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Osvaldo Braz

osvaldobraz@hotmail.com

Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa (FAUL), Centro de Investigação em Arquitetura, Urbanismo e Design (CIAUD), Grupo de Estudos Socio-Territoriais, Urbanos e de Ação Local (Gestual)

 

Isabel Raposo

isaraposo52@gmail.com

Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa (FAUL), Centro de Investigação em Arquitetura, Urbanismo e Design (CIAUD), Grupo de Estudos Socio-Territoriais, Urbanos e de Ação Local (Gestual)

 

Para citação: BRAZ, Osvaldo; RAPOSO, Isabel – Urbanização de Luanda, expansão dos musseques e realojamento dos seus habitantes no novo milénio. Estudo Prévio 19. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2021, p. 45-55. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/19.01

Artigo recebido a 30 de julho de 2021 e aceite para publicação a 15 de setembro de 2021.
Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

Urbanização de Luanda, expansão dos musseques e realojamento dos seus habitantes no novo milénio

Resumo

 O texto acompanha o crescimento populacional de Luanda desde o aparecimento dos primeiros musseques agrícolas, de que há notícia em planta de 1862, acelerando no terceiro quartel do século XX, com o desenvolvimento industrial ainda sob a administração colonial e o início da expansão dos musseques. O crescimento continua nos primeiros vinte e cinco anos de independência, declarada em 1975, os quais são marcados por prolongada guerra civil. Com o Acordo de Paz de 2002 e os anos de crescimento económico, a cidade continua a ser forte polo de atração, mas marcada por forte dualidade socioespacial com a maioria da população sem recursos a viver nos musseques, assentamentos autoproduzidos suburbanizados. Este período é marcado pelo lançamento de um pacote de instrumentos de ordenamento do território, de planos, programas e projetos com grande impacto na renovação e expansão da cidade urbanizada que contribui para a deterioração e tabula rasa de áreas estratégicas dos musseques e para o realojamento periféricos dos habitantes desalojados. O texto aborda o impacto de um realojamento periférico conduzido de cima para baixo e a procura de soluções mais inclusivas.

Palavras-Chave: Urbanização de Luanda, expansão de musseques, realojamento periférico, Angola.

 

Abstract

The paper analysis the population growth of Luanda since the appearance of the first agricultural musseques, attested by an 1862 map. This growth increased in the third quarter of the 20th century, due to the industrial development, still under colonial administration, and continued in the first twenty-five years of Angola independence, declared in 1975, which were marked by a long civil war. With the 2002 Peace Agreement, and the following years of economic growth, the city continues to be a strong attraction, but it is marked by a strong socio-spatial duality, with the majority of the underprivileged population living in musseques, self-produced suburbanized settlements. This period is also marked by the creation of spatial planning instruments – plans, programs and projects – which caused great impact on the renovation and expansion of the urbanized city, contributing to the deterioration and tabula rasa of strategic areas of the musseques and to the peripheral relocation of the displaced inhabitants. The text addresses the impact of top-down peripheral resettlement and the search for more inclusive solutions.

 

Keywords: Luanda urbanization, musseques expansion, peripheral resettlement, Angola.

 

 

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Introdução

A cidade de Luanda constitui um pólo de atração, pelas oportunidades que oferece, pela forte dinâmica socioeconómica e pela sua paisagem urbana. Face ao grande déficit de habitação na cidade urbanizada, a maioria da população de menores recursos vive em musseques, bairros autoproduzidos semi ou não urbanizados. Estes começaram a crescer na primeira metade do século XX, para alojar a mão-de-obra para a construção de infraestruturas urbanas na cidade colonial. No terceiro quartel do mesmo século, com o desenvolvimento industrial e o crescimento económico sequente, com a extensão da cidade urbanizada, a atração de colonos e de população nativa, os musseques estenderam-se e densificaram-se.

Desde 1975, nos primeiros vinte e cinco anos de governo independente, uma prolongada guerra civil intensificou a afluência a Luanda da população rural atingida pelo conflito militar, o que contribuiu para o continuado crescimento dos musseques. No novo milénio, desde o Acordo de Paz em 2002, com o impulso económico do país, resultante da exploração do petróleo e com a vontade política da Administração pública de modernizar a capital, são criados novos instrumentos jurídicos e urbanísticos. Estes contribuem para a renovação e expansão das áreas centrais urbanizadas de Luanda, para a criação de novos conjuntos habitacionais para a classe média e alta e para a demolição de grandes áreas dos musseques centrais, com localização mais estratégica. As habitações demolidas dos musseques são substituídas por edifícios contemporâneos em altura que não se adequam à cultura e hábitos dos anteriores residentes nem são acessíveis aos seus recursos económicos.

As famílias desalojadas dos musseques demolidos foram em parte realojadas em zonas distantes das suas áreas de residência, dos seus locais de trabalho e dos serviços sociais de educação e saúde que utilizavam. Esta periferização desestrutura as suas redes de sociabilidade e a economia familiar em que se sustentavam. Há um desajuste entre o processo e os modelos dos novos bairros de realojamento e das habitações atribuídas às famílias realojadas e as suas aspirações.

Este texto foi desenvolvido no quadro da pesquisa para doutoramento do primeiro autor, Osvaldo Bráz, que analisa e cartografa a expansão dos musseques de Luanda, numa perspectiva diacrónica, à luz do processo de urbanização da cidade e reflete sobre os paradigmas de intervenção subjacentes e a urgência de novas abordagens. A sua pesquisa integra-se no Projeto de Investigação África Habitat (nota 2), coordenado por Isabel Raposo, segunda autora e orientadora da tese. Neste texto, no primeiro ponto, apresentam-se algumas notas sobre a expansão dos musseques, à luz do crescimento populacional da cidade e da sua urbanização, com base em estudos de outros autores e dados estatísticos. No segundo ponto, com base em pesquisas anteriores e no trabalho de campo recente, sublinham-se alguns aspetos do impacto do realojamento na (des)estruturação socioespacial.

Crescimento populacional de Luanda, urbanização da cidade e expansão dos musseques

Luanda foi fundada pelos portugueses no século XVI, num território ocupado pelo reino Ndongo, súbdito do reino do Congo, tendo-se circunscrito ao recinto do Forte de S. Miguel, até 1605, data em que foi elevada à categoria de cidade. A partir de então, sob a administração portuguesa, o tecido urbano e a sua população, cresceram muito lentamente até meados do século XIX, condicionados pelo clima agreste, pelos solos pouco propícios para a produção agrícola, pelos conflitos militares frequentes (AMARAL, 1968) e desde o século XVII pela economia assente no tráfico de escravos para a América do Sul. Em 1845, Luanda tinha apenas 5,6 mil habitantes (id., q.V).

Na planta da cidade de ‘Loanda’ de 1862 (redesenhada em 1954, in AMARAL, 1968), data em que o tráfico de escravos já tinha sido abolido, aparece o termo musseque a designar as povoações agrícolas dispersas nos arredores da cidade colonial e chefiadas por famílias autóctones influentes, como o musseque de Vandunen ou, mais distante, o musseque de Massi. Aqui se produzia mandioca com a qual se fabricava a farinha musseque (como referido por residentes ‘mais velhos’, entrevistados pelo autor, no município de Cazenga).

Em 1881, de acordo com Amaral (id., p. 59), Luanda tinha cerca de 11 mil habitantes, com uma baixa percentagem de população portuguesa residente (13%). A população autóctone residia em sanzalas (66,6%), povoações costumeiras nos interstícios da cidade colonial, e, em menor percentagem (20,4%), nos musseques agrícolas referidos. No virar para o século XX, para fomentar a economia, a administração colonial começou a investir na modernização da cidade, construindo novas infraestruturas urbanas (caminho de ferro, rede viária, grandes equipamentos). Em 1898, Luanda era ainda um pequeno burgo com cerca de 20 mil habitantes, mas a percentagem da população portuguesa (24%) era maior que em 1881 (id.: 63).

Na primeira metade do século XX, houve um aumento paulatino do crescimento populacional e da extensão da cidade urbanizada, a qual vai sendo edificada com mão-de-obra nativa que residia nos novos musseques periurbanos, na periferia dos musseques agrícolas, entretanto demolidos e absorvidos pelo crescimento da cidade colonial. Entre 1930 e 1950, intensificou-se a construção de infraestruturas e o afluxo de mão-de-obra do interior rural: a percentagem da população portuguesa voltou a descer para os 12% e 15%, com o aumento da população nativa que se instalava em musseques cada vez mais periféricos. Em 1940, Luanda tinha já cerca de 60 mil habitantes, três vezes mais que em 1898.

O crescimento populacional acelerou desde então, com o investimento colonial crescente em infraestruturas e, desde meados do século XX, com o desenvolvimento industrial. O último censo colonial de 1970 registou cerca de 475 mil habitantes em Luanda (AMARAL, 1968: 63 e q. VII), quase oito vezes mais que em 1940. A industrialização e a urbanização da cidade colonial no terceiro quartel do século XX promoveram a sua expansão e a atração de colonos de Portugal. A percentagem da população portuguesa voltou de novo a subir, nas décadas de 1960 e 1970, para os 25% e 26% (id., q. VII).

Este processo de urbanização e expansão da cidade colonial foi-se fazendo à custa da demolição das povoações nativas mais centrais, sanzalas, sendo os seus habitantes empurrados para periferias cada vez mais longínquas para lá dos primeiros musseques agrícolas, extintos neste processo. Alguns destes musseques periurbanos e não infraestruturados, tornaram-se um foco da resistência anticolonial, lugar de memória onde se forjou uma forte identidade cultural[3].

Nos musseques periurbanos onde se instalou uma mão-de-obra barata, nativa, que trabalhava na urbanização da cidade colonial, na indústria e nos serviços, residiam em 1970, cerca de 352 mil habitantes (74% da população total de Luanda) (ibid.). O crescimento populacional de Luanda sob a administração colonial resultou em parte do aumento da taxa de natalidade, mas, sobretudo, da atração exercida sobre a população rural pelo desenvolvimento económico da capital e também do êxodo rural que se acentuou com a luta armada contra o regime colonial.

Com a conquista da independência em 1975, regressaram à capital muitos refugiados nos países vizinhos, bem como muito habitantes das áreas rurais à procura de melhores condições de vida. A população que afluiu a Luanda ocupou as habitações abandonadas pelos colonos, bem como espaço centrais não ocupados, zonas de expansão da cidade e reservas agrícolas, configurando-se novos bairros autoproduzidos, que continuaram a designar-se musseques, caso de Mabor, Kikolo, Palanca e outros.

Face ao desentendimento dos movimentos nacionalistas, no primeiro ano de independência, o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) e a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola) iniciaram uma violenta guerra civil que se estendeu durante mais de duas décadas e se alastrou a todo o país. Em resultado, aumentou o afluxo para a capital da população rural, fugindo das zonas rurais em conflito. A população de Luanda continuou assim a crescer aceleradamente, atingindo em 1983, cerca de 923 mil habitantes (segundo o censo da Província de Luanda do INE), quase duplicando em treze anos (desde 1970)[4].

Na situação desesperada de fuga das zonas em conflito, as pessoas construíram em qualquer espaço livre da cidade urbanizada, bem como dos musseques, sobre as linhas de água ou as valas de drenagem, sob as linhas de alta tensão, ao longo das ferrovias, ou à beira das lixeiras. Os musseques existentes densificaram-se e surgiram novos, nos seus interstícios e na sua periferia, como em Chicala, em Futungo de Belas, ou no Rocha Pinto, entre outros.

Entre 1983 e 1993, a população de Luanda duplicou, passando para cerca de 1,822 milhões de habitantes (LOPES; AMADO; MUANAMOHA, 2007: 44). Com o fracasso das eleições multipartidárias realizadas em 1992, assistiu-se ao agravamento da guerra civil e à intensificação do afluxo das populações rurais para a capital, em busca de segurança, a que se somou a imigração de países vizinhos. Neste contexto, a população da província de Luanda não parou de crescer e quase duplicou até 2000, passando para cerca de 3,276 milhões de habitantes (ibid.).

Com o Acordo de paz assinado em 2002, o crescimento económico consolidou-se na primeira década e meia do milénio, favorecendo o contínuo afluxo de população rural para a capital. Apesar da sua extrema desigualdade e forte diferenciação social e espacial, Luanda continuou a ser vista pelas populações do interior como o lugar com maiores oportunidades e maior facilidade de enriquecimento, atraindo, cada vez mais, as populações rurais. Sem recursos para aceder às habitações das áreas centrais ou urbanizadas, estes novos citadinos, apesar da insuficiência do acesso aos serviços urbanos básicos, instalam-se nos antigos e novos musseques onde se continua a concentrar a maioria da população da capital. Esta volta a duplicar na primeira década e meia do século XXI, atingindo no Censo de 2014, cerca de 6,945 milhões de habitantes (na província de Luanda).

Desde então, apesar da crise económica do país nos últimos anos da segunda década do milénio, a população tem continuado a crescer, aceleradamente, estimando-se que a província de Luanda já tenha passado os 11 milhões de habitantes. A maioria da população continua a residir nas suas imensas “margens urbanas” autoproduzidas (África Habitat 2018) a que ainda se designa em Luanda de musseque: são “assentamentos informais”, ou, na linha da produção do espaço de Lefebvre (1974), trabalhada pelo grupo de estudos Gestual em que se insere esta pesquisa, são “bairros autoproduzidos” (RAPOSO, 2012; RAPOSO et al. 2012) e sub-infraestruturados. Esta designação, musseque, utilizada quer para os assentamentos que surgiram no período colonial quer para os que nasceram e se expandiram com a independência, está atualmente em discussão em Luanda e constitui tema de pesquisa e reflexão no quadro da tese de doutoramento e do Projeto de Investigação em que se enquadra este texto.

Nos quarenta e seis anos de independência, estes assentamentos autoproduzidos densificaram-se e estenderam-se bem para lá dos antigos limites e neles hoje estima-se que possam residir cerca de 8 milhões de pessoas[5], ou seja, a população residindo em musseques é hoje mais de 20 vezes superior aos 352 mil habitantes de 1970.

Nas duas primeiras décadas e meia de independência até 2002, marcadas pela violenta guerra civil, as infraestruturas dos musseques deterioram-se, pela sobrecarga da sua ocupação e pela falta de investimento público. Nas duas décadas do novo milénio, o investimento público e privado direcionou-se sobretudo para a urbanização e renovação das áreas centrais e para a construção de novos conjuntos habitacionais e novas centralidades periféricas, dirigidas sobretudo para as classes média e alta. A renovação assentou na tábula rasa dos musseques mais centrais e na periferização dos seus residentes, instalados em conjuntos de habitação social muito periféricos e insuficientes. O investimento na infraestruturação dos musseques foi quase nulo, tendo-se agravado a sua condição urbana.

Tem havido um esforço, neste milénio, de diferenciação e classificação do tipo de musseques. Tomando como referência os cinco indicadores da UN-Habitat para acesso a habitação adequada (densidade de ocupação, segurança da posse da terra, durabilidade da construção, acesso a água potável e saneamento melhorado), recorrendo às novas tecnologias de mapeamento e visando uma gestão urbana sustentável de Luanda, a ONG Development Workshop (DW) Angola trabalhou desde 2005, na identificação dos tipos de assentamentos da capital, tendo distinguido quatro tipos de musseques: antigos, ordenados, periféricos e de transição entre o urbano e o rural (Cain, 2011). Depois da DW, vários planos diretores retomam esta classificação com algumas variações.

É o caso do Plano Diretor Geral Metropolitano de Luanda (AMADO, coord., 2015: 216, 226) que apresenta uma classificação, em função do nível de regenerabilidade dos musseques, identificando três principais tipos – estruturados (com cerca de 1,5 milhões de habitantes, 21% da população total de Luanda), não estruturados (com cerca de 3,2 milhões ou 46% do total) e dispersos (com cerca de 5%). O PDGML define uma estratégia de regeneração complexa mas que em grande parte assenta na demolição do edificado existente e no realojamento de uma elevada percentagem da população de Luanda (5,9 milhões de habitantes, ou 86% do total). Os pressupostos do PDGML, enquadram-se nos objetivos do Programa Nacional de Urbanismo e Habitação, lançado em 2008, e de outros instrumentos jurídicos e urbanísticos produzidos no novo milénio, que apontam para a demolição do tecido periurbano autoproduzido, considerado ilegal e para a sua substituição por nova habitação pública (Viegas, 2015, p. 152). Este projeto ficou suspenso, face à atual situação de grave crise económica do país e à influência da Nova Agenda Urbana lançada em 2016, no quadro do Habitat III da UN-Habitat, que está em discussão no país.

Como mostra uma pesquisa sobre cidades da África do Sul e Maputo (GROENEWALD et al., 2013), a denominação de territórios como informais, tem subjacente uma visão pejorativa sobre os mesmos que apenas sublinha o que os territórios não têm e justifica uma intervenção de tábula rasa. A visão ocidental subjacente à classificação dos musseques e à estratégia de regeneração do PDGML, apesar do esforço de compreensão da complexidade da situação e da diversidade de soluções apontadas, a ser implementada, reforçaria a estratégia de demolição dos musseques e de periferização dos seus residentes.

No ponto que segue, abordam-se os processos de demolição dos musseques, resultantes de operações de renovação urbana implementadas nos primeiros anos do milénio e o impacte socioespacial do realojamento dos seus habitantes em periferias distantes.

Renovação urbana, demolição dos musseques e realojamento dos seus habitantes

Com o Acordo de paz em 2002, o modelo de economia capitalista neoliberal consolidou-se, favorecendo um crescimento económico assente no controle da exploração do petróleo, no contexto do regime presidencialista de José Eduardo dos Santos, e na abertura às grandes operadoras internacionais, que investem em grandes infraestruturas e no imobiliário. Nos primeiros quinze anos do milénio, disseminaram-se novas influências e modelos urbanos, dinamizou-se a atividade de planeamento, foram criados novos instrumentos jurídicos para o ordenamento do território com grande influência da legislação portuguesa e foram produzidos, por empresas internacionais e consultores estrangeiros, diversos planos e projetos urbanos para Luanda que visaram a sua modernização e globalização. Foram implementados vários programas públicos e iniciativas privadas com incentivo do Estado com vista à renovação urbana e à expansão da cidade urbanizada, de que é exemplo a nova ‘centralidade’ do Kilamba (VIEGAS, 2015).

Assistiu-se à privatização dos serviços e do parque imobiliário e à implementação de grandes projetos de infraestruturação e de renovação urbana das áreas centrais, com empreendimentos imobiliários para as classes média e alta, geradores de valorização fundiária, especulação imobiliária, rentabilidade financeira e de forte gentrificação. Esta assentou na demolição de partes dos musseques mais centrais com localização privilegiada para os novos investimentos imobiliários, para as novas infraestruturas (redes viárias e de esgotos, valas de drenagem de águas pluviais), ou situados em ‘áreas de risco’. Os edifícios modernos, em altura, implantados nas áreas demolidas dos musseques, nem sempre se adaptam ao clima e tendencialmente são desajustados ao modelo cultural do povo luandense sendo destinados a residentes de mais recursos e de cultura ocidental.

Mais que com a melhoria das condições de habitar dos mais pobres e com a sua proteção das zonas de risco, a administração empenhou-se em libertar e privatizar os terrenos estrategicamente localizadas para os interesses imobiliários. Retomou os valores que dominavam o discurso colonial, interrompido nos primeiros anos de independência marcados pelos ideais socialistas, configurando-se, no novo milénio, um modelo de cidade neoliberal, competitiva e desigual (RAPOSO et al. 2012) com forte segregação social e espacial. A demolição dos musseques e a sua renovação podem assim ser vistas como produto e ao mesmo tempo como produtoras da valorização fundiária e da especulação imobiliária das áreas centrais, ou seja, são um instrumento da produção da cidade neoliberal.

Os musseques, ou bairros autoproduzidos sem os benefícios da urbanização continuam a ocupar a maior parte da área urbana da cidade, mas continuam a ser depreciados pelos modelos dominantes e pelos critérios importados, sendo enunciados como áreas ilegais a demolir, nos documentos jurídicos e urbanísticos e na visão dominante da administração nacional e das empresas estrangeiras.

Os habitantes dos musseques deslocados pelo poder público são despejados, reassentados ou realojados nos novos conjuntos de habitação social, situados na periferia longínqua, a mais de 40km do centro da cidade. São exemplo, os conjuntos do Panguila e do Zango construídos para realojar as populações desalojadas de áreas de risco ou de áreas com localização estratégica de musseques pericentrais, como Boavista, Cazenga, Chicala, Sambizanga.

O complexo processo de demolição de musseques, de despejo e realojamento em conjuntos de habitação social tem sido estudado por algumas pesquisas científicas (caso de Viegas 2015 e de Moreira 2018) e constitui também caso de confronto[6] do doutoramento em que se enquadra este texto. O trabalho de campo assentou em visitas, conversas e entrevistas (a três moradores e a um responsável do Panguila, a doze moradores e a um responsável do Zango). Apontam-se algumas das reflexões em curso.

Os processos foram conduzidos pela administração, de ‘cima para baixo’, sem consulta pública e sem escuta das populações, nem ao nível da demolição, nem do local de reassentamento ou realojamento, nem do processo e projeto de realojamento. Na linha de Lefebvre (1974), este tipo de intervenção (ao nível do processo e do projeto) pode ser entendido como um instrumento do poder e expressão de uma visão dual da cidade.

Os entrevistados sublinharam em particular o processo acelerado de demolição, no qual as famílias perderam muitos dos seus bens, equipamentos, mobiliário, vestuário, alimentos. Instaladas muito longe da anterior residência, do anterior quotidiano doméstico, do emprego, da escola, dos centros de saúde e hospitais, dos serviços de proximidade ou centrais a que recorriam, das redes de transporte, das relações comerciais com o centro urbano, a sua frágil economia familiar desestruturou-se e os seus meios de sobrevivência fragilizaram-se. As comunidades desintegraram-se, quebraram-se as redes de vizinhança e de sociabilidade, bem como as relações afetivas e de pertença ao lugar, forjadas ao longo de anos. Perdeu-se a relação identitária com o anterior local de residência, depositário de memórias familiares e comunitárias. Os constrangimentos vividos são inúmeros: adultos que perderam emprego, crianças que perderam o ano escolar, jovens que se refugiaram na delinquência, quebra das relações de entreajuda entre vizinhos, aumento do isolamento, bem como de acidentes e mortes, são inúmeros os relatos de injustiça que deixam indignadas as populações. A violência física e simbólica marca este processo de urbanização autoritário, acelerado e desigual.

A precarização das famílias desalojadas e transferidas para zonas distantes das suas áreas de residência ou de origem, agravou-se com um processo e projeto de realojamento, excludente. A concepção dos projetos não foi participada. Os projetos não tiveram em conta o modo de vida e habitar, as aspirações das famílias, a sua condição económica.

As novas habitações sociais dos conjuntos do Panguila e do Zango, são de piso térreo, o que se adequa ao modo de habitar, mas a área das casas é considerada insuficiente[7], a planta da casa não é considerada adequada ao modo de vida, a construção é deficiente, apresentando inúmeras fissuras, falta de acabamentos e falta de saneamento básico. O descontentamento com as casas, expresso nas entrevistas, tinha já sido identificado por Viegas (2015) e Moreira (2018). Nos conjuntos habitacionais e na proximidade falta também emprego, faltam equipamentos e serviços sociais, a acessibilidade e rede de transportes são insuficientes. Note-se que os conjuntos de habitação social do Zango estão integrados num complexo maior que incorpora cinco fases, incluindo uma ‘nova centralidade’ e uma zona com edifícios destinados a grupos sociais de médios e altos rendimentos. Pela sua dimensão, estrutura, usos mistos e mistura social tem vindo a ganhar uma nova dinâmica socioeconómica. Nestes locais de produção recente, falta a construção de uma nova identidade agregadora. Emergem, todavia, organizações locais que poderão contribuir para solucionar alguns problemas pendentes.

Foram identificadas no Panguila e no Zango duas situações particularmente gravosas: (i) nem todas as famílias recenseadas tiveram direito a uma habitação, havendo casos de coabitação de duas e três famílias (contra o disposto no art.º n.º 17, do Regulamento de Operações de Realojamento que define os critérios para atribuição de tipologia de casa por família); (ii) algumas famílias não tiveram sequer direito a habitação tendo sido reassentadas em tendas na proximidade do conjunto habitacional. Nos dois casos houve a promessa de serem situações provisórias. Todavia, passados mais de dez anos, as situações continuam por resolver, provocando: (i) no caso da coabitação, conflitos graves no uso dos espaços, relativos a diferenças de costumes e culturas e promovendo a promiscuidade; (ii) e, no caso do reassentamento, a substituição das tendas, por residências precárias autoconstruídas com chapas de zinco, blocos de cimento e sem infraestruturas (água, energia e saneamento).

Nalguns casos, dada a violência do processo, a falta de condições das casas e dos bairros, as famílias não se conseguem adaptar e deixam as habitações que lhe foram atribuídas, vendendo-as ou alugando-as, regressando para os bairros anteriores ou para bairros mais próximos do centro da cidade e do anterior local de trabalho. É exemplo o caso de famílias de pescadores do Kilombo, na ilha da Chicala, realojadas no Zango (Moreira, 2018), as quais, perdendo o seu sustento do mar, deixaram o Zango e voltaram a reinstalar-se na Chicala 1, embora em condições muito precárias e tendo, neste processo, perdido a maior parte dos seus bens.

Apesar do descontentamento de muitas famílias e do abandono de algumas, identificaram-se outras famílias, tendencialmente de menos recursos, que acabaram por se ajustar à nova realidade. Apesar da distância ao centro da cidade e da falta de serviços, refizeram as suas vidas e adaptaram as casas ao seu novo modo de vida.

 

Breve nota conclusiva

Considerando três das dimensões principais da noção do Direito à Cidade na perspectiva de Lefebvre (1968) – acesso a habitação e a serviços, centralidade renovada, direito à ‘obra’ – pode afirmar-se, como Viegas (2015) para o caso do Panguila, que estes conjuntos de habitação social impostos pelo Estado contribuem para uma perda do direito à cidade. Eles são um produto do aumento da desigualdade entre as áreas urbanizadas e as velhas e novas periferias, ao mesmo tempo que o potenciam. A atribuição de uma habitação nova ocorre na sequência da demolição da casa anterior que, em muitos casos, era melhor e esta transferência provoca drásticas perdas materiais e imateriais; por outro lado, o modelo da nova habitação foi imposto, não tendo sido concebido nem discutido com os habitantes. Dada a localização periférica destes novos conjuntos, o direito de acesso a serviços e ao emprego é substancialmente reduzido em relação à anterior residência. No processo de demolição do musseque e de realojamento periférico toda a vivência no espaço coletivo representado pela rua e praças se perde; perde-se a ‘centralidade’ da vida coletiva do musseque que beneficiava ademais da proximidade aos serviços do centro urbanizado. Perde-se o direito à própria vida quotidiana na cidade e sobretudo perde-se o direito à ‘obra’, que caracteriza os assentamentos autoproduzidos pelos seus habitantes. O valor de uso do espaço mais forte nos musseques é substituído pelo primado ao valor de troca, passando a valorizar-se o espaço de habitar como um produto de mercado.

Os instrumentos jurídicos e urbanísticos implementados na primeira década e meia do milénio são marcados por uma visão neoliberal que não incorpora a dialética do modo de produção do espaço do musseque, que embora configurado sob a administração colonial se tornou berço de resistência anticolonial. Está na agenda pública em Luanda a reflexão crítica sobre os instrumentos produzidos neste milénio, sob o domínio do modelo da cidade excludente neoliberal e o seu impacte na qualidade do habitar no território extenso, diverso e complexo dos musseques e nos novos tipos de tecidos habitacionais. Está especificamente em discussão alargada, com dinamização pela UN-Habitat e pela ONG DW, a Estratégia de Melhoramento Participativo dos Assentamentos Informais[8], que tem subjacente o foco no melhoramento participado em vez da tábula rasa e dos processos autoritários.

A noção do direito à cidade como lente de leitura do impacte dos instrumentos recentemente implementados constitui um suporte para fortalecer paradigmas emergentes mais emancipadores e delinear novos paradigmas que permitam desenhar uma cidade menos dual e mais inclusiva para os residentes dos assentamentos autoproduzidos.

Notas

[1] Osvaldo Bráz, Arquiteto, doutorando em urbanismo na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa (FAUL), bolseiro do Centro de Investigação em Arquitetura, Urbanismo e Design da FAUL (bolsa BI_GESTUAL_04/UIDB/04008/2020) e membro do Projeto África Habitat.

[2] Isabel Raposo, Arquiteta-urbanista, Professora Asssociada na FAUL, orientadora da tese de doutoramento do primeiro autor e coordenadora do Projeto de Investigação Africa Habitat, “Da sustentabilidade do habitat à qualidade do habitar nas margens urbanas de Luanda e Maputo” (Ref. 333121392). O Projeto tem como instituição coordenadora a FAUL e é financiado pelo Programa “Knowledge for Development Initiative” da Fundação para a Ciência e a Tecnologia I. P. do Ministério da Ciência Tecnologia e Ensino Superior de Portugal (FCT) e da AgaKhan Development Network (AKDN). http://africahabitat.gestual.fa.ulisboa.pt/en/

[3] Este tema está em aprofundamento no quadro da tese de doutoramento em elaboração, com base na pesquisa bibliográfica e na recolha de testemunhos orais dos mais velhos do município de Cazenga, caso de estudo desta pesquisa.

[4] Neste texto apenas se apresentam dados do crescimento populacional, não se fazendo referência à dimensão da expansão territorial da cidade urbanizada e dos musseques, a qual está a ser aferida no quadro da tese de doutoramento e do Projeto África Habitat. Também não se introduz aqui uma clarificação sobre as entidades territoriais a que corresponde Luanda (município, província), o tipo de zonas (urbano e rurais) e os seus limites, o que está igualmente em revisão.

[5] Considerando que em 2014 (segundo o Censo) a Província de Luanda tinha 6,945 milhões de habitantes e estimando-se que a população continuou a crescer, nos últimos sete anos, ao mesmo ritmo que até então (em cerca de 695 mil habitantes por ano), considera-se que o total da população em 2021 pode já ter ultrapassado os 11 milhões de habitantes e a população dos musseques (optando-se por uma estimativa baixa de 70% do total) pode rondar os 8 milhões. Vários estudos apontam, todavia, para uma percentagem bem superior de população vivendo em musseques.

[6] O caso de estudo do doutoramento em conclusão é o município do Cazenga e o Distrito Urbano do Kalawenda. No quadro da implementação do Plano Diretor para a Reconversão Urbana do Cazenga, várias famílias cujas casas foram demolidas foram realojadas nos conjuntos de habitação social do Zango e do Panguila, os quais, por isso, constituem casos de confronto entre o modo de habitar no musseque e nesses conjuntos.

[7] A área das casas atribuídas é em muitos casos considerada insuficiente na comparação com as casas anteriores demolidas.

[8] A estratégia está a ser divulgada pela UNHabitat, com a sigla PSUP em inglês, Participatory slum upgrading. Ver https://elearning.mypsup.org/home

 

Bibliografia

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Paulo Moreira é arquiteto e investigador, sediado no Porto. Licenciou-se pela FAUP em 2005 e doutorou-se pela London Metropolitan University em 2018. Co coordena o Observatório da Chicala, projeto de investigação sediado no Departamento de Arquitetura da Universidade Agostinho Neto. É bolseiro de pós-doutoramento do projeto de investigação Africa Habitat, sediado na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, financiado pela FCT e Aga Khan Development Network (‘Knowledge for Development Initiative’ programme). www.paulomoreira.net / chicala.site