Maria Júlia Gaspar Teixeira, Laura de Sousa e Silva, Júlio do Nascimento Cascais, Eduardo Read Teixeira, João de O. Correia Rebêlo, Manuel S. de Medeiros, Octávio Faria e Maia Rego Costa, Domingos de O. Correia Rebêlo
Para citação: AAVV – Manifesto à cidade de Ponta Delgada dos arquitetos e estudantes de arquitetura micaelense. Estudo Prévio 20. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2022, p. 21-23. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/20.3 (ed. original 1953). Publicado a partir de RODRIGUES, José Manuel (ed.) – Teoria e crítica de arquitectura século XX. Lisboa: OA-SRS, Caleidoscópio, 2010, p. 370-1.
Manifesto à cidade de Ponta Delgada dos arquitetos e estudantes de arquitetura micaelense
Os micaelenses sabem-no já: o importante conjunto da nova praça lado-sul da matriz, está projectado e vai erguer-se em moldes pombalinos!… A incongruência e o absurdo de uma tal proposição sente-o todo e qualquer leigo; basta para tanto boa fé e um pouco de bom senso. Senão, vejamos. O pombalino foi gerado, há duzentos anos, por uma ocorrência dolorosa na vida da cidade de Lisboa. É pois a expressão de uma dada época, num dado momento histórico e num dado local. Ninguém o pode dissociar do cataclismo que o originou, de D. José e dos seus ministros, das cabeleiras empoadas, dos coches, das liteiras, das damas de longo decote e saia de balão… é isto porque o pombalino é na verdade uma expressão de arquitectura viva, genuína, autêntica. Sobre as causas que o determinaram e explicam, vão volvidos já duzentos anos. E quando hoje, só por mascarada alguém se atreve a usar punhos de renda e a exigir a barriga da perna na meia justa… quando seria inconcebível um automóvel em talha dourada, com esculturas de querubins divertidos e lugares à retaguarda para lacaios hirtos, quando as diversas formas porque a vida, hoje se expressa, tão testemunho iniludível de que algo de novo se operou nos fundamentos seculares da vida do homem, quando o automóvel, o avião, o puxador da porta, a rádio, o cinema, a caneta, o impermeável, o livro, a revista, nos falam de uma nova era na vida da humanidade, de aquisições técnicas e científicas sem precedentes de formas ignoradas de produção em larga escala, de novos rumos e preocupações estéticas, quando tudo nos fala de novos problemas, inquietações e anseios, quando a arte de construir vê as suas possibilidades e meios de acção extraordinariamente ampliados com a existência de materiais e técnicas de construção inteiramente novas, eis que surge uma arquitectura concebida nos mesmos moldes, expressando a mesma vida, contentando-se com os mesmos ideais estéticos, e limitando-se às mesmos formas construtivas e às mesmas possibilidades técnicas do tempo do Marquês de Pombal!… Se com isenção, se apreciar o fenómeno, constatar-se-á que ele é a negação formal da natureza fins e razão de ser da arquitectura. Mais, ainda, ele anula e deita por terra todo um passado arquitectónico, todo um património secular que as cidades, como as nações, se orgulham de possuir. Como efeito, quando sobre o estirador o arquitecto limita, organiza e define o espaço o homem de hoje terá de habitar, quando busca as soluções para os seus problemas e anseios, é forçoso que, por seu intermédio, se opere algo difícil de definir, mas que é como se um sopro de vida insuflasse os materiais que trabalha e os impregnasse das realidades e do sentido da época que vive. Deste modo, mesmo aqueles materiais de utilização secular na construção, como a pedra e a madeira, adquirem formas e expressões inteiramente novas, à escala das exigências materiais e espirituais da vida actual e portanto, plenas de conteúdo e de significação. Foi assim em todos os tempos. E na observância e respeito por este comportamento milenário, reside toda a diversidade, toda a pujança e grandeza, das construções e monumentos de que hoje nos orgulhamos. Como tomar pois a sério uma arquitectura que se arroga ao inverosímil e ao absurdo de repetir nos dias de hoje formas arquitectónicas impregnadas da vida de há 200 anos?… Como é possível fechar-se os olhos ao estudo, ao trabalho sério e exaustivo dos arquitectos portugueses, reunidos em 1948 em Lisboa, no seu I Congresso Nacional, cujas conclusões e votos, aprovados unanimemente, definem nos seguintes termos o rumo a seguir pela arquitectura em Portugal: “…que o portuguesismo da obra de arquitectura não continue a impor-se através da imitação de elementos do passado, pois a época que atravessamos deve ficar caracterizada em relação às outras com a diferenciação que entre elas existe. Torna-se pois necessário corrigir os conceitos de tradição e regionalismo, fomentando a aplicação de novas técnicas e acarinhando novos ideais estéticos, para que a obra contemporânea possa ter a beleza que alcançaram as dos mais puros estilos do passado…”. Como ficar indiferente, ante o significado de um tal documento?… Como permanecer quedo e insensível quando uma cidade que se orgulha dos testemunhos que possui da vida de épocas passadas, como as portas manuelinas da matriz, a Câmara Velha, a Igreja barroca do colégio, as residências do séc. XVII e do séc. XVIII, se prepara para legar às gerações vindouras, como testemunho e expressão do vida do seu tempo, uma arquitectura que nada significa, nada traduz do momento que passa e, como se isto não bastasse, tem ainda a ousadia de afirmar a atitude sem dúvida cómoda, mas de todo repugnante e ignóbil, de plagiar o esforço, o estudo, o trabalho sério e honesto dos homens reergueram Lisboa dos escombros do terramoto?… Tudo isto é clamoroso! E porque está a redundar em desprestígio para a terra micaelense exige urgente imediata reparação por parte das entidades responsáveis que esperamos reconsiderem nas deliberações tomadas. Nestas circunstâncias, entendem os micaelenses abaixo assinados, arquitectos e estudantes de arquitectura, ser um dever imperioso e inadiável vir aqui prestar este público esclarecimento à mentalidade, ao brio e à consciência colectiva da cidade. E que não se tenha por leviana e impensada a sua atitude. Eles estão com a totalidade dos arquitectos portugueses reunidos na assembleia magna de 1948, e também com os arquitectos de todo o mundo que recentemente vieram a Lisboa realizar o III Congresso da UIA (União Internacional dos Arquitectos) cujas teses e directrizes estiveram exuberantemente patenteadas ao público da capital, através das notáveis exposições nele integradas. Muito menos se deturpem os seus intentos. Unicamente os anima o brio de micaelenses e a consciência da missão que impede ao arquitecto de hoje, num mundo em transformação. O prestígio da cidade está em jogo. A população de Ponta Delgada tem a palavra.
[1] Veja-se a revista “Arquitectura” n.º 49, pág. 22 e o Diário Popular de 16 de novembro.