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Fernando Távora (1923-2005)

 

Para citação: TÁVORA, Fernando – Da organização do espaço. Estudo Prévio 20. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2022, p. 29-40. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI:
https://doi.org/10.26619/2182-4339/20.5 (ed. original 1962). Publicado a partir de RODRIGUES, José Manuel (ed.) – Teoria e crítica de arquitectura século XX. Lisboa: OA-SRS, Caleidoscópio, 2010, p. 480-488.

Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

Dimensões, relações e características do espaço organizado

Quando sobre uma folha de papel branco marcamos um ponto, poderemos dizer, embora convencionalmente, que este ponto organiza tal folha, tal superfície, tal espaço, a duas dimensões, sabido como é que a sua posição pode ser definida por dois valores (x, y) em relação a um determinado sistema de coordenadas. Se, porém, concebemos tal ponto levantado, afasta­do da mesma folha de papel, poderemos dizer, embora também convencionalmente, que ele organiza o espaço a três dimensões, dado que a sua posição pode igualmente ser definida, agora por três valores (x, y, z) em relação a um determinado sistema de coordenadas. Mas existe uma terceira hipótese – a de o mesmo ponto se encontrar não parado, não estático, mas em movimento e, nesse caso, aos três valores ou dimensões (x, y, z) que o definem haverá que acrescentar uma quarta dimensão t (tempo), dispondo-se assim de um conjunto de dimensões que permite localizar o mesmo ponto em cada posição da sua trajectória e em relação a um determinado sistema de coordenadas.

Ao referirmos acima a organização do espaço a duas e três dimensões utilizamos o termo “convencionalmente”, visto ser sabido que a quarta dimensão, tempo, não pode pôr-se à margem em qualquer dos casos, verdade hoje corrente mercê da teoria da relatividade com a sua noção de “espaço-tempo”. Falar portanto em espaço organizado a duas e três dimensões significa tomar uma atitude convencional, útil para determinadas classificações, mas não correspondendo à realidade.

Mas, porque os volumes são envolvidos por superfícies, estas são geradas por linhas e estas ainda por pontos pode concluir-se, generalizando o que foi dito, que os volumes, as superfícies e as linhas constituem, tanto como os pontos, acontecimentos de organização do espaço, aos quais se dá o nome geral de formas.

As formas organizam assim o espaço, mas foi como a folha de papel que inicialmente referimos e onde marcámos um ponto é um espaço que constitui também forma, que é como um negativo do mesmo ponto, poderemos, generalizando igualmente, afirmar que aquilo a que chamamos espaço é também forma, negativo ou molde das formas que os nossos olhos apreendem, dado que num sentido visual, que é aquele que para o caso importa considerar, o espaço é aquilo que os nossos olhos não conseguem apreender por processos naturais. Visualmente, portanto, poderemos considerar que as formas animam o espaço e dele vivem, mas não deverá nunca esquecer-se que, num conceito mais real, o mesmo espaço constitui igualmente forma, até porque aquilo a que chamamos espaço é constituído por matéria e não apenas as formas que nele existem e o ocupam, como os nossos olhos deixam supor.

Esta noção, tantas vezes esquecida, de que o espaço que separa – e liga – as formas é também forma, é noção fundamental, pois é ela que nos permite ganhar consciência plena de que não há formas isoladas e de que uma relação existe sempre, quer entre as formas que vemos ocuparem o espaço, quer entre elas e o espaço que, embora não vejamos, sabemos constituir forma – negativo ou molde – das formas aparentes.

Mas a apreensão visual do espaço pressupõe um observador que a realize e a consideração da existência de tal observador vem enriquecer, pela criação de situações várias, o dimensionamento do espaço. Assim, por exemplo, no caso teórico dum espaço organizado a três dimensões por um ponto temos duas hipóteses: ou o observador se mantém fixo ou o observador se movimenta, o que significa que num e noutro caso o observador vê o espaço organizado de modos diferentes, no primeiro estaticamente organizado (por convenção), no segundo dinamicamente organizado. E no caso do espaço organizado a quatro dimensões as mesmas hipóteses podem pôr-se: observador fixo ou observador em movimento, criando-se igualmente situações novas na relação espaço-observador.

O mundo das formas é de infinita e progressiva riqueza paro o homem e o seu estudo apresenta-se cada dia mais cativante e necessário dada a consciência crescente da importância de que a forma se reveste em relação à existência humana, sendo importante referir, ainda que de passagem, que as formas visualmente apreendidas estão em enriquecimento progressivo mercê das técnicas que a ciência contemporânea tem criado; citaremos, por exemplo, os novos mundos de formas reveladas pela ótica que permite, por ampliação imensa, descobrir formas totalmente ignoradas da visão normal do nosso globo ocular e os revelados novos meios de locomoção no espaço que vierem criar possibilidades de pontos de vista a partir dos quais, mesmo utilizando a visão normal, novas formas se apresentam a consideração do homem.

À escala do homem, e com todas as limitações que uma classificação sempre implica, é possível, talvez, distinguir fundamentalmente os casos-tipo de formas naturais – isto é, aquelas em cuja definição ou criação o homem não participa – e formas artificiais ou aquelas em cuja existência o homem toma parte activa. Casos-limite, sem dúvida, pois que o próprio homem, enquanto forma, isto é na sua realidade física, é um misto de obra da natureza e de obra em si próprio, sendo difícil distinguir o que a uma e a outra cabem, mesmo examinando o fenómeno a uma escala humana, como já foi referido, pois que de outro modo haverá que considerar o homem, na sua forma, como obra total da natureza, premissa esta a pôr de parte visto que fundamentalmente nos propomos estudar fenómenos da organização do espaço tendo por agente o próprio homem.

Mas mesmo nesta base ou dentro desta visão parcial dos fenómenos de organização do espaço, não poderão excluir deles quer as formas naturais – e mesmo aquelas que possam considerar-se puras, isto é não tocadas pela mão do homem – quer as suas relações com as obras humanas, relações tão íntimas, infinitas e inesgotáveis que não é possível saber onde umas acabam e as outras começam.

Deslocando o seu corpo, construindo a sua casa, arroteando um campo, escrevendo uma carta, vestindo-se, pintando, conduzindo o seu automóvel, levantando uma ponte, poderíamos dizer – vivendo – o homem organiza o espaço que o cerca, criando formas, umas aparentemente estáticas, outras claramente dinâmicas.

A expressão “organizar espaço”, à escala do homem, tem para nós um sentido diferente daquele que poderia ter, por exemplo, a expressão “ocupar espaço”. Vemos na palavra “organizar” um desejo, uma manifestação de vontade, um sentido, que a palavra “ocupar” não possui e daí que usemos a expressão “organização do espaço” pressupondo sempre que por detrás dela está o homem ser inteligente e artista por natureza, donde resultará que o espaço ocupado pelo homem tende sempre para, caminha sempre do sentido de, tem como fim, a criação do harmonia do espaço, considerando que harmonia é a palavra que traduz exactamente equilíbrio, jogo exaclo de consciência e de sensibilidade, integração hierarquizada e correcta de factores. Nem sempre o homem tende para a harmonia, pode dizer-se apontando número infinito de exemplos, nem para o desenvolvimento da inteligência ou o culto da sensibilidade; referem-se actos de estupidez e de fealdade ao longo da história do homem como espécie e da sua vida como indivíduo, mas não pode negar-se que uma luz, uma esperança, um desejo, uma intenção, animam permanentemente o homem no sentido geral da sua luta.

Daqui a dificuldade que nos surge, e até a consciência da sua inutilidade, em classificar os acontecimentos da organização do espaço no seu significado funcional ou artístico, dizendo, por exemplo, este é um acontecimento puramente funcional, este é um acontecimento puramente artístico, o que suporia, aliás, a possibilidade de separar estes dois aspectos tão profundamente interligados que se pode perguntar em que medida uma forma pode ser bela sem ser funcional e em que medida uma forma pode ser funcional sem ser bela.

Há, evidentemente, gradações de importância destes factores ou aspectos em cada forma, mas estamos em crer que, assim como não existe obra de arte pura, não existe igualmente obra de técnica pura, conhecidos por um lado todos os condicionamentos que estão na base da obra predominantemente artística e, por outro, as indeterminações que se sucedem ao longo do processo de definição da obra predominantemente técnica. Existem, no entanto, profissionais organizadores do espaço que supõem ser possível separar uma coisa da outra e ainda há bem pouco tempo alguém nos dizia, a respeito do projecto de determinada instalação industrial, que não haveria necessidade de nele colaborar um arquitecto porque se tratava de obra unicamente funcional…

Mas se no processo de criação das formas, de organização do espaço, há lugar paro todos, como adiante referiremos, e se a arte pressupõe sempre forma como suporte de uma carga emotiva, como afirma Abel Salazar[1], a verdade é que, como dissemos, há que admitir formas de maior predominância da sensibilidade e neste grupo estão exactamente contidas as formas produzidos pelas chamadas artes do espaço. Referiremos aqui apenas os casos da pintura, escultura e arquitectura e no que respeita às suas dimensões espaciais. A primeira costuma classificar-se como arte a duas dimensões, dado que, em princípio, o pintor organiza um espaço (quadro, parede) que possui duas dimensões e dentro delas encontra os limites espaciais da sua actividade, o que não significa, por outro lado, que na história da pintura não haja tentativas de representar a terceira dimensão (perspectiva) e até a quarta dimensão (cubismo). Quanto à escultura, é geralmente classificada como arte a três dimensões pois que o escultor cria volumes envolvidos por espaço e a quarta dimensão aparece nela como resultado do observador que, deslocando-se para encontrar os vários perfis, despende tempo na observação. A arquitectura, diz-se, difere fundamentalmente da escultura pela criação de espaço interno, espaço que deve ser vivido, percorrido, para apreensão total do edifício, donde, tal como na escultura, a existência do tempo como medida nesta arte.

Estas classificações, porém, não correspondem totalmente à realidade; para além da representação do tempo há na pintura tentativas contemporâneas, por exemplo, de uma pintura dinâmica, na qual a tela, deslocando-se entre dois eixos paralelos, se apresenta ao observador em movimento, devendo acrescentar-se que mesmo na pintura do passado o tempo como dimensão conta muito, embora a longo prazo, dados as alterações que, quer o suporte, quer a camada cromática de uma mesma pintura sofrem ao longo da sua existência. A escultura, na qual há aliás e como na pintura tentativas de representação da quarta dimensão, pode, por outro lado, ser ou animada de movimento (os mobiles de Calder, por exemplo) ou, por sucessão de planos transparentes, implicar uma visão por etapas da qual o tempo não está igualmente alheio, acrescentando-se sempre o movimento a que o observador é obrigado para sua completa apreensão. Na arquitectura – e também a mais ou menos longo prazo – o tempo joga como factor fundamental e não apenas como dimensão da própria obra, sabido como é que um edifício tem uma vida – tal como uma pintura ou uma escultura – neste caso mais agitada pois que o cumprimento de determinadas funções concretas e obrigam a uma actualização – ou a um abandono – que o alteram como espaço organizado.

Destas ligeiras considerações se pode deduzir o que há de convencional na definição da ausência espacial destas três manifestações, nas quais o tempo conta sempre, até porque entre umas e outras se situam mil modalidades, como por exemplo, o baixo relevo participando da pintura e da escultura ou o monumento, participando da arquitectura e da escultura. E, para além delas, o mobiliário, a jardinagem, o urbanismo, o cinema, a ourivesaria ou a cerâmica e tantas outras, algumas das quais se convencionou chamar “menores” mas cuja classificação, sobretudo num sentido de hierarquia, se nos afigura perigosa.

Surgem, portanto, dois problemas tão distintos como consequentes nas formos criadas pelo homem: em primeiro lugar, quanto a nós, a impossibilidade de distinguir claramente “formas artísticas” de “formas não artísticas”, em segundo lugar, a dificuldade de hierarquizar a importância relativa de tais formas. Há, realmente, classificações de artes maiores e artes menores e há o conceito de arte como fim de si própria. Cremos porém que, embora aceitemos gradações, toda a forma criada pelo homem tende, ou deverá tender, para forma artística, caso contrário será desprovida de uma necessária totalidade, e por outro lado, que todas as formas se revestem de importância para uma organização do espaço.

Um termo de aplicação recente, o “design”, que em português poderá talvez traduzir-se por “concepção formal”, vem em certos aspectos, levantar e resolver este problema que se apresenta; geralmente usado para “concepção formal” dos objectos de produção industrial, o termo tende a ampliar-se no seu significado para abarcar os formas de organização do espaço e foi nesse sentido lato que ele foi utilizado na “World Design Conference” realizada em Tóquio, em Maio de 1960. Aí se reuniram pintores, arquitectos, cineastas gráficos, “industrial designers”, paisagistas, engenheiros, urbanistas e muitos outros profissionais da organização do espaço que analisaram, fundamentalmente, três aspectos: qual o significado da personalidade no “design”, qual o papel do “design” no ambiente humano, quais as possibilidades que o “design” apresenta para o futuro.

Às várias comunicações e intervenções que ao longo do citada Conferência se sucederam presidiu sempre um sentido de integração dos fenómenos do espaço, de unificação do ambiente visual do homem, a que não estamos habituados neste mundo de classificações, de distinções, de compartimentação e que urge em verdade reestruturar segundo conceitos novos. Cremos assim que o conceito de “design” que integra e funde conceitos como os de arte e técnica, artes maiores e artes menores, arte e natureza e outros, é um conceito que significa e traduz uma atitude de visão global dos fenómenos do espaço de rico e prometedor futuro, e a realização daquela Conferência, aliás num país riquíssimo de exemplos do passado que constituem notáveis lições para o presente, aponta um caminho que, não sendo novo na sua essência, pelo menos no Japão, há que percorrer para tentar solucionar o caos do espaço contemporâneo.

E dentro deste conceito amplo de “design” cabe perfeitamente embora ocupando apenas uma parcela da sua totalidade, um outro conceito que percorre o mundo o da “integração” ou “síntese das artes”, mais limitado e parcial porquanto se põe o problema, em princípio, no que se refere às chamadas artes maiores, arquitectura, pintura e escultura, posição que nos impressiona exactamente pelo que tem de limitativo em relação aos problemas do espaço organizado. Em verdade porquê pensar apenas na “integração da pintura escultura e arquitectura, sabendo que as manifestações espaciais em que estas actividades se traduzem representam uma percentagem pequena do espaço organizado que nos envolve e que há mil outras actividades humanas de importância semelhante e que igualmente afectam o espaço?

Do que foi dito parece poder deduzir-se uma característica fundamental do espaço organizado: a sua continuidade. O espaço é contínuo, não pode ser organizado com uma visão parcial, não aceita limitações na sua organização e do mesmo modo que forma o espaço estão tão intimamente ligados que uma é negativo do outro, e vice-versa, pelo que não podem separar-se, assim as formas visualmente apreendidas mantêm entre si estreitas relações – harmónicas e desarmónicos – mas de qualquer modo evidentes.

Em matéria de organização do espaço e no caso simples do ponto que lançámos no papel, contam igualmente o ponto e o papel ou, apontando um exemplo mais prosaico mas claro, é ainda o caso de certo famoso queijo com buracos no qual, ainda que os buracos não alimentem, eles são indispensáveis para a total definição das suas características.

No seu tratado “Da Pintura Antigua” o nosso Francisco de Hollanda[2] estabelece entre os seus “preceitos da pintura” este que nos parece fundamental: “O decoro e o que se deixa de fazer”. Na segunda parte desde “preceito” está um princípio perfeitamente aplicável ao facto a que vimos referindo pois em boa verdade “o que se deixa de fazer” é em pintura, como aliás em todos as manifestações da vida, tão importante como aquilo que se faz ou, aplicando ao conceito de espaço, o espaço que se deixa é tão importante como o espaço que se preenche.

Tudo tem importância na organização do espaço – as formas em si, a relação entre elas, o espaço que as limita – e esta verdade que resulta de o espaço ser contínuo anda muito esquecida. Citemos, para exemplo, um caso frequente: projecta-se uma estrada, manifestação de organização do espaço e factor de movimento, e em que é que se pensa unicamente? No seu comprido perfil longitudinal e na pequenez dos seus perfis transversais; todo o resto, todo o sistema de relações, quer paisagísticas, quer urbanísticas, quer económicas e outras que o fenómeno implica, é esquecido como se possível fosse abstrair esse acontecimento de todo o espaço e de toda a circunstância que o envolve. É uma limitação cómoda mas grave, que resulta de uma visão parcial, não apenas do ponto de vista do espaço organizado mas do ponto de vista de um conjunto de factores – circunstância – de que ele não está desligado, como referiremos adiante.

É também cómoda e frequente a afirmação de que há que caminhar do geral para o particular, ainda que não menos verdadeira; caminhemos, sim, do geral para o particular mas que o estudo do geral não invalide o estudo do particular, pois que um não pode viver sem o outro por indissociáveis e a dificuldade está exactamente no equilíbrio sábio e harmónico destes extremos, aparentemente opostos mas realmente complementares.

Mas, porque o espaço é contínuo e porque o tempo é uma das suas dimensões, o espaço é, igualmente, irreversível, isto é, dada a marcha constante do tempo e de tudo o que tal marcha acarreta e significa, um espaço organizado nunca pode vir a ser o que já foi, donde ainda a afirmação de que o espaço está em permanente devir. Quando, por exemplo, ao restaurar um monumento com critério “científico” (ou pseudo­científico) passa pela cabeça de alguém dar a tal monumento o aspecto que ele teve em época mais ou menos passada, cai-se na utopia de supor que aquilo que já foi pode de novo vir a ser esquecendo-se que a irreversibilidade do espaço não permite aceitar tal hipótese. Diga-se aliás, e de passagem, que os antigos tinham uma noção clara deste facto pois que os seus “restauros” – a que davam certamente outro nome – eram feitos com critério mais realista e um sentido mais dinâmico do espaço organizado.

E destas duas características do espaço – continuidade e irreversibilidade – uma consequência da outra, na medida em que ao falar de continuidade física pressupomos dimensões e entre estas pressupomos o tempo, resulta ainda que a organização do espaço como actividade pertence a todos os homens e não apenas a alguns, o mesmo é que dizer que a organização do espaço é obra de participação de todos os homens, em graus diferentes de intensidade e até de responsabilidade, mas, de qualquer modo, obra de que nenhum homem pode eximir-se.

Não bastaria o seu corpo, forma em movimento, para tornar cada homem elemento organizador do espaço? E quantas há, das suas mil actividades, quer físicas, quer intelectuais ou emocionais, que não se revestem de forma? Olhemos qualquer parcela de espaço que rodeia e pensemos em quantos homens, dada época ou ao longo do tempo, participaram na sua organização; e nós próprios que olhamos, que nos situamos em tal parcela não participamos igualmente? Coloquemo-nos numa montanha e olhemos em redor, sobrevoemos uma cidade, percorramos uma rua, sentemo-nos numa praça, observemos a sala em que nos situamos, reparemos este móvel, naquele tapete ou ainda no candeeiro que nos ilumina; os nossos olhos encontram sempre espaço organizado por homens e organizado tão solidariamente que não é fácil distinguir o que cabe ao construtor civil, ao agrónomo, ao lavrador, ao operário, ao presidente da câmara ou da junta de freguesia, ao político, ao administrador, ao arquitecto, ao carpinteiro, à dona de casa, ao pintor, ao jardineiro, ao engenheiro, ao economista, ao escultor ou, para não especificar profissões ou actividades, o que cabe exactamente a cada homem. É assim espaço organizado, tão contínuo nas suas dimensões físicas como no processo da sua organização.

Ananda Coomaraswamy escreveu que “o artista não é uma qualidade especial de homem, mas cada homem uma qualidade especial de artista”[3], verdade por demais evidente, para necessitar de quaisquer comentários mas, apesar de evidente, tão esquecida e tão arredada que há que lembrá-la a toda a hora.

Mas, se é fatal a participação de todos os homens na organização do espaço, tal participação só conduzirá à harmonia na medida em que ela se transforme e colaboração e colaborar significa agir em comum, com uma mesma intenção, com um mesmo sonho. Para tal, é necessário que existam uma extraordinária e intensa compreensão, um respeitar para ser respeitado, um falar uma linguagem que todas as partes em presença possam compreender.

Podemos, talvez, considerar dois tipos de participação na organização do espaço; uma participação a que chamaremos horizontal, que se realiza entre homens de uma mesma época, uma outra a que chamaremos vertical que se realiza entre homens de épocas diferentes. São dois aspectos de uma mesma realidade, com a diferença, se diferença pode chamar-se-lhe, de que o tempo conta mais no segundo do que no primeiro, embora não esteja ausente também nesse. A participação horizontal é aquela que prende homens de uma mesma geração, enquanto que a vertical prende homens de gerações diferentes em obra que se processa ao longo de um período de tempo que ultrapassa a dimensão da geração.

Para que o espaço organizado seja harmónico, dizíamos, haverá que transformar a participação em colaboração e, tanto no plano horizontal como no plano vertical, há desta exemplos magníficos no passado. Citemos, quanto à colaboração vertical, o que significa como continuidade, compreensão e respeito mútuos, um espaço organizado ao longo de séculos como a Praça de São Marcos em Veneza.

A nossa época, por razões a que nos referiremos adiante, tem sido avessa à colaboração, o que acontece em todas aquelas cujos homens se ignoram mutuamente, donde resulta que as suas obras constituem apenas soma e nunca integração; a “barbárie do especialismo” como chama Ortega y Gasset[4] a um dos mais característicos fenómenos do nosso tempo não é, em verdade, propícia à colaboração mas apenas a uma pura e simples participação e desta outra coisa não pode resultar que não seja uma pura e simples ocupação do espaço e nunca a sua organização.

Mas, contra o que o homem por vezes pensa, as formas que ele cria, os espaços que ele organiza não são criados ou organizados em regime de liberdade total, mas antes profundamente condicionados por uma soma infinita de factores, de alguns dos quais o homem tem plena consciência e agindo outros inconscientemente sobre ele. O número destes factores e a sua importância relativa são difíceis de apontar e de referir em cada forma que o homem cria, até porque as formas artificiais ou de criação humana, para além das formas naturais que se revestem de enorme importância, contam como factores condicionantes de cada forma criada, pois acontece que o espaço organizado pelo homem é condicionado na sua organização mas, uma vez organizado, passa a ser condicionante de organizações futuras e daqui que, apenas por comodidade de estudo, seja possível separar estes dois aspectos do espaço organizado porquanto ele é condicionado na sua elaboração e condicionante na sua existência.

A esse conjunto de factores naturais e humanos (e só é possível distingui-los na medida em que o fenómeno seja observado à escala do homem mas, de qualquer modo, eles estão intimamente ligados entre si), daremos o nome de “circunstância”; sendo assim “circunstância”, pelo próprio significado da palavra, será aquele conjunto de factores que envolvem o homem, que estão à sua volta e, porque ele é criador de muitos deles, a esses haverá que juntar os que resultam da sua própria existência, do seu próprio ser.

Constituem assim circunstância da organização do espaço, circunstância das formas que o organizam, para além das formas preexistentes – naturais ou humanas, umas e outras já de número infinito – factores tão variados como o pensamento científico ou a religião, a economia ou a sensibilidade, a política ou a filosofia, sendo por vezes difícil discernir a importância de uns sobre os outros e, mesmo que possível, sendo certo que todos, mais ou menos, estão na base de qualquer forma e estão de tal modo que a compreensão total de uma forma será tanto mais perfeita quanto mais se transforme em vivência, na medida em que se identifiquem forma e observador, pois que um processo intelectual de pura análise não é suficiente para a obtenção total do espírito de qualquer forma, ainda que possa constituir veículo de aproximação.

A forma mais compreensível para o observador será assim aquela que melhor o retrate, aquela que com ele mais se identifique, aquela que ele conheça por conaturalidade, isto é por existência de uma natureza comum. Daqui, aliás, o problema, não em relação ao conhecimento por via intelectual mas em relação à vivência ou ao conhecimento integral, do conhecimento das formas do passado ou de formas de culturas diferentes num mesmo presente ou até de formas produzidas por diferentes níveis culturais de uma mesma sociedade. Quando a história da arte, por exemplo e tal como é geralmente ensinada, nos descreve formas sem as enquadrar na sua circunstância, comete, a nosso ver, dois erros graves: em primeiro lugar deixa-nos supor que as formas são livres e aparecem um pouco por acaso (a circunstância é tão fundamental para a definição da forma como a água é indispensável para a vida do peixe) e, em segundo lugar, porque não nos fornece elementos para a sua melhor compreensão, dá-nos apenas um conhecimento vago delas e não nos aproxima da sua verdadeira realidade.

A explicação das formas em função de determinada circunstância é em verdade difícil, sobretudo a sua compreensão total, e assim como um bom vinho só poderá apreciar-se bebendo-o e não raciocinando sobre a sua fórmula química, assim uma forma só poderá compreender-se vivendo-a, bem como à sua circunstância e não apenas ouvindo descrições a seu respeito ou consultando suas reproduções. É verdade que esta é uma posição um tanto teórica na medida em que é impossível reconstituir a circunstância de cada forma, mas mesmo assim é uma posição na qual convém atender pois que, embora limite inatingível dum modo quase geral, indica pelo menos um caminho a seguir para uma melhor compreensão das formas que aos nossos olhos se apresentam.

Quando pensamos nas formas que o homem tem criado ao longo da sua existência – e, para limitar o nosso campo de observação, apenas nas formas de arquitectura e de urbanismo – que mundos diferentes de circunstâncias significam, por exemplo, as cidades de Nova Iorque e Teotihuacan, as pirâmides de Gizeh e o palácio de Katsura, Versalhes e a acrópole de Atenas… Variam a luz, as formas naturais dos terrenos e a sua constituição, variam os climas, variam os conceitos de vida física e espiritual, variam as técnicas, variam os usos e costumes… varia, numa palavra, a circunstância de cada um desses mundos diferentes de formas que o homem criou.

Afirmámos acima, porém, que o espaço organizado não é apenas condicionado mas é também condicionante e até que apenas por comodidade de estudo sério possível separar estes dois aspectos. Uma casa, por exemplo, é condicionada na medida em que terá de satisfazer determinado programa, construir-se com determinada quantia, assentar em determinado terreno, enquadrar-se em determinado ambiente, utilizar determinados materiais e mão-de-obra, satisfazer aspectos físicos e espirituais dos seus utentes, etc. mas, uma vez realizada, uma vez traduzida em forma organizada de espaço, o mesmo caso, que para existir teve de obedecer a um tão grande número de factores, passa o ser elemento condicionante, passa a constituir também circunstância e do modo como ela foi resolvida, como foram atendidos os problemas que levantou a sua concepção, da atitude tomada por quem a projectou, depende muita coisa desde a valorização ou desvalorização de um espaço até à felicidade ou infelicidade dos seus moradores.

Deste pequeno exemplo, que pode genealizar-se a tudo o que o homem  realiza para organizar o seu espaço, resultam dois aspectos fundamentais: em primeiro lugar, a importância de que as formas se revestem na vida dos homens e em segundo lugar, e como consequência, a responsabilidade que assume cada homem ao organizar o espaço que o cerca. E tal responsabilidade surge exactamente pelo facto de o homem saber que a organização do espaço, tendo de satisfazer e atender à circunstância, não é por esta “fatalmente determinada” – e daí a possível intervenção activa do organizador – e de saber ainda que uma vez organizado o espaço, devem estar na base da actividade do organizador do espaço.

Daqui se infere que o homem tem de tomar uma atitude ao criar qualquer forma, quer porque não é obrigado a obedecer passivamente à circunstância, quer até porque esta pode apresentar aspectos terrivelmente negativos e seria uma posição cobarde cultivar tais aspectos em lugar de os combater, além de que o homem sabe, igualmente, que ao criar formar cria circunstâncias e a circunstância que ele cria pode agravar esses aspectos ou pode melhorá-los.

A dificuldade da posição a tomar está exactamente em saber que porção da circunstância haverá que seguir e que porção haverá que esquecer ou mesmo contrariar; há, neste caso, duas posições limite e, porque limites, porventura inexistentes: ou seguir totalmente a circunstância ou negá-la totalmente. No primeiro caso, e na medida em que a circunstância apresente aspectos negativos e cremos que tais aspectos existem sempre, a posição é condenável sob qualquer ponto de vista; no segundo caso, e na medida em que a circunstância apresente aspectos positivos, a posição é igualmente condenável caindo-se na utopia, privada de interesse até porque muitas vezes não chega a revestir-se de forma dada a impossibilidade de realização concreta, espacial, da ideia que resultou de tal atitude.

Mas, pode argumentar-se, há o caso dos percursores, dos que vêm mais longe, dos que abandonam uma circunstância presente para sugerirem formas ou até apenas conceberem ideias de formas para uma circunstância futura; assentam eles numa posição com significado positivo ou haverá que condená-los igualmente? À pergunta responderemos que a posição do percursor é útil e aceitável na medida em que o futuro comprove a sua verdade, pois de um modo geral o percursor só é reconhecido como tal quando o tempo dá a garantia de que as suas ideias ou as suas formas têm realmente significado.

Mas entre o compromisso total perante a circunstância e o seu total abandono há uma infinidade de posições que podem ser tomadas por uma igual infinidade de homens e estes vão desde o organizador profissional do espaço (o engenheiro civil, o arquitecto, o pintor, o “industrial designer”, por exemplo) ao homem que tem na sociedade funções diferentes (o advogado, o lavrador, o operário, o médico, por exemplo), mas cuja actividade afecta igualmente o espaço. Todos têm responsabilidade na organização do espaço, como já foi dito, mas parece claro que o grau de tais responsabilidades é variável, sendo maior nos profissionais, não podendo no entanto esquecer-se que determinadas profissões ou actividades (as dos administradores, por exemplo), ainda que não sejam exercidas por homens que por função ou por formação possam classificar-se como profissionais do espaço organizado, desempenham nele um papel de extraordinária importância, o que aliás vem confirmar que também aqui qualquer classificação rigorosa é tão perigosa como impossível.

De entre os profissionais organizadores do espaço há evidentemente que contar que, para além da formação, existem entre eles grandes diferenças quanto à capacidade com que a natureza os dotou, isto é, as suas aptidões variam, mesmo que outras causas não houvesse, mercê das suas qualidades pessoais.

Aos mais dotados compete, naturalmente a função de condutores, de criadores de protótipos, mas cremos que, porque mais dotados, essa qualidade não deverá permitir–lhes uma espécie de fuga da sua circunstância ou de um caminhar no sentido da utopia, porque os outros homens – que justificam a sua razão de ser e deles necessitam – têm o direito de esperar de tais dotes alguma coisa de concreto para a sua existência. Dum excessivo individualismo dos mais dotados tem resultado no nosso tempo uma excessiva e perigosa individualização de formas e um ar demasiado pessoal no modo de organizar o espaço. Esta tendência, que é aliás produto de condições que ultrapassam o âmbito dos profissionais do espaço – mas contra as quais eles poderão evidentemente lutar na medida em que as julguem negativas – tem levado a uma extrema descontinuidade das formas que criamos pois que entre o “génio”, abundante na nossa época e ignorado em tantas épocas passadas, e o homem comum se estabeleceu uma barreira por vezes intransponível.

Se, em verdade, a organização do espaço tem na base uma atitude de escolha em face da circunstância haverá que contar com esta – mesmo negando-a em certos dos seus aspectos – mas não parece justo pô-la totalmente à margem, no sentido de criar formas pretensamente “geniais” ou “diferentes” que, por vezes, nada mais satisfazem do que o egoísmo dos seus autores, até porque é sabido que uma forma só possui significado na medida em que representa ou satisfaz, para além de um homem, toda uma sociedade que dela se utiliza.

E a responsabilidade dos mais aptos é também grande pelo facto de, como dissemos, a sua obra constituir normalmente protótipos tanto mais perigosos, aliás, quanto mais individualizada for a sua concepção; conhecida a importância da educação visual que resulta da facilidade de apreensão de formas e sua retenção pela memória, as formas criadas pelos mais aptos têm um papel decisivo no mundo das formas, aspecto que eles não deverão deixar de considerar na medida em que sabem que o modo como organizam o espaço tem, para além de outras funções, uma função pedagógica. Ora este aspecto pedagógico do espaço organizado não pode, de modo nenhum, ser esquecido, sobretudo em sociedades com fortes contrastes entre os seus níveis culturais e em que os menos evoluídos, por ausência de estruturas próprias ou por alteração de estruturas preexistentes olham para as formas dos mais evoluídos como o último grito a seguir. Daqui a conclusão, cremos, de que deverá atender-se sempre ao aspecto pedagógico das formas, à influência que elas poderão ter sobre determinados sectores da sociedade, o que pressupõe, no fundo, uma atitude de humildade e de compreensão do criador perante a circunstância que o envolve.

Por outro lado, na medida em que as formas produzidas por determinada sociedade se entrechocam, se negam, se contrariam, se desintegram, o espaço em que tal sociedade se estabelece sofre um processo que chamaremos de delapidação, o qual se dá, evidentemente, por razões várias mas no qual os mais aptos têm uma clara quota-parte de responsabilidade. A delapidação é assim um processo de criação de formas desprovidas de eficiência e de beleza, de utilidade e de sentido, de formas sem raízes, verdadeiros nado-mortos que nada acrescentam ao espaço organizado ou o perturbam com a sua existência.

E esta “doença” do espaço tem aspectos vários: afecta, por exemplo, a economia na medida em que as formas criadas não são eficientes ou, se o são por si, não o são no sentido mais amplo da posição que ocupam; afecta a cultura na medida em que as formas criadas destroem valores existentes ou não criam valores de significado cultural; afecta, numa palavra, o homem, na sua vida física e espiritual, na medida em que as formas criadas não servem para o prolongar, servir e enriquecer mas apenas concorrem, pela desvalorização do seu ambiente físico, para o perturbar em aspectos múltiplos da sua existência.

O espaço é um dos maiores dons com que a natureza dotou os homens e que, por isso, eles têm o dever, na ordem moral, de organizar com harmonia, não esquecendo que, mesmo na ordem prática, ele não pode ser delapidado, até porque o espaço que ao homem é dado organizar tem os seus limites físicos, facto pouco sensível, por exemplo, na escala do objecto mas já extraordinariamente sensível na escala da cidade ou da região.

A delapidação do espaço, que poderemos classificar de pecado contra o espaço, constitui, porventura, uma das maiores ofensas que o homem pode fazer tanto à natureza como a si próprio e da existência desta possibilidade de acção negativa, em contraste com a possibilidade de uma acção positiva, resulta o drama do homem organizador do espaço, drama que constitui garantia de que esta é uma das mais altas funções que o homem pode atribuir-se.

 

[1]. Abel Salazar – “O que é arte?” – Coimbra – 1940, p. 65-80.

[2]. Francisco de Hollanda – “Do Pintura Antigua”, ed. comentada por Joaquim de Vasconcelos – Porto – 1930, p. 172.

[3]. Transcrito em Eric Gill – “Last essays” – London – 1942, p. 55.

[4]. José Ortega y Gasset – “La rebellion de las masas” – Madrid – 1943, p. 127-135.