisão da recessão económica e financeira norte-americana e europeia, que abalou profundamente o sistema instituído com a consolidação do neoliberalismo e a globalização da economia de mercado nos anos 90 e baseado na figura do “arquiteto-estrela” e do “edifício icónico”, servindo o desejo de espetáculo da “sociedade da informação”. A iminência da crise económica e financeira veio alterar a “fachada do seu modus operandi” (id.: 38), passando estes a renegar o sistema do qual já faziam parte ou ao qual ambicionavam pertencer, secundarizando as “obsessões formais” e enaltecendo uma arquitetura que antes era menosprezada e marginalizada.
Quaisquer que sejam as reais motivações pessoais que conduzem a esta aparente ou efetiva mudança de atuação do arquiteto, isto é, seja por verdadeira oposição à arquitetura do “star-system”, por necessidade de manutenção do seu status quo num contexto de crise económica e financeira, ou por qualquer outra razão, é inquestionável a atenção e difusão dada à arquitetura dita “social”. Apesar de paradoxal, já que toda a arquitetura “atua sobre uma sociedade e exerce-se numa situação social” (Batista, 2014: 3), este termo parece querer definir uma prática que se apresenta como instrumento de transformação da sociedade e, nesse sentido, que retoma a ideia moderna de arquitetura como motor da “revolução social” (id.: ibid.). Se muitos a consideram como estando “fora do espectro” da disciplina, outros reforçam que apenas se encontra “para além” dos seus limites, designando-a, igualmente, de “arquitetura expansiva” (Bell; Wakeford, 2008). Entende-se, aqui, que a “expansão” da arquitetura tem implicado, fundamentalmente, duas condições: uma menor autonomia dos arquitetos na condução dos projetos, e uma maior autonomia na procura de oportunidades de intervenção, subvertendo a lógica tradicional da encomenda. Se a primeira condição é comum aos ideias e práticas dos anos 60 e 70, das quais se destaca a experiência do SAAL em Portugal, a segunda condição julga-se o principal fator de distinção entre os arquitetos socialmente comprometidos de ontem e de hoje, encontrando-se espelhada nos seguintes conceitos críticos emergentes:
- “Urban Curating”, desenvolvido por Raoul Bunschoten (2003) – arquiteto fundador do gabinete londrino Chora – e pelo artista Jeanne van Heeswijk com o objetivo de descrever “a new planning tool” em analogia com práticas correntes da arte contemporânea (Petrescu, 2005: 56). O “urban curator” é considerado o arquiteto que, antes de desenhar objetos físicos, dá forma a princípios organizativos, isto é, desenha processos e interações entre pessoas (Awan; Schneider; Till, 2011: 119), sendo, portanto, “an animator of human behavior” (Bunschoten, 2003). Segundo Petrescu (2005), o curador é, sobretudo, um mediador, “a conector of people, things, desires, stories, opportunities” (Petrescu, 2005: 57).
- “Unsolicited Architecture”, definido pelo arquiteto holandês Ole Bouman (2007) e que vem defender uma maior autonomia e pró-atividade das intervenções arquitetónicas. O Office for Unsolicited Architecture, liderado por Bouman, “procura redefinir a lógica da participação do arquiteto na sociedade, colocando-o numa posição criticamente produtiva” (Batista, 2011: 7), ou seja, explorando “as oportunidades de intervenção, ocultas e inexploradas, adotando um papel mais ativo e autónomo na definição do âmbito e estratégia do projeto” (id.: ibid.).
- “Critical Spatial Practice”, definido pelo arquiteto alemão Markus Miessen (2010) e que “desenvolve uma ideia de participação a partir não do “consenso” mas do “conflito”” (Batista, 2011: 6), isto é, defende que o “praticante espacial” seja “entendido como um estranho que, em vez de tentar estabelecer e sustentar denominadores comuns de consenso, entra em situações e projetos existentes, através da instigação deliberada de conflitos, como forma micro-política de empenhamento crítico com o ambiente em que está a operar” (Miessen apud Batista, 2011: 7).
- e “Spatial Agency”, desenvolvido por Nishat Awan, Tatjana Schneider e Jeremy Till. Estes autores definiram recentemente o arquiteto como “agente espacial”, isto é, como alguém “responsável pelos desejos e necessidades a longo prazo das multitudes de outros que constroem, vivem, trabalham, ocupam e experimentam a arquitetura e o espaço social” (Awan; Schneider; Till apud Batista, 2013: 20-21). Neste sentido, “os agentes espaciais não são nem impotentes nem todos poderosos: são negociadores das condições existentes para parcialmente as reformar” (id.: 21).
2. As Estratégias Sociais Criativas e a Inovação Sócio-Territorial
O conceito de criatividade, enquanto capacidade para produzir novas coisas ou criar novas situações (André; Henriques; Malheiros, 2009), tem sido, ao longo das últimas décadas, bastante abordado na investigação das dinâmicas espaciais e urbanas. De uma forma geral, a criatividade é associada à produção artística e cultural e entendida como motor para o crescimento económico (Hall, 2000). Partindo deste princípio, diversas cidades têm adotado um modelo de desenvolvimento baseado na atração de uma classe criativa como forma de aumentar a inovação e a competitividade do território (Landry, 2000; Florida, 2002). Contudo, este modelo de “cidade criativa” tem-se revelado pouco inovador do ponto de vista social. A teatralização do espaço público e a gentrificação associada à regeneração urbana centrada na oferta imobiliária a esta classe criativa são fatores geradores, por diversas vezes, de exclusões sociais (André; Henriques; Malheiros, 2009). Em resposta a este cenário, visões alternativas sobre o papel da criatividade no desenvolvimento urbano têm surgido com base na ideia de “cidade socialmente criativa” (Gertler, 2004; Scott, 2006), uma cidade inclusiva e solidária (André; Reis, 2009) onde a mobilização de recursos criativos resulta, essencialmente, de processos bottom-up, condição fundamental para a inovação social (André; Henriques; Malheiros, 2009).
As abordagens alternativas à teoria da classe criativa não procuram, assim, contestar a importância da criatividade no desenvolvimento urbano, mas antes uma noção elitista e limitada da mesma (Klein; Tremblay, 2009). Ou seja, “olha-se para a criatividade orientada para as ações coletivas que visam melhorar a qualidade de vida da população, encorajando e incentivando a construção de uma cidade transformadora e participativa” (Freitas; Estevens, 2012: 12), para a criatividade, segundo Swyngedouw e Moulaert (2010), que formula, reivindica e exercita o “direito à cidade” de Henri Lefebvre (id.: 220). É neste contexto que, segundo alguns autores, deve ser reinterpretado o papel dos artistas na cidade. Considerando que a arte ajuda a expressar visões locais e inspira a ação, esta pode ser “um instrumento de estímulo à criatividade necessária ao processo de mudança e transformação que está inerente à inovação social” (Freitas; Estevens, 2012: 12).
Apesar das várias evocações ao processo de inovação social desde o século XVIII, somente a partir dos anos 60 e 70 do século XX, com os movimentos estudantis e trabalhistas decorrentes em diversas cidades europeias e americanas, surge a inovação social “(…) as a kind of common denominator for the different types of collective actions and social transformations that would lead from a top down economy and society to a more bottom up, creative and participative society” (Moulaert; MacCallum; Hillier, 2010: 13-14).
Várias são as definições existentes para o termo “inovação social” desde a sua primeira utilização, em 1970, pelo autor James Taylor (Cloutier, 2003). Segundo Julie Cloutier (2003), investigadora do Centre de Recherche sur les Innovations Sociales (CRISES) [1], na visão de Taylor, “l’innovation sociale désigne de nouvelles façons de faire les choses (new ways of doing things) dans le but explicite de répondre à des besoins sociaux” (id.: 3). Nesta definição estão presentes duas condições que são questionadas por diversos autores que abordam, deste então, este tema: o seu caráter inovador e os objetivos perseguidos. De acordo com Cloutier (2003), embora a maioria considere a inovação social como uma solução ou resposta nova, alguns reforçam o caráter alternativo da mesma e não necessariamente inovador, como Jean-Louis Chambon, Alix David e Jean-Marie Devevey [2]. Ao mesmo tempo, verifica-se uma divisão entre os que assumem a inovação social apenas como resolução de problemas sociais e os que a entendem, igualmente, como uma resposta a um ideal ou aspiração social. Destaca-se Chombart de Lauwe como o percursor desta vertente.
Embora James Taylor evidencie a cooperação entre diferentes atores como uma condição essencial para a criação e produção de inovações sociais, o autor considera como objeto destas inovações a solução apresentada ao problema, isto é, o resultado do processo de resolução e não o processo em si mesmo (Cloutier, 2003). Esta visão é igualmente contestada por alguns autores que defendem o processo como parte integrante do conceito e dependente de duas condições principais: a diversidade de atores e a participação dos destinatários das iniciativas em diferentes momentos (id.).
Apesar destas divergências, de um modo geral, a inovação social é apontada como a melhoria das condições de vida dos indivíduos, do seu meio de vida (território) ou meio de trabalho (empresas) (Cloutier, 2003: 38). Se, nos anos 90, este conceito foi abordado, sobretudo, no campo da gestão e da administração empresarial, no século XXI, tem vindo a ganhar espaço nos mais diversos campos, entre os quais se destaca o campo do desenvolvimento territorial. Neste campo, a inovação social é tida como as mudanças positivas produzidas num determinado território, mais precisamente, segundo Hillier, Moulaert e Nussbaumer (2004), “changements au niveau tant institutionnel que des comportements collectifs et individuels (personnes éminentes, leadership) contribuant à l’intégration sociale” (id.: 137).
Um dos principais contributos para a conceptualização da inovação social no campo do desenvolvimento territorial é dado por Frank Moulaert e seus colegas investigadores no projeto SINGOCOM (Social Innovation, Governance and Community Building). Das pesquisas realizadas no âmbito deste projeto, fundado em 2001 e integrado num programa da Comissão Europeia, nasce o modelo pós-disciplinar de análise de estratégias e processos de inovação social local ALMOLIN (ALternative MOdel of Local INnovation). No contexto do ALMOLIN, o conceito de inovação social envolve três dimensões interdependentes: 1) a satisfação de necessidades humanas não satisfeitas ou não reconhecidas; 2) o empowerment de grupos/comunidades marginalizadas; e 3) a mudança das relações sociais e de poder, particularmente no que se refere às relações de governança territorial (González; Moulaert; Martinelli, 2010: 54).
Segundo os investigadores, estas dimensões, que caracterizam o conteúdo da inovação social local, são diretamente influenciadas pelo tempo e o espaço em que se inserem, isto é, tanto pela trajetória histórica de um determinado território e do seu contexto nas mais extensas escalas, quanto pela sua contingência ou especificidade social e institucional (id.: 56). De acordo com os mesmos, as oportunidades e constrangimentos revelados pelo tempo e pelo espaço influenciam, igualmente, a natureza, estímulos, recursos e dinâmicas de inovação social que pode ser promovida pelos mais diversos agentes – do Estado à sociedade civil, passando também pelas instituições privadas e do terceiro setor.
Outro contributo importante para a definição de um modelo analítico da inovação sócio-territorial, baseado na matriz conceptual do projeto SINGOCOM, é dado pelos investigadores portugueses Isabel André e Alexandre Abreu (2006) no âmbito do projeto “LINKS – Capital Social e Inovação, as redes na promoção do desenvolvimento local”, iniciado em 2002. Em 2009, igualmente sob coordenação de Isabel André, é inaugurado o projeto “RUcaS – Utopias Reais em Espaços socialmente criativos” que vem desenvolver, em particular, o estudo das relações entre a criatividade e a inovação sócio-territorial. No âmbito deste estudo, dá-se particular atenção à sociedade civil enquanto agente promotor de inovações sociais de base territorial, e à criatividade na sua dimensão coletiva, isto é, enquanto recurso para a elaboração coletiva de novas soluções para problemas sociais, levando ao desenvolvimento de conceitos como “estratégias sociais criativas” e “meios socialmente criativos”. Se as primeiras são entendidas como “novas respostas da sociedade, ou de comunidades específicas, para problemas que o Estado ou o mercado não resolvem adequada ou satisfatoriamente” (André; Rousselle, 2010: 73), capazes de gerar inovação social se “forem suficientemente reconhecidas e adotadas” (id.: ibid.), os segundos são aqueles que permitem esse reconhecimento e adoção “sem se fragmentarem e mantendo, ou reconstruindo, a sua identidade” (id.: 75), isto é, que apresentam uma elevada plasticidade ou resiliência.
III. Desenho da Pesquisa
Se os discursos dos arquitetos contemporâneos acerca da sua participação na sociedade levaram ao questionamento sobre o verdadeiro poder transformador dos contextos sociais e institucionais onde intervêm proactivamente, o seu enquadramento na literatura teórica referente às Estratégias Sociais Criativas (ESC) e à Inovação Sócio-Territorial conduziu à seguinte reformulação dessa interrogação: Qual a essência e os impactos das iniciativas de intervenção local dos arquitetos em termos de inovação sócio-territorial? Serão estas iniciativas estratégias sociais criativas capazes de gerar essa inovação?
Esta questão/hipótese de investigação traduziu-se num modelo de análise que se caracteriza por duas etapas fundamentais: a identificação de estratégias sociais criativas e a identificação de impactos em termos de inovação sócio-territorial. Por sua vez, este modelo de análise bipartido deu origem a uma única grelha analítica, composta por seis problemáticas fundamentais (Ferreira, 2014: 57-60): 1) Onde se produzem as iniciativas (meio de intervenção)? 2) Quem promove as iniciativas (agentes promotores)? 3) O que se produz nas mesmas (natureza da intervenção)? 4) Porque se produz (estímulos para a intervenção)? 5)Como se produz (processo de intervenção)? 6) Quais os efeitos produzidos (impactos da intervenção)?
A todas estas problemáticas estão associadas dimensões e critérios de identificação que serão especificados neste artigo no capítulo dedicado aos resultados do estudo de caso, a estratégia de investigação adotada. Entende-se este estudo de caso, não só como instrumental – na terminologia de Robert Stake –, na medida em que serve de apoio à compreensão das relações entre a prática proactiva do arquiteto e as estratégias sociais criativas capazes de gerar inovação sócio-territorial, mas também como crítico e exploratório – na nomenclatura de Robert Yin –, dado que, tanto possibilita testar uma hipótese, quanto se constitui como um estudo-piloto na pesquisa de um fenómeno pouco estudado (Alves-Mazzotti, 2006).
Como objeto de estudo empírico correspondente a este estudo de caso foram escolhidas duas intervenções realizadas em 2011 e 2013 na Cova do Vapor – bairro informal localizado na freguesia da Trafaria do concelho de Almada –, respetivamente, a iniciativa TISA (The Informal School of Architecture) e Casa do Vapor (Centro Comunitário Temporário). As razões que justificam esta escolha prendem-se, não só com o pioneirismo das iniciativas no contexto português, mas também com o facto de se centrarem num mesmo território, o que possibilita explorar as dimensões espacial e temporal da inovação sócio-territorial, isto é, compreender as características da Cova do Vapor que possam ter favorecido o surgimento e o desenvolvimento de ambas as iniciativas.
De modo a orientar este estudo de caso foi aplicada uma estratégia metodológica que se baseou, essencialmente, na aferição da perceção pública e individual dos agentes promotores e operadores, da comunidade alvo, e dos representantes das instituições de governança local, relativamente às condições de produção das iniciativas e aos seus impactos no território de intervenção. Tal implicou a adoção de diferentes instrumentos de recolha de informação como a análise bibliográfica, documental e de dados estatísticos, e a realização de entrevistas semiestruturadas. Estas entrevistas foram realizadas a três amostras de entrevistados, correspondentes aos três tipos de atores identificados – agentes promotores e operadores da TISA e Casa do Vapor, habitantes da Cova do Vapor, e representantes da Associação de Moradores e da Câmara Municipal de Almada –, e elaboradas por critério de conveniência, já que não se tencionava que estas fossem representativas da perceção dos diferentes grupos, mas antes que identificassem aspetos críticos que pudessem fundamentar a essência e os impactos das iniciativas em termos de inovação sócio-territorial. Como forma de análise das entrevistas recorreu-se à técnica de análise de conteúdo qualitativa estruturante.
IV. Estudo de caso – As iniciativas de intervenção dos arquitetos na Cova do Vapor: a TISA e a Casa do Vapor
Neste capítulo procurar-se-á realizar uma síntese do estudo desenvolvido sobre as iniciativas de intervenção dos arquitetos/coletivos de arquitetura na Cova do Vapor. Neste sentido, expõem-se seguidamente os principais resultados da análise da presença de dimensões e critérios básicos de identificação das ESC capazes de gerar inovação sócio-territorial nos projetos TISA e Casa do Vapor, distribuídos pelas seis problemáticas identificadas no capítulo anterior.
No que respeita ao meio de intervenção – a Cova do Vapor –, verificou-se que este se encontra coincidente, ao nível da escala, com a generalidade dos meios propícios ao desenvolvimento de ESC, ou seja, a micro-escala local. De uma forma genérica, a Cova do Vapor pode ser definida como um pequeno bairro informal, localizado numa área de grande dinâmica morfológica da Península de Setúbal (Figura 1), mais precisamente “no ‘cotovelo’ de terra que o rio Tejo construiu com o Oceano Atlântico, no extremo Norte da Costa da Caparica” (Queirós, 2011: 44). A origem da Cova do Vapor remonta aos anos 20 do século XX, altura em que era uma pequena aldeia de pescadores situada num extenso areal que se aproximava do Bugio (id.). Desde os anos 40 que o seu percurso histórico tem sido marcado por diversas ameaças à sua existência. Após um processo de demolição das habitações construídas espontaneamente pelos pescadores, e de construção das primeiras casas de madeira, autorizadas para os mesmos pelas entidades públicas que tutelavam a área nesta década, a Cova do Vapor foi crescendo, novamente de forma espontânea, como povoado balnear e de residência permanente, ao mesmo tempo que foi sendo empurrada pelo mar para terrenos privados pertencentes à antiga Fábrica de Explosivos da Trafaria (id.). Com o recuo da linha de costa, uma faixa destes terrenos passou a pertencer à área de domínio público marítimo, atualmente tutelada pelo Ministério do Ambiente e pela Administração do Porto de Lisboa (Ferreira, 2014).
Figura 1. Localização geográfica da Cova do Vapor no extremo ocidental da Costa da Trafaria, Almada, Portugal. Fonte: Google Earth.
Apesar de uma nova ameaça de demolição no período pós-revolucionário dos anos 70, altura em que se registou um crescimento descontrolado das habitações, os moradores, que já se haviam unido no processo de deslocação das suas casas de madeira face às investidas do mar e no pagamento da instalação de água canalizada no bairro, voltaram a unir esforços para a realização de outras infraestruturas nas décadas seguintes. No entanto, os anos 2000 trouxeram mais entraves à sua permanência. No início desta década, parte dos terrenos ocupados, e outros envolventes, foram adquiridos pela empresa URPRASOL com vista à promoção de um grandioso projeto de renovação urbana, vocacionado para o turismo. Estas intenções foram apresentadas em 2002 e previam a “renaturalização” da Cova do Vapor, isto é, a demolição das construções existentes. Tais objetivos foram igualmente enquadrados no Regulamento do Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) Sintra-Sado (2003: 3649). O chumbo do projeto da URPRASOL, em parceria com a Parque Expo, pelo Instituto da Água, em 2007, devido ao elevado risco de erosão da costa; a indefinição do POOC Sintra-Sado, igualmente transposta para o Plano de Pormenor de São João da Caparica, quanto ao destino das populações em caso de concretização da referida demolição; e a incapacidade financeira da Câmara Municipal de Almada (CMA) para fazer avançar um programa de tamanha envergadura financeira, foram contribuindo para a manutenção da Cova do Vapor e, ainda assim, reforçando a esperança dos moradores numa futura legalização e qualificação espacial. No entanto, perante os constrangimentos colocados pelo POOC, que impossibilitam, igualmente, qualquer ação da CMA no sentido de melhoria das construções existentes ou aumento da área construída do bairro, considerou-se, à data de ambas as iniciativas (2011 e 2013), não existirem oportunidades imediatas de mudança das suas condições física e jurídica. Ao mesmo tempo, apesar da tolerância e memória coletiva registadas, identificou-se, no momento das intervenções, uma homogeneidade sociocultural, falta de participação cívica no interior da comunidade, e fraco capital relacional ao nível das pontes estabelecidas com o exterior, que levaram a considerar uma falta de plasticidade/resiliência do meio que pudesse facilitar a adoção de ESC. Contudo, considerando que os meios criativos podem ser, não só “condição para”, como “produto das ESC”, as iniciativas desenvolvidas na Cova do Vapor poderiam vir a reunir condições para romper com algumas dinâmicas locais existentes.
1. Quanto aos agentes promotores das intervenções, duas características costumam estar associadas às ESC: a sua elevada qualificação e a sua inspiração em ideais dos anos 60 e 70. Estas características foram comprovadas na análise dos agentes impulsionadores de ambas as iniciativas – Filipe Balestra do coletivo Urban Nouveau* e Alexander Römer do coletivo Exyzt. Nesta análise identificaram-se especiais ligações dos agentes aos discursos da “arquitetura utópica” daquele período. As experiências profissionais anteriores em diferentes contextos – os Urban Nouveau*, responsáveis pela TISA, em espaços informais e os Exyzt, responsáveis pela Casa do Vapor, em contextos formais – não se revelaram determinantes no sucesso de uma iniciativa em relação a outra. Já a diversidade de agentes operadores, particularmente atores de diferentes áreas disciplinares, teve especial influência nos resultados da iniciativa Casa do Vapor.
2. Relativamente à natureza das intervenções, esta revelou-se, em ambas, simultaneamente material (produto) e imaterial (processo), na medida em que consistiram, não só, no caso da TISA, na criação de uma escola informal de arquitetura que foi responsável pela realização de um levantamento e de uma maqueta do bairro (Figura 2), e, no caso da Casa do Vapor, na construção e ativação de uma casa comunitária temporária que acolheu uma cozinha comunitária, rampa de skate, cicloficina, espaços multiusos e biblioteca pública (Figura 3), mas igualmente num processo de expressão e valorização cultural da comunidade.
3. Em termos de estímulos para as intervenções, estes coincidiram, igualmente, com as características das ESC. Tanto as motivações pessoais como sociais foram determinantes em ambas as iniciativas, apesar da natureza destas últimas ser divergente. Enquanto a TISA resultou, num primeiro momento, das limitações do ensino da arquitetura e da prática profissional face à crise, a Casa do Vapor partiu essencialmente dos recursos materiais e humanos disponíveis após o projeto/workshop “Construir Juntos”, realizado no âmbito da Capital Europeia da Cultura – Guimarães 2012. Ao mesmo tempo, embora os princípios e valores da comunidade da Cova do Vapor, como a autoconstrução coletiva, tenham sido considerados, por ambas as iniciativas, como oportunidades de intervenção, os seus objetivos revelaram-se distintos. Se a TISA se centrou na tentativa de resolução dos problemas da comunidade, nomeadamente, no desbloqueio do processo de legalização e qualificação espacial do território através da mediatização do projeto; a Casa do Vapor partiu, essencialmente, de uma aspiração de ordem social ao promover um local de encontro e partilha entre a comunidade e o exterior.
Apesar de todos os recursos que tradicionalmente determinam o sucesso dos processos das ESC (humanos/sociais, organizacionais e financeiros) terem sido mobilizados nas duas iniciativas, nem todos foram, efetivamente, captados na TISA, o que condicionou a sua temporalidade. Embora tenham integrado a comunidade no processo de intervenção, criado parcerias com a Associação de Moradores da Cova do Vapor (AMCV) e com as escolas profissionais EPAD e Gustavo Eiffel, e mobilizado voluntários externos, o facto de não terem conseguido angariar financiamentos e, sobretudo, trabalhar em parceria com a CMA – dado que os seus objetivos esbarravam nos constrangimentos de ação desta entidade – levou os Urban Nouveau a travar o processo de intervenção após concluído o levantamento e a maqueta do bairro.
Figura 2. Urban Nouveau*, TISA, Exibição da maqueta, Cova do Vapor, Almada, Portugal, 2011. Autor: Pedro Aperta/Global Imagens. Fonte: Diário de Notícias, 07/08/2011
Figura 3. Exyzt e ConstructLab, Casa do vapor, Cova do Vapor, Almada, Portugal, 2013. Autor: Alex Roemer. Fonte: Revista domus (online), 06/08/2013.
Contrariamente, a Casa do Vapor revelou-se melhor sucedida na mobilização de recursos financeiros e organizacionais e apresentou algumas fragilidades ao nível da participação da comunidade. Ainda assim, apesar de a maioria dos voluntários envolvidos na construção e ativação da Casa não pertencer à comunidade, a iniciativa contou igualmente com a participação de voluntários do próprio bairro. Esta participação, juntamente com o trabalho em parceria com a AMCV, e outras entidades a diferentes escalas, e o financiamento da CMA – apoiando todas as atividades à exceção da construção – foram determinantes na dinâmica projeto. Embora, meses depois do seu começo, os arquitetos tenham dado por concluída a sua intervenção que, desde sempre, se previa temporária – não só pelo facto de a efemeridade ser um dos princípios da metodologia de trabalho do coletivo Exyzt, mas igualmente pelas restrições impostas na licença de construção concedida pela Agência Portuguesa do Ambiente – alguns agentes com quem estabeleceram colaborações deram início a um novo ciclo de vida do projeto. Após a desconstrução da Casa, a biblioteca pública nela instalada foi transferida para uma sala cedida pela AMCV (Figura 4), sendo então redesenhados os seus mecanismos de governança, isto é, sendo a comunidade integrada na sua estrutura organizativa – o Conselho Gestor da Biblioteca do Vapor (CGBV).
Figura 4. Reinauguração da Biblioteca do Vapor, Cova do Vapor, Almada, Portugal, 2014. Fonte: https://www.facebook.com/bibliotecadovapor/photos/pb.479351898859153.-2207520000.1432730631./483174925143517/?type=3&theater
- 1. No que respeita aos impactos da iniciativa TISA, não se registaram necessidades satisfeitas diretamente pela ação dos arquitetos mas, apenas, um pequeno apoio financeiro e técnico ao processo de satisfação das necessidades de pavimentação e drenagem de ruas, já desencadeado pela população. Apesar da fragilidade ao nível da satisfação de necessidades, a intervenção da TISA revelou, ainda assim, alguns efeitos em termos de empowerment, nomeadamente, um alargamento das relações da comunidade com o exterior, por via dos laços de amizade criados com os agentes de intervenção; e um reforço da identidade da comunidade, sobretudo pela valorização do seu edificado, do seu processo de construção. Ao nível da mudança das relações sociais e de poder em termos de governança territorial, identificaram-se: uma melhoria da perceção da comunidade sobre si mesma em relação com o exterior, ou seja, um atenuar da sensação de abandono e esquecimento; uma maior autoestima que levou ao desencadear de pequenas melhorias no edificado, conduzidas pelos próprios moradores; e a criação de uma imagem pública positiva sobre o bairro através da mediatização da iniciativa. Não se registaram alterações nas relações com as entidades públicas locais pelas questões processuais já enunciadas, ou seja, pelo confronto dos objetivos da iniciativa com os constrangimentos supramunicipais colocados à CMA. Tal como na generalidade das ESC, a iniciativa TISA, embora coercivamente interrompida na Cova do Vapor, acabou por alargar o seu território de ação. O mentor do projeto continua a divulgá-lo em conferências internacionais e a reproduzir o modelo de intervenção noutros contextos territoriais.Apesar da satisfação de necessidades não ter sido o motor do projeto, a Casa do Vapor permitiu satisfazer necessidades não reconhecidas pela comunidade, como a expressão artística e cultural, assim como satisfez, mesmo que temporariamente, necessidades materiais de alguns habitantes, como o emprego e os equipamentos de lazer/recreio. Relativamente ao empowerment da comunidade, registaram-se igualmente resultados mais significativos do que na TISA, sendo eles: ao nível das relações internas, a melhoria dos relacionamentos entre jovens e idosos e entre as crianças; ao nível da expressão da identidade, o reforço da memória coletiva através das atividades culturais da Casa e do fundo local da biblioteca; ao nível dos conhecimentos e competências adquiridas, a aprendizagem proporcionada pela cicloficina e pelas atividades culturais e artísticas da Casa do Vapor e da Biblioteca do Vapor às crianças e adultos do bairro, sobretudo os integrados no CGBV; e ao nível do conhecimento partilhado, a aprendizagem entre membros do CGBV, entre estes e as crianças e entre elas próprias. Finalmente, no que respeita à mudança das relações sociais e de poder em termos de governança territorial, os efeitos mais significativos revelaram-se: no reforço da opinião pública positiva sobre o bairro, por via, igualmente, da mediatização do projeto; na alteração das relações entre os moradores e a AMCV, através do incentivo a uma maior participação dos primeiros na vida da comunidade, sendo a sua integração no CGBV um exemplo dessa alteração; e na mudança das relações entre os moradores e a própria CMA, passando estas a estabelecerem-se, já não por intermédio único da AMCV, mas, através de um diálogo direto que permite aos moradores estarem mais informados sobre os impedimentos de ação do município e, a este, estar mais atento aos problemas e necessidades da comunidade. Neste sentido, considerou-se que a Casa do Vapor veio estabelecer uma ponte entre a comunidade e o poder público. Esta ponte que se estabeleceu reforçou a importância destas iniciativas aos olhos da CMA que as passou a ver como uma oportunidade de intervir em locais onde a sua ação se encontra bastante condicionada. Tal como na generalidade das ESC, a iniciativa Casa do Vapor, apesar de nascer pequena e local, acabou por tornar-se maior e expandir os seus efeitos a outros territórios, aqui por via da associação com outros projetos, nomeadamente, através da cedência de recursos materiais e participação dos seus agentes operadores nos projetos da Cozinha Comunitária das Terras da Costa e da Biblioteca da Trafaria, ambos desenvolvidos no concelho de Almada.Reflexões FinaisA partir da análise detalhada das seis problemáticas de investigação, foi possível identificar, em ambas as iniciativas, a presença de características das ESC, embora de forma mais completa na Casa do Vapor, o que permitiu que esta registasse resultados mais significativos em termos de inovação sócio-territorial do que a TISA. Considera-se, assim, que a hipótese de investigação foi parcialmente confirmada no estudo de caso, ou seja, as iniciativas de intervenção dos arquitetos na Cova do Vapor apresentam características das ESC, mas não foram capazes de gerar inovação sócio-territorial em todas as suas dimensões, apesar de, de um modo geral, denotarem capacidades para a impulsionarem.Com base no estudo de caso e na produção teórica já existente sobre o tema da participação em arquitetura, identificam-se alguns desafios que se julga terem de ser enfrentados pelo arquiteto no sentido de prosseguir uma prática socialmente inovadora. São eles: 1) assumir as motivações e implicações políticas dos processos e produtos da sua prática e evitar a instrumentalização das comunidades para simples proveito próprio; 2) considerar a natureza política do espaço e, como tal, os constrangimentos que se colocam às intervenções, não só à escala local como supralocal; 3) ter consciência de que, sendo um “outsider”, “exterior” ao meio onde decide intervir, corre o risco, por maior que seja a sua “boa vontade”, de cair num involuntário paternalismo (Friedman, 2000 [1974]); 4) considerar as exigências e necessidades da comunidade; 5) perder o medo de negociar com a mesma e, por essa razão, deixar de ser visto como arquiteto (Till, 2005); 6) estabelecer novos meios de comunicação para essa negociação por alternativa aos herméticos códigos de linguagem e desenho que ajudaram a legitimar a profissão (id.); 7) estabelecer colaborações com diversos atores externos à comunidade; 8) considerar as vantagens e desvantagens do mediatismo das suas intervenções; e finalmente, 9) perspetivar a evolução do projeto a longo prazo, ou seja a sua apropriação pela comunidade, mesmo que a sua intervenção seja temporária.Entende-se que a investigação realizada permite incentivar a generalização da análise a outros casos, com o intuito de aprofundar a compreensão das relações entre as iniciativas de intervenção urbana local de arquitetos ou coletivos multidisciplinares, que visem a produção de transformações sócio-espaciais efetivas e duradouras através da arquitetura e da arte, e as ESC capazes de gerar inovação sócio-territorial. Nesse sentido, e considerando que estas iniciativas se constituem como um fenómeno que ganha uma expressão cada vez maior, julga-se que o potencial da investigação desenvolvida reside no facto de abrir caminho ao desenvolvimento de mecanismos que facilitem a sua implementação futura e que garantam a sustentabilidade dos seus resultados, tendo sempre em consideração as especificidades de cada contexto territorial.
Notas de rodapé
[2] “Organização canadiana interuniversitária e multidisciplinar, fundado em 1986 e pioneira nos estudos sobre inovação social” (André; Abreu, 2006).
[3] Jean-Louis Chambon, Alix David e Jean-Marie Devevey publicam, em 1982, “Les Innovations Sociales”, o primeiro grande contributo para a conceptualização deste termo.
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