Alexandre Carlos Guerreiro Vicente
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Resumo
Este trabalho pretende ser uma reflexão sobre o olhar, analisando a sua historia e evolução e o modo como o temos usado para decifrar e entender as nossas envolventes. Pretende mais que tudo chamar o leitor para uma nova maneira de olhar a arquitetura, a paisagem, o objeto, como algo que cria emoções e comunica, exemplificando com conceitos e objetos de estudo assim sendo este ensaio analisa vários elementos desde peças arquitetónicas a instalações e peças artísticas.
É uma reflexão sobre os diversos aspetos da condição de limite, fronteira e vigilância, procurando enaltecer o limite da paisagem e da visão como um lugar e espaço de contemplação, instabilidade e mudança. A proposta pretende não só valorizar esta ideia de retrospeção sobre o conceito de paisagem, mas também criar algo pela qual o próprio lugar se identifica.
O olhar como instrumento criador de espaço e arquitetura.
Vigilância e fronteira
O conceito de vigilância remonta ao início dos tempos, não só por questões pragmáticas de defesa surge por necessidade, antes de mais, a necessidade de proteção, proteção e segurança controlo sobre o território de quem o habita ou invade, vindo a evoluir durante as várias fases da história, passando apenas por simbologia até à realização de sistemas de controlo e rastreamento; a partir do século XVIII começou a ter um impacto mais visível no modo como a sociedade é encarada. A sua terminologia está agregada a conhecimento, visão e poder (savoir, voir e pouvoir, palavras que, na língua francesa partilham o mesmo sujeito), o poder do controlo sobre o objeto a partir do sujeito. Foi durante a Era da Razãoque o observar teve a sua grande relevância e reconhecimento como paradigma de cognição. No Iluminismo “(…) é definido pela modificação da relação pré-existente que liga a vontade, a autoridade e o uso da razão” (…)[1](Foucault, 1984), e procurou concentrar o poder da razão a fim de aperfeiçoar a sociedade e o conhecimento prévio.
Atualmente, existe um sistema de controlo antagónico à Era da Razão. Este sistema tecnologicamente avançado exerce todo o controlo social, que imposto subtilmente através de sistemas de video vigilância até ao próprio controlo do uso da internet consegue controlo sobre a sociedade.
A inspeção sobre as nossas ações é praticamente absoluta através de todo o tipo de mecanismos e sistemas que fazem parte dos nossos hábitos diários, muitas das vezes sem a nossa perceção. O mecanismo atual de controlo desenvolveu-se primeiro com a fotografia, depois com a cinematografia e finalmente com a captação ótica através da câmara televisiva. O conceito de Big Brother proveniente do Televisor de George Orwell em 1984 [2] (Orwell, 1949)aplicado aos dias de hoje é um dos exemplos.
A sociedade de controlo propagou-se insidiosamente a quase todos os aspetos do quotidiano.
Na mediação entre interior e exterior proporcionada pelo olho, órgão sensorial que capta luz e transmite perceção da envolvente, o sujeito (exterior) é analisado pela perceção ativa do objeto (interior), é deste modo que o objeto adquire conhecimento.
O olho, neste ponto, sobressai como órgão de maior importância, enaltecido pela sua atividade passiva. Ao contrário de todos os outros órgãos, este tem a capacidade não só de absorver mas também de estabelecer uma interligação entre dois seres humanos criando uma comunicação não-verbal. O olho como mediador entre interior e exterior do mundo subjetivo, usado para criar a distinção de um lado e não do outro, é no fundo um limite – fronteira, em que o que se encontra de um lado só pode ser interiorizado pelo sujeito através dessa mesma fronteira que é o olho.
O olho como mecanismo de porder
O órgão visual tem sofrido ao longo dos tempos uma série de avaliações por parte do pensamento envolvido nas suas capacidades. Sendo um mecanismo ativo bastante superior aos outros órgãos cognitivos permite não só a observação mas também ser utilizado como mecanismo de socialização e de aprendizagem, mais do que aprendizagem a busca pela
razão, pelo conhecimento.
Figura 1 – The Eye of Providence
Muito antes da visão ter sido utilizada pelas várias vertentes do Iluminismo durante o século XVIII podemos encontrar uma série de ilustrações e composições que proveem do século XVI, a imposição do controlo está patente em representações que provem deste século até ao controlo dos media nos dias de hoje. Ao longo dos tempos, toda esta simbologia impôs nas ações das pessoas um regime que ditava os limites e fronteiras entre o que se pode ou não fazer, porque existe algo que nos observa constantemente.
Entre vários exemplos destaca-se a obra de Jan Provost, A Sagrada Alegoria [3](Provost ,1510-1520), a qual já propõe uma hierarquização do controlo e do mecanismo de olhar. Trata-se de uma imagem complexa com elementos que podem ser individualmente identificados, sendo que os componentes alegóricos são dispostos em torno de um eixo central e relacionam-se mutuamente. Tudo é minuciosamente colocado de modo a que o olho seja o elemento dominador. Neste caso é apresentado o olho de Deus, o símbolo como foco de todos os olhares presentes na pintura, ele possui a autoridade suprema que não tolera nenhuma resistência. Este olho que tem vindo a ser utilizado constantemente na simbologia cristã ao longo dos tempos, impõe sobre a prática religiosa a existência de um controlador omnipresente, um olho que tudo sabe e tudo vê.
A ilusão de um controlo constante induz um primeiro controlo social na história, onde as nossas ações diárias contribuem para o bem ou mal estar do nosso futuro. Não obstante é sugerir que houve uma aceitação por parte das pessoas por uma supervisão simbólica, esta interiorização pelas pessoas crentes que impõe uma prática de vigilância.
Figura 2 – Allegorie Chretienne
A hierarquização deste poder da visão pode ser observada no quadro de Hieronymus Bosch, Sete Pecados Capitais [4](Bosch, 1480-1500), um dos primeiros exemplos na história da pintura moderna a representar não só a alegoria à visão. O quadro composto por um fundo negro com cinco círculos, quatro nos cantos e um maior central, os círculos mais pequenos, representam por ventura o destino final que cada ser terá de enfrentar, a morte, o inferno, o julgamento final ou o paraíso, sendo que o circulo central é composto por vários níveis que o separam.
No centro do quadro está representado o olho de Deus, olhando sobre Cristo, este por sua vez observa sobre os sete pecados mortais e pode ser entendido como o reflexo do mundo sobre os olhos de Deus. Finalmente e reforçando a mensagem em cima do circulo encontra-se a frase Cave Cave Deus Videt (“Atenção Atenção Deus Vê”).
Toda a composição do quadro reforça a vigilância de Deus sobre as ações das pessoas e o preço a pagar por cometer tais pecados, através do quadro é representado um poder do olhar absoluto, evitando palavras para se descrever, impondo uma ideia de vigilância, mas ao mesmo tempo é um objeto da razão, porque quem o possui tem a capacidade de obter conhecimento, de ser iluminado ao mesmo tempo que impõe controlo sobre os demais.
Figura 3 – Seven Deadly Sins
Este controlo não está patente apenas psicologicamente através de representações, a presença da visão como impositor de ordem e controlo é existente e surge primeiramente em inúmeras estruturas militares espalhadas pelas raias nacionais. A arquitetura militar cuja função principal era a proteção e a defesa do território, era também planeada com o intuito da vigilância sobre esse mesmo território sendo centralizador do poder militar.
Para compreender o fenómeno de vigilância é necessário aplicar a lógica inerente à observação, sendo que no caso das torres a vigilância inerente a este objeto é enaltecida pelo facto de serem observadas e ao mesmo tempo deixarem-se observar.
Formalizando a observação
Uma das primeiras referências históricas sobre torres, é a torre de babel, que nunca foi construída devido à confusão de línguas imposta por Deus aos trabalhadores, no entanto o olhar e o controlo da observação sobre algo que domina a paisagem, não necessita de palavras para se explicar.
Nos finais no século XII surgem as domus fortis, uma estrutura fortificada que funcionava como afirmação de poder dos nobres perante as populações rurais. A Torre foi eleita por esta altura como símbolo de poder, semelhante à antiga torre de menagem dos castelos, a torre senhorial (domus fortis), demonstra essa busca de prestígio e de poder.
A residência de Lourenço Fernandes da Cunha, a Torre Cunha, surge nos finais do século XII (1171) no Entre-Douro-e-Minho e é um dos exemplos mais antigos de uma residência que ostenta os vários componentes da domus fortis. A Torre senhorial possuía uma estrutura de pedra, de planta quadrangular e localizava-se numa pequena colina no vale. A sua implantação ao contrário da torre de menagem, que se situava num plano elevado para um maior controlo visual sobre o território, deve-se à garantia de novas condições de habitabilidade, reforçando a legitimidade da posse do seu espaço agrícola.
As torres eram claramente o símbolo de poder das novas residências senhoriais, geralmente apresentavam planta quadrangular, estrutura em pedra com dois ou três andares em madeira, tendo componentes de defesa eram por vezes rodeadas de fosso. O acesso era garantido pelo primeiro andar, sendo este movível para se poder recolher em caso de ameaça, com poucas aberturas as que existiam eram frestas estreitas.
Neste caso particular a Torre sendo usada como ostentação de poder desejava ser observada, permitindo através das estreitas frestas observar qualquer tipo de ameaça.
A Torre de Dornelas, construída no século XIII, apresenta uma planta quadrangular de 5m x 5m, com o andar térreo sem aberturas, permitia o acesso a partir de uma porta de arco ao primeiro andar. Respondendo às necessidades de segurança as escadas em madeira de acesso à entrada era movíveis, com três pisos todos em madeira ostentando a sua nobreza permitia-se a ser observada desde muito longe.
Figura 4 – Torre de Dornelas
Alhambra trata-se do exemplo de arquitetura medieval islâmica, ainda hoje existente, da culminação da cultura islâmica medieval na Península Ibérica. O seu nome em árabe é Qal’at al-Hamra ou o Forte Vermelho devendo-se ao material usado na sua construção, a argila vermelha que foi encontrada na zona. Localizado no topo de uma colina começou como uma fortaleza no final do século XIII. Sendo depois transformado num palácio da cidade, durante a maior parte da sua história funcionou como palácio real, devido à sua localização elevada e separada da cidade de Granada.
A elevação da colina serviu como uma defesa natural, sendo o local estratégico de proteção e um símbolo de poder real. Mais do que a sua localização, outros elementos, como a muralha em pedra em torno da cidadela, portas e torres criaram a aparência de uma fortaleza. Esta localização só poderia ser sustentada pela riqueza, porque a água teve de ser trazida para a colina através de um sistema de aquedutos e cisternas.
Alhambra invoca a memória de muitas fortalezas medievais cristãs no seu desenho composto por um castelo, um palácio e um anexo residencial. A cidadela, ou pelo menos a sua parte mais antiga é construída sobre o promontório isolado e íngreme, estando protegida de possíveis ataques. De facto o aspeto de fortaleza pode derivar da tradição existente das torres senhoriais, que se localizavam fora das cidades e continham preocupações defensivas, claramente com um caracter militar. Em todo o caso, esta preocupação de caracter militar promove a autoridade, prestigio e poder.
As suas torres de vigia tinham em sua principal função observarem e serem observadas. O facto de observarem enuncia preocupações militares, já o de permitirem serem observadas demonstra uma preocupação de demonstração de poder e autoridade. A Torre de vigia de La Vela, tendo vinte e cinco metros de altura, foi usada como símbolo de conquista aquando da conquista espanhola de Granada em 1492. Esta torre foi acrescentada às muralhas no século XVIII e restaurada já em 1881.
A Porta da Justiça, com um enorme arco que é encimado por uma torre quadrada, foi utilizada pelos mouros como um tribunal de justiça, claramente mais um símbolo de autoridade para quem de muito longe observa a fortaleza.
Figura 5 – Torre de Comares, Alhambra
A Torre de Comares construída no século XIV é a maior das torres existentes em Alhambra, com uma altura de quarenta e cinco metros é o momento em que o observar e o ser observado é levado ao extremo. Símbolo de poder esta Torre está associada aos momentos históricos mais importantes de Alhambra que ao ser observada transmite uma imagem de poder, as suas torres caracterizam não só a paisagem como a dominam.
As fortalezas assumiram assim funções de organização militar, social, política e económica, prevalecendo na paisagem como sinais de poder, desempenhando um papel defensivo e organizacional da exploração dos territórios nos quais estavam inseridas, essencialmente funcionavam como um discurso de domínio e dissuasão e imponham uma vigilância sobre o território.
A imagem da fortaleza como símbolo de poder inerente à lógica da construção medieval resulta numa comunicação visual, direta e percetível desde muito longe. A palavra fortaleza, provém do latim fortitudo, que significa força, resistência, coragem, assim nome e conceito estão interligados. O conceito de resistência assume maior importância quando no século XIV surgem igrejas fortificadas na Península Ibérica, que possuem mecanismos de defesa e desempenhavam funções claramente militares, oferecendo resistência aos invasores. Esta solução defensiva era obtida através da torre do campanário, que construídas com espessas paredes de pedra tinham altura superior ao convencional e representavam a fusão entre a torre militar e o campanário religioso.
Dentro de um núcleo urbano fortificado alguns edifícios, como a igreja, ou mesmo o “paço” senhorial não podiam deixar de ser identificáveis, sendo que as suas dimensões encarecidas destacavam-se no território, permitindo assim observarem e serem observadas.
A disponibilidade da artilharia nos castelos do interior obrigou a inventar mecanismos de construção que anulassem as consequências do ataque da artilharia, a resposta foi o surgimento de torres de menagem sólidas assim como torreões numerosos estrategicamente localizados nos pontos mais altos do território onde de cima das torres o domínio visual do território era bastante abrangente permitindo ser observada desde muito longe, assim como fortalezas que procuravam reforçar a imagem de poder realizando necessidades estratégicas de vigilância e defesa, a sua localização contribuindo para a formação e interiorização de uma imagem mental como elemento fundamental de domínio da paisagem, estruturante de território e protetor da população adquirindo a sua maior importância quando localizado nas regiões fronteiras, induzindo também a uma imagem mental e conceptual de observação, assim como os quadros e representações anteriormente falados.
No interior das fortalezas surgiam as torres de menagem situadas num nível mais alto. A torre de menagem era a residência do poder feudal assumindo uma lembrança constante da sua presença, ou seja, funcionava como a materialização de uma autoridade. Sendo um sistema vertical de dependências, implicava também uma hierarquização da paisagem. Destacada do resto da fortaleza, localizava-se num ponto elevado do terreno e possuía uma imagem máxima de poder e de controlo.
Com uma altura raramente inferior a dez metros, podia alcançar os quinze ou mesmo os vinte metros, de planta quadrangular ou retangular a torre de menagem era concebida como um último reduto defensivo, funcionando como que uma fortaleza dentro da fortaleza acabou por se tornar num símbolo de poder.
Figura 6 – Torre de Menagem do Castelo de Melgaço
Sobre constante vigilância
Não seguindo a ideia de observação de um objeto sobre o território, outro tipo de estrutura, o Panóptico impõe a observação sobre si mesmo.
O Panóptico (Pan significa tudo e optico significa visível), conceito realizado por Jeremy Bentham e publicado pela primeira vez em cartas que datam de 1791, cujos objetivos passavam pela construção da utopia a partir da realidade do mundo exterior e uma busca do controlo humano através do desenho. Foram realizados com a concretização da ideia da prisão, uma prisão onde tudo é observável, o Panóptico, um enclave da razão, onde os mecanismos de vigilância e equilíbrio eram essenciais para a busca do sentido do dever como objetivo superior. Anteriormente ao Panóptico, Claude-Nicolas Ledoux construiu em Arc-et-Senans [5] (Ledoux, 1775-1778) uma fábrica de sal que continha uma característica especifica, uma central de observação ponto central que serviu como exercício de poder e, simultaneamente, para o registro de conhecimento, ou seja, esta ideia de controlo a partir de um ponto nevrálgico de uma estrutura já existia.
Este modelo de prisão de planta circular, composto por vários níveis e sistemas, era entendido como o “olho da providência”, que neste caso tem uma conotação religiosa. Através de meios puramente arquitetónicos, Bentham torna assim possível a aplicação de um sistema de ordem e eficácia com apenas uma autoridade de vigilância absoluta.
O pressuposto da estrutura do Panóptico, baseava-se na ideia de vigilância constante sobre o indivíduo, mesmo que este não fosse observado. O fazer sentir, psicologicamente, que se encontra sobre constante observação, fazendo com que o observado já se sinta o objeto da observação, controlado sobre o seu domínio. Isto funcionava através da disposição de celas de modo circular, com vãos que permitiam uma enorme entrada de luz para o interior das celas, celas estas que apontavam a sua entrada para o centro do círculo, onde se encontrava a torre de vigilância. O efeito luminoso criado pelos vãos de vidro, permitia em contraluz um controlo por parte de quem observava, em contrapartida, o observado não conseguia ter noção se realmente era observado por alguém, ou seja, existe uma noção de constante vigilância que nem sempre acontecia.
A sensação causada pelo olhar, pode ser entendida através de Georg Simmel que defende na sua sociologia dos sentidos que os humanos compreendem-se através dos sentidos onde o olhar cria uma “ponte” entre o entendimento de duas pessoas. Esta ligação só é perdida no momento que a direção do olho é desviada do contacto de olhar para olhar. As celas que ficam numa galeria circular encontram-se separadas por uma torre de vigilância onde se encontrariam os guardas. Ambos os volumes teriam dois pisos, e o diretor, também se localizando no volume central, conseguiria observar tanto as celas como os guardas, até porque estaria a um nível superior. A inspeção é então instituída através de um controlo omnipresente, uma vigilância baseada no imaginário de quem está a ser observado, onde a conotação religiosa é óbvia. Na busca pelo modelo único e perfeito de prisões existem incógnitas que são demonstradas pelas várias fases do panóptico, porém sempre com uma certeza de vigilância e controlo absoluto, racional de uma sociedade, ou seja, “o paradoxo de uma prisão como sociedade ideal” [6] (Trigueiros, 2011).
Figura 7 – A Penitenciária Panóptica
Apesar de a proposta de Bentham nunca se ter realizado, as suas ideias transpareceram para uma grande quantidade de propostas que surgiram posteriormente. Inúmeras penitenciárias seguiram o modelo do Panóptico sendo um dos casos com mais proximidade, a penitenciária de Lisboa. Não contendo uma planta circular, a penitenciária responde a todos os outros conceitos de Bentham.
No caso da Penitenciária de Eastern State, do arquiteto John Havilland, materializam-se questões lançadas no século XVIII e princípios de XIX, recorrendo a um sistema radial de vigilância. Circundando o edifício radial encontra-se uma estrutura murada que contêm torres de vigia nos seus cantos. O edifício central é caracterizado pela sua estrutura radial, sendo constituído por sete blocos. O ponto de interceção de todos os raios funciona como um ponto estratégico de observação, não seguindo a tipologia do Panóptico de Bentham, consegue porém utilizar o conceito na sua conceção.
Como consequência da penitenciária de Havilland, surge em Londres o aperfeiçoamento das soluções encontradas anteriormente. A penitenciária de Pentoville, do arquiteto John Jebb, é caracterizada por uma tipologia semirradial de vigilância fundamentada no conceito de Panóptico. Neste caso todos os pormenores foram objeto de estudo, desde a localização da prisão até à sua orientação, sempre com o objetivo de reforçar o sistema do Panóptico.
Durante o século XIX foram construídas outras penitenciárias, baseadas na tipologia de Eastern State e no conceito de Panóptico, é neste contexto que surge a Cadeia Penitenciária de Lisboa[7](Carvalho, Le Cocq, Ferraz, séc.XIX/XX) entre 1873/85.
Desenhada segundo o modelo panóptico Radial de planta em estrela é composta por duas alas de maior extensão dispostas no sentido da maior dimensão do terreno e intersetadas por quatro alas menores em volume poliédrico octogonal, configurando um conjunto de seis braços irradiando a partir do ponto focal ou panóptico, sendo que este é assinalado por um espaço vertical.
A instauração do regime penitenciário de 1867 é conseguido através da forma como a penitenciária deveria ser edificada exigindo uma estrutura apropriada, permitindo obviamente uma fácil vigilância dos guardas sobre os presos, facto que é essencial no conceito de Panóptico. Para responder aos objetivos de segurança e a cima de tudo de vigilância foi adotado um sistema radial murado com uma entrada única. Este edifício institui um modelo, facilmente simplificável, assente na disposição de corpos paralelepipédicos contendo alas de celas exteriores, justapostos em bateria, segundo eixos radiais delineados a partir de um foco central único, do qual é possível alcançar visualmente todos os corredores e as portas de todas as celas. No centro localiza-se o ponto estratégico de controlo sobre as alas que se distribuem radialmente, mais uma vez seguindo o modelo de Easter State e respondendo ao conceito de Panóptico de Bentham que desde um único posto de observação consegue-se controlar tudo.
Contemporânea à Cadeia Penitenciária de Lisboa surge a Cadeia Penitenciária de Coimbra [8] (Ferraz, séc. XIX) que também é concebida segundo o modelo Panóptico Radial de planta em cruz latina. Constituída por quatro alas ortogonais em volumes horizontais, conjugadas com quatro alas menores configuram um conjunto de oito braços irradiando a partir de um ponto focal ou Panóptico que é assinalado por um espaço vertical. O projeto da penitenciária surge do “Projeto de Penitenciárias Distritais” elaborado pelo engenheiro Ricardo Júlio Ferraz em 1875, já autor do projeto da Penitenciária de Lisboa. Sendo que é sobre aquele projeto-tipo que surge os planos das cadeias penitenciárias de Coimbra e Santarém, as quais, juntamente com a de Lisboa, constituem os três únicos exemplos de aplicação do modelo de planta radial na arquitetura prisional portuguesa. Respondendo ao conceito de Panóptico de Bentham do ponto central consegue-se obter o controlo total.
Figura 8 – Penitenciária de Eastern State
Este olhar único de constituir sociedade sem ajuda de formas objetivadas funciona sem a necessidade de linguagem, revelando que o olhar divulga sempre que olha. Importa de notar como Bentham, apesar de não simpatizar com a religião cristã, tem perceção da real importância intrínseca na sociedade e usa os seus temas para impor as suas ideias sobre o Panóptico.
Espaço da visão
Na mesma altura que o Panóptico era desenvolvido por Jeremy Bentham surge o panorama. Esta é uma ferramenta que nos ajuda a identificar lugares ou elementos caracterizadores desse lugar, em oposição a uma pintura que se trata de um objeto que tem símbolos que se não estivermos familiarizados e não os identificarmos não conseguimos ter a perceção e o conhecimento dos lugares apresentados. O conceito de Panorama surge em 1787 através da mão de Robert Barker e que ao longo do século XIX viria a se tornar bastante comum. O quadro representa sempre aquilo que o pintor está a observar e que quer transmitir através de uma imagem numa sala redonda que simula a vista sobre a paisagem. Esta relação entre artista e representação cria uma linguagem cheia de possibilidades, as palavras deixam de ser elementos necessários à explicação da peça, esta fala de um espaço já entendido e filtrado por um observador. Isto significa que um espaço representado, já não o estamos a observar na totalidade, mas sim uma realidade criada a partir de um entendimento objetivado de outra pessoa.
Isto explica a visão como supervisão, ou seja, a moldura criada pelo observador reaplicada como objeto, um objeto que já detém certas ligações com o observador, ligações já afixadas por este olhar. Um quadro não é mais que uma projeção orientada, no caso de uma panorâmica, é uma projeção total do que rodeia.
A perceção visual é inseparável do movimento muscular do olho e do esforço físico envolvido em focar um objeto. Inicialmente o olho era intendido como um dispositivo de transmissão pura mas no século XIX passa a ser compreendido como um equipamento sensorial onde o próprio processo de ficar cansado estava de facto na perceção. A observação é cada vez mais exteriorizada, ou seja, o corpo de visualização e os seus objetos começam a constituir um único campo.
Para o filosofo Jean-Paul Sartre, a sociologia da visão é uma parte integrante da sua ontologia existencial, em que o existente humano é definido como um ser, cuja livre projeção de possibilidades com referencia a um mundo de objetos, constitui um movimento em direção a uma totalidade auto-suficiente inatingível [9] (Sartre, 1956). Sartre está preocupado com o ato de olhar, sendo que o olhar é o principal meio através do qual os indivíduos são levados a reconhecer-se como partes do mundo de objetos. Mais do que tentar demonstrar como as relações são constituídas através da visão, Sartre argumenta que tais relações comunicam às pessoas um aspeto essencial do seu ser, que sem o ato de olhar não podiam apreender.
É sob o olhar do outro que o indivíduo se torna consciente de ser parte de um campo visual estruturado por várias possibilidades e, portanto de ser um objeto. O observador cria assim o quadro em que a pessoa que está a olhar aparece como um objeto entre outros com relações determinadas que são corrigidas pelo campo visual.
Enfatizando que o olhar é uma forma pura de constituição da relação social Sartre considera que todos os olhares são penetrantes, porque quando se é visto ocupa-se um lugar do qual não se pode escapar e onde se está sem defesa. O olhar de Sartre é sintetizado por funções como a supervisão e vigilância que se referem ao controlo dos seres humanos, colocando-os numa perspetiva abrangente de outro indivíduo.
Figura 9 – O Panorama
Em 1800 o indivíduo como observador, tornou-se num objeto de investigação. A reorganização do pensamento no inicio do século XIX permitiu o surgimento de uma nova objetividade concedida aos fenómenos subjetivos, sendo que a preocupação com ilusões de ótica fazem parte da exploração dos limites desta época.
O conceito de afterimage discutido pelo cientista Johann Wolfgang von Goethe é um dos fenómenos óticos que surgem neste contexto. Afterimage consiste numa ilusão ótica que segundo Goethe descreve a perceção e cognição como processos essencialmente temporais dependentes da união entre o passado e presente do observador.
Contemporâneo ao conceito afterimage surge odiorama que baseia-se na incorporação de um observador imóvel num aparato mecânico que contém o sujeito numa experiência ótica temporal. O diorama removeu a autonomia ao observador, situando o público numa plataforma circular, que em constante movimento permite pontos de vista diferentes e sensações de luz distintas. A adaptação do olho ao movimento deixa cair a ideia de que a visão é um órgão limitado e estático da câmara obscura.
Fronteira e limite do observável
Mas o que é isto do objeto e do sujeito? Por outras palavras, poderemos entender o objeto como tudo aquilo que é observável ou analisado pela visão em si, aquilo que a vigilância pretende atingir e controlar, em oposição ao sujeito que é a entidade cuja capacidade de conhecer é dada pelo olhar, assim sendo, o observar ou olhar torna-se o terceiro elemento a analisar.
O paradoxo entre o olho como mediador, meio de análise sobre um objeto em questão, associado à visão que se tem das torres acontece no momento em que o observador se encontra na situação que é observável através de outra torre, ou seja, a torre ( o objeto observado ) é ao mesmo tempo o objeto que observa. No fundo cada tipo de vigilância está necessariamente ligada com a observação, porém a vigilância pode surgir sem a execução de operações de observação.
Observar é usar uma distinção para indicar um lado e não o outro, ou seja, é o marcar de uma fronteira, onde o olhar funciona como barreira entre dois lados.
A distinção e a indicação criam a observação. Primeiro considera-se o que deve de ser observado introduzindo-se depois a distinção; através da introdução de uma distinção a indicação passa a receber uma especificação correspondente.
O observador é o terceiro elemento da sua observação, ele é o perito da observação, o que dita o que observar (indicação) e a barreira do observar (distinção) sendo que uma outra pessoa pode ver o que este vê se apenas lhe perguntar qual a distinção.
Adicionando a perceção à observação, temos um novo paradoxo porque não conseguimos observar à nós próprios sem o nosso conhecimento, ou seja, quando observamos outra pessoa e não temos o conhecimento sobre essa pessoa incluímos a distinção e obtemos a nossa perceção dessa pessoa, o contrário não pode acontecer porque nós já temos a nossa perceção sobre nós próprios.
Um observador pode observar-se a si próprio se apenas se observar como um outro, este conceito é concretizado na instalação de video de circuito fechado de Peter Weibel, Observação da Observação: Incerteza[10](Weibel, 1973), em que o observador é colocado no centro de um sistema de video e se pode observar a si próprio através de um aparato de monitores, porém sempre de costas. O que acontece é que o observador vendo-se sempre de costas obtém a imagem de um outro observado, e ao tentar fugir e ver-se realmente não consegue, reforçando a intenção do artista. A experiência da observação sobre a observação obtém um papel mais importante quando aplicada à construção de espaço, tal como acontece nesta instalação.
Figura 10 – Observação da Observação : Incerteza
A “auto-observação” traz consigo consequências para o fenómeno da vigilância e, portanto, da observação. O conceito de “auto-observação” ocorre segundo uma sequência organizada de forma recursiva, que tem de ser observada como um sistema, onde a observação é intendida como uma continuidade de fronteiras sendo um dos exemplos mais pertinentes que demostram a exploração dos limites da observação a referência de Roland Barthes à presença da Torre Eiffel em Paris construída em 1889 para a Exposição Universal por Gustave Eiffel, ainda hoje a estrutura mais alta de Paris. Ao encontrarmo-nos na torre, apercebemo-nos que é o único lugar em Paris do qual não temos a perceção da torre, mas sim do que a torre deixa ver, ao mesmo tempo, não existe nenhuma vista em Paris que a torre não alcance ou não seja alcançável deste modo, a torre Eiffel torna-se um objeto de importância, um marco na cidade, uma importância dada não só pelo que lhe esta em volta mas também por ser o próprio símbolo de Paris. Este momento criado pela torre é singular, tendemos a criar coisas que vêm mas que não tem nada que se possa ver ( como olhar pela objetiva de uma câmara, ou o nosso próprio olho que nunca o podemos observar ), no entanto, são coisas que se mantém escondidas do próprio olhar
Observatório
A torre cria um momento de separação entre o que vê e o que deixa ser visto, nela atingimos um campo de visão exorbitado, ou seja um panorama, que não é mais que a observação de um qualquer ângulo sobre a paisagem e o território.
Eiffel compreendeu que com a altitude a visão panorâmica dá-nos o mundo para ler e não apenas para perceber, por isso é que corresponde a uma nova sensibilidade da visão. Permitindo transcender sensações, no fundo o panorama não é mais do que uma imagem que tentamos decifrar, onde tentamos reconhecer locais conhecidos, para identificar pontos de referência sendo que quando se consegue atingir a compreensão total tem-se realmente a visão panorâmica.
Kengo Kuma, em 1994, projetou o observatório de Kirõsan[11](Kuma, 1994) que localizado no topo de uma encosta permite a observação do território.
“Os Observatórios demonstram a natureza egocêntrica da perceção humana.” [12](Kuma, 2008)
O observatório passa a ser entendido como um dispositivo de controlo da observação que, através da experiência física permite a observação do território e a experiência do mesmo. O observatório surge como uma única fenda estreita no interior da encosta, sendo a fenda tudo o que é visível do exterior, os visitantes iniciam e terminam a sua observação a partir desta fenda. O que antes era observado agora é revertido para o ato de observar.
Dentro do observatório, alguns monitores instalados permitem ao observador ver-se a si próprio, desconhecendo onde está a câmara de video.
A auto-observação neste dispositivo permite reconhecer que para se observar é necessário ser-se observado e pelo contrário para se ser observado é necessário observar-se.
Figura 11 – Vista aérea da Torre Eiffel durante a exposição Universal de Paris
Já em Viena, Adolf Loos, projetou em 1928 uma casa [13](Loos, 1928) onde os espaços não só são dotados de qualidade mas também possuem a ideia de panorama transportada para o seu interior.
“(…) poderá haver uma história que deteta o próprio interior dos mecanismos escondidos pelos quais o espaço é construído como interior? O que será dizer, uma história detetora da própria deteção, do olhar controlador, do olhar do controlo e do olhar controlado. Mas onde estarão marcados os traços do olhar? O que é que temos para continuar? Que pistas?”[14](Colomina, 1996).
A Moller House de Loos através de um só espaço, a sala, consegue desde o sofá olhar para o exterior e consegue ter uma visão total da casa, ao mesmo tempo que tem a sensação de estar a ser visto no sofá, que está de costas para a janela, e daí a sensação de ser vigiado e simultaneamente a sensação de conforto.
O controlo pode ser entendido quando estamos sentados no sofá e conseguimos observar toda a casa, conseguimos controlar quem entra e quem sai. A sensação de ser controlado é causada pelo exterior e por não nos encontrarmos virados para este mesmo e assim não sabemos se estamos a ser observados, temos só a sensação de. O conforto é dado pela sensação de controlo proporcionada pela posição do sofá e assim o sofá virado contra a janela passa a ser o objeto central que permite o observador ter controlo de tudo e ter a sensação de ser observado pelo exterior.
O olho que tudo vê do observador vira-se para dentro tornando somente possível uma imagem mental do jardim exterior, pois a janela neste caso contem apenas a função de iluminar o espaço. O observador passa a ser observado por um outro que está exterior à casa e é como se estivesse no interior porque este consegue alcançar tudo o que se passa no interior e assim o interior confunde-se com o exterior.
“(…)A arquitetura não é simplesmente uma plataforma que acomoda o sujeito observador. É um mecanismo de visão que produz o sujeito. Ela precede e enquadra o seu ocupante.” [15](Colomina, 1996).
Adolf Loos consegue transformar este mecanismo de visão em algo superior, ele controla o observador interior, o observador exterior e ainda consegue que o observador se torne observado quando está sentado no sofá, cedendo controlo a ambos os observadores.
Porque assim que o observador sente que está a ser observado deixa de ser o observador que tem controlo sobre o interior e passa o controlo para o observador exterior que tem a capacidade de controlar o interior.
Figura 12 – Moller House, Viena
Reflexo
Quando Loos introduz espelhos no interior das suas casas reforça a ideia de que a janela é só uma entrada de luz e que o olho que tudo vê do observador deve virar-se para o interior, reforça também a ideia de controlo e vigilância, porque através do espelho, apesar de o observador estar virado para o exterior este está a controlar o interior.
O paradoxo da introdução de um espelho no interior de uma casa revela-se quando o espelho é intendido como uma janela, porém a janela que divide o interior do exterior, agora não divide sendo a reflexão do interior.
Tal como Loos, muito antesLas Meninas[16](Velázquez, 1656), de Diego Velázquez, levanta questões de ilusão ótica invertendo a nossa perceção do olhar. O quadro que à primeira vista não passa de uma representação de o dia a dia da corte real espanhola, traz consigo muitos significados subjacentes.
Velázquez representa-se a si próprio, no seu atelier ou talvez no Palácio de Madrid pintando duas personagens, uma a Infanta Margarita acompanhada pelas suas damas de honor e ao fundo um bobo Italiano; adicionando a estas personagens visíveis duas outras invisíveis que estão refletidas no espelho que fica exatamente no centro do quadro, estas personagens são o Rei Philip IV e sua esposa, Mariana.
“(…) a mão habilidosa está suspensa no ar, presa pela atenção do olhar do pintor; e o olhar, por sua vez, espera num gesto preso.” [17](Foucault, 1970).
Existe um paradoxo causado por Diego Velázquez, no momento em que ele ao mesmo tempo que pinta o quadro representa-se a olhar para o modelo, ou seja, estamos perante um momento de contradição pois no momento em que ele pinta nunca poderia estar a observar o modelo. O pintor surge então como espectador, observador, mas também como objeto observado, encontrando-se representado num momento entre o visível e o escondido, com o olhar virado na nossa direção, consegue dominar o paradoxo.
O facto de o quadro representado na pintura estar de costas para nós quebra a relação estabelecida entre o olhar do pintor e o que ele está a ver, sendo assim, nunca é entendida a perceção do pintor em relação ao que está a pintar ou o que está a ver. Entre espectador e modelo, nós nunca sabemos quem somos o que estamos a fazer, se estamos a observar ou a ser observados, porque assim que o pintor nos coloca no quadro como modelo força-nos a fazer parte da representação e somos colocados numa imagem invisível para sempre. O pintor consegue acentuar este momento representando uma janela do lado direito onde a luz emana e transporta-nos para a tela que está de costas para nós, fazendo-nos entrar na cena representada.
Na realidade estamos a observar-nos a ser observados pelo pintor e tornados visíveis aos seus olhos pela mesma luz que nos permite observá-lo.
Assim que compreendemos que o pintor representado no quadro nos está a pintar e que nós somos o modelo do pintor é-nos apresentado um espelho. Esse espelho, representa uma segunda contradição de Velázquez; porque ao esperarmos estar refletidos nele, de facto o reflexo é o de uma outra realidade que nos ultrapassa, ou seja, esse reflexo reflete o espaço para além do quadro no qual nós, espectadores, estamos à admirar. Na realidade o espelho não está a refletir nada do que está no espaço, nem o pintor que está de costas para ele, nem mesmo as figuras que estão no centro da sala, ele reflete o invisível. O invisível neste caso só o é porque nós não o estamos a ver diretamente, ou seja, o espelho permite-nos ver o que o pintor está a observar (o seu modelo), que no fundo é o que é visível para ele.
Agora que percebemos que o espelho, que está no centro, é a resposta para a compreensão do quadro é interessante verificar que todas as personagens representadas estão a olhar para fora do cenário, ou seja, estão a olhar para o verdadeiro cenário. O espelho que observa e é observado pelo verdadeiro cenário, onde estão os modelos do pintor, não reflete o pintor porque este não faz parte da imagem do espelho assim como o rei e a rainha aparecem no espelho porque estes não fazem parte do cenário, no entanto observam a partir do espelho o que está para lá do quadro.
Figura 13 – Las Meninas
O espelho representa o momento em que o indivíduo se apercebe da sua própria condição e da sua existência, ou seja, o espelho reflete apenas e só a verdade.
Ocupando um lugar único na imaginação do ser humano enquanto história o espelho foi descrito como a matriz do simbólico que acompanha a busca humana de conhecer e compreender a nossa identidade partilhando a mesma função que o olhar possui. Em todas as culturas o espelho é associado com o significado de verdade e autenticidade, estando também associado a muitas lendas e superstições.
Apesar de o ato da observação ou vigilância ser normalmente entendido como o ato de controlo sobre outro objeto, em algumas situações poderá apenas ser considerado um ato de uma serie de operações de um sujeito sobre esse mesmo objeto.
Assim quando o observador olha por um espelho é impossível observar-se sem o seu conhecimento, sem a consciência que está a ser observado. Sugerindo um contraponto com a própria origem da palavra vigilância, impõe uma observação sem conhecimento ou consentimento do observado. Esta contradição, este paradoxo revelado no próprio momento em que o observador é visto, pois ele através da sua própria imagem endógena, ou seja, a imagem que ele concebe de si próprio, cria na sua interação um momento de controlo, como se tivesse um comportamento suspeito.
No momento em que o observador se olha no espelho, não só se observa, mas também consegue ver aquilo que se encontra atrás de si, assim sendo, ao observar um espelho, o observador tem a perceção de tudo o que se encontra à sua volta.
Na obra Las Meninas [18] (Velásquez, 1656) de Velázquez é possível encontrar esta contraposição. A posição em que o pintor é representado no seu próprio quadro, cria-nos uma sensação incomoda de um não realismo ou situação impossível, ele é o observador, mas ao mesmo tempo o objeto observado, a sua posição e colocação no quadro é o momento entre o visível e o invisível, o momento em que o próprio autor representa-se a ver aquilo que esta a representar, ele neste momento domina o paradoxo. Ele cria, no entanto uma terceira situação, ele observa quem se encontra fora do quadro, o observador deste.
Figura 14 – The False Mirror
Conclusão
O olhar tem vindo ao longo da história a manifestar-se de vários meios, transformando-se o olhar numa estrutura ou sistema mecanizado mas sempre tendo o objetivo de aplicar na sociedade conceitos associados ao poder que trazem consigo os conceitos de controlo, vigilância e domínio sobre o território ou sobre algo. O órgão visual, que passou a ser entendido como algo que é mais do que transmissão pura mas também ao controlo visual, quando transportado para a arquitetura quando há uma necessidade de controlo sobre o território, associado ao controlo surgindo o poder visual, as estruturas demonstravam poder quanto mais altas fossem e ainda assim o é hoje em dia, as grandes torres que podámos encontrar hoje em grandes centros urbanos não são mais que manifestações de poder económico sobre o lugar, esse poder que quer transmitir uma imagem de poder colocando na paisagem um marco observável de qualquer ponto de aproximação.
A perceção e o saber que se adquire através da visão associados ao espelho revela-nos a verdade, pois ele foca no momento uma imagem centralizada no qual ele nos observa e nós o observamos a observarmo-nos. O nosso saber está refletido no momento e numa imagem centralizada quando estamos perante um espelho.
A vigilância e a posição do olhar criam a fronteira e o caminho que o sujeito percorre em busca da razão e a arquitetura deverá ser um dos meios de ligação entre essa busca e o entendimento das suas envolventes, da paisagem e da posição do homem no espaço e território.
Notas de rodapé
[1] – Michel Foucault. What is Enlightenment, 1984
[2] – George Orwell. Nineteen Eighty-Four. 1949
[3] – Jan Provost. Sacred Allegory c. 1510-1520, óleo sobre carvalho, 20 x 16”. Museu do Louvre, Paris
[4] – Hieronymus Bosch. Seven Deadly Sins c. 1480-1500, óleo sobre madeira, 47 x 59”. Museu do Prado, Madrid
[5] – The Royal Saltworks at Arc-et-Senans. 1775-1778, Claude Nicolas Ledoux (1736-1806).
[6] – Conceição Trigueiros,Panóptico. As Ordens da Vigilância. Uma Arquitetura Moralista, 2011, p.23
[7] – Cadeia Penitenciária de Lisboa. Século XIX / XX, Eng. Joaquim Júlio Pereira de Carvalho, Eng. Luís Victor Le Cocq e Eng. Ricardo Júlio Ferraz.
[8]- Cadeia Penitenciária de Coimbra. Século XIX / XX, Eng. Ricardo Júlio Ferraz (1824-1880).
[9] – Jean-Paul Sartre, Being and Nothingness, Part II, 1956
[10] – Peter Weibel, Beobachtung der Beobachtung: Unbestimmtheit, 1973, instalação de um circuito fechado, dimensão variável. Fundação Generali, Viena
[11] – Observatório de Kirõsan. 1994. Kengo Kuma. Ehime, Japão
[12] – Observatories demonstrate the self-centred nature of human perception.
Kengo Kuma. Anti-Object: The Dissolution and Disintegration of Architecture. 2008. Erasing: Kirõsan Observatory, Ochi-Gun, Ehime, 1991-94. p.49
[13] – Moller House. 1928. Adolf Loos. Viena
[14] – (…) can there be a detetive story of the interior itself, of the hidden mechanisms by which space is constructed as interior? Which may be to say, a detetive story of detection itself, of the controlling look, the look of control, the controlled look. But where would the traces of the look be imprinted? What do we have to go on? What clues?
Beatriz Colomina. Privacy and Publicity. Modern Architecture as Mass Media. 1996. Interior. p.233
[15] – Architecture is not simply a platform that accommodates the viewing subject. It is a viewing mechanism that produces the subject. It precedes and frames its occupant.
Beatriz Colomina. Privacy and Publicity. Modern Architecture as Mass Media. 1996. Interior. p.250
[16] – Diego Velázquez. Las Meninas c. 1656, óleo sobre tela, 318 cm x 276 cm, Museu do Prado, Madrid
[17] – The skilled hand is suspended in mid-air, arrested in rapt attention on the painter’s gaze; and the gaze, in return, waits upon the arrested gesture.
Michel Foucault. The Order Of Things. An Archaeology Of The Human Sciences. 1970. Capítulo I : Las Meninas. p.3
[18] – Diego Velázquez. Las Meninas c. 1656, óleo sobre tela, 318 cm x 276 cm, Museu do Prado, Madrid
Índice de imagens
Figura 1- Daniel Chodowiecki. The Eye of Providence. 1787. Decapagem, 4 x 5”. Coleção privada.
Disponível em : http://2.bp.blogspot.com/_mZ5QnsI2ZZE/TAhAevFN9tI/ AAAAAAAAASk/bcQdXIJls6w/s640/Daniel+Chodowiecki+-+Das+Auge+der +Vorsehung+1787.jpg
Figura 2 – Jan Provost. Sacred Allegory c. 1510-1520, óleo sobre carvalho, 20 x 16”. Museu do Louvre, Paris
Disponível em : http://3.bp.blogspot.com/_MQhvAoOKqt8/TLYFzvhYVdI/ AAAAAAAABI4/yBDmsnZqzWM/s1600/Jan+PROVOST,+Allégorie +chrétienne.jpg
Figura 3 – Hieronymus Bosch. Seven Deadly Sins c. 1480-1500, óleo sobre madeira, 47 x 59”. Museu do Prado, Madrid
Disponível em : http://pages.uoregon.edu/dluebke/Reformations441/ Bosch7Deadlies.jpg
Figura 4 – J. Braga. Torre de Dornelas
Disponível em : http://www.panoramio.com/photo/4870980
Figura 5 – David Roberts. Torre de Comares, Alhambra
Disponível em : http://www.paintingsalley.com/data/media/290/ Roberts_David_Tower_Of_Comares,_Alhambra,_Granada.jpg
Figura 6 – Jorge Francisco Martins de Freitas, VRFoto. Torre de Menagem do Castelo de Melgaço. 2010
Disponível em : http://www.leme.pt/imagens/portugal/melgaco/castelo/ 0001.jpg
Figura 7 – Willey Reveley. Desenho da planta e alçado do Panóptico. 1791, Lápis, Caneta e Águarela, 17 x 24”. Biblioteca da University College London
Disponível em : http://adambroomeyr3.files.wordpress.com/2011/11/ panopticon1.jpg
Figura 8 – John Havilland. Serigrafia de P.S: Duval and Co., 1855. Vista aéreada Penitenciária de Eastern State
Disponível em : http://www.hauntingamerica.com/wp-content/uploads/ 2011/05/Eastern_State_Penitentiary_aerial_crop.jpg
Figura 9 – Robert Barker. O Panorama. 1793, Águarela. British Museum, London
Disponível em : http://3.bp.blogspot.com/-2s0Zt7EKnZg/TekCxXfyIyI/ AAAAAAAAApg/6vv_FeSmbTM/s1600/panhistory_barker_double.gif
Figura 10 – Peter Weibel, Beobachtung der Beobachtung: Unbestimmtheit, 1973, instalação de um circuito fechado, dimensão variável. Fundação Generali, Viena
Disponível em : http://images.artnet.com/images_DE/Magazine/features/ schmid/schmid05-13-05-19.jpg
Figura 11- Alphonse Liébert. Vista aérea da Torre Eiffel durante a exposição Universal de Paris, 1889
Disponível em : http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/5/53/ Aerial_view_of_Eiffel_Tower_and_Exposition_Universelle,_Paris,_1889.jpg
Figura 12- Adolf Loos. Moller House, Viena, 1928
Disponível em : http://cutelilkittens.blogspot.pt/2011_01_01_archive.html
Figura 13- Diego Velázquez. Las Meninas c. 1656, óleo sobre tela, 318 cm x 276 cm, Museu do Prado, Madrid
Disponível em : http://b-log.netfactory.hu/?m=20110227
Figura 14 – René Magritte. The False Mirror. 1929, óleo sobre tela, 21 x 32”, Museu de Arte Moderna, Nova Iorque
Disponível em : http://www.wikipaintings.org/en/rene-magritte/the-false mirror-1928
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Documentos electrónicos
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Alexandre Carlos Guerreiro Vicente
Nascido em 1985, Portugal, é um arquiteto mestrado pela Universidade Autónoma de Lisboa com a tese “Vigilância e Fronteira, Museu na Segunda Linha de Defesa da Juromenha”, trabalho desenvolvido com acompanhamento pelos arquitetos Manuel e Francisco Aires Mateus e Joaquim Moreno.
Entre 2010 e 2012 trabalhou em alguns concursos públicos nos ateliers Ricardo Carvalho + Joana Vilhena Arquitetos tendo também feito colaborações com Barbini Arquitetos e CHP Arquitectos. Entre 2010 e 2013 participa pela universidade e por conta própria em vários concursos e exibições. Em 2010 é um dos vencedor do concurso da Trienal de Arquitetura de Lisboa para a Cova da Moura com o projecto “The Thin Red Line”, em 2011 e 2012 participa no Prémio Secil Universidades vindo apenas a ganhar o Prémio Secil Universidades em 2012, em 2013 é um dos finalistas da Archiprix Portugal 2013. O seu trabalho pode ser encontrado em várias revistas e websites dedicados à sua disciplina.
Actualmente vive e trabalha em Osaka no Japão como “project manager” no atelier Ryuichi Ashizawa Architects & associates onde no espaço de ano e meio participou e contribuiu em cerca de 15 projectos de todas as escalas. Tem vindo também a trabalhar como freelancer para pequenos projectos no Japão e em Portugal.
website : http://alexandrevicentearchitect.wordpress.com e-mail : thecontact@gmail.com