Nuno Teotónio Pereira (1922-2016)
Para citação: PEREIRA, Nuno Teotónio – Habitações para o maior número. Estudo Prévio 20. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2022, p. 61-68. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/20.8 Publicado a partir de Arquitectura n.º 110, julho-agosto, 1969, p. 181.
Habitação para o Maior Número
O desnível entre as necessidades de habitação e os recursos individuais para satisfazer constitui o cerne do problema habitacional: desnível abrangendo camadas da população cada vez mais vastas, na medida em que é mais acentuado nos meios urbanos sujeitos a uma forte pressão da procura; e desnível ao mesmo sempre crescente, pois têm aumentado mais rapidamente os componentes do custo da habitação (terrenos, urbanização, construção) do que os salários da população carecida.
Mas um aspecto fundamental deste fenómeno de carência é o seu caráter progressivo. A pressão demográfica nas zonas em processo de urbanização, provocada sobretudo pelo afluxo populações rurais, é agravada por fatores secundários: a redução da dimensão das famílias em meio urbano (e, portanto, a necessidade de mais habitações para uma dada população) a absorção de casas de habitação por actividades do setor terciário; a eliminação constante de residências por motivo de obras de urbanização outras; o envelhecimento provocado pela elevação constante dos padrões habitacionais, etc.
Num país em vias de desenvolvimento, onde o processo de industrialização está apenas iniciado, este fenómeno não é acidental, mas corresponde a um processo contínuo em permanente aceleração. E quando não é correspondido por uma oferta paralela de novas habitações a crise do alojamento tende a agravar-se.
Por esta razão, o problema habitacional não pode já hoje referir-se apenas a determinadas categorias da população, chamadas as mais favorecidas ou economicamente débeis: a amplitude da crise tem abarcado constantemente novas camadas, e tornou-se hoje um fenómeno colectivo à escala da generalidade da população.
Estes dois aspectos do problema – crescimento acelerado das necessidades e alargamento do seu âmbito – impõem uma perspectiva radicalmente diferente da que tem sido habitualmente encarada: perspectiva que supõe esquemas planeados de desenvolvimento urbano. O problema da habitação não pode resolver-se hoje com a construção de alguns bairros, como já não podia resolver-se ontem apenas com a construção de algumas casas.
Eis porque o maior número não é uma realidade estática: há que reconhecer o seu dinamismo para o colocar numa perspectiva realista que permita forjar os instrumentos necessários à resolução dos problemas que o concernem.
Efetivamente, se a carência de recursos é um facto, a carência e verificada de instrumentos de atuação ainda torna mais limitadas as possibilidades de que se dispõe. Faltam os mecanismos jurídicos indispensáveis à disposição de terrenos em condições adequadas de localização e de custo; faltam os mecanismos financeiros necessários para fazer convergir os capitais em operações programadas de envergadura; faltam as estruturas administrativas conducentes à coordenação dos empreendimentos nos diferentes níveis; faltam os dispositivos que permitam superar as limitações que afectam a indústria da construção, em materiais, mão-de-obra e processos de construção; faltam, enfim, assim os instrumentos que permitam congregar esforços fazer convergir recursos, minimizar os encargos.
Seria relativamente fácil mostrar que os estrangulamentos que afetam os nossos programas de habitação resultam antes de mais na falta de instrumentos adequados: celebrada a carência de recursos será apenas uma segunda barreira, que muitas vezes nem sequer é atingida.
Construir para o maior número
Das considerações acabadas de fazer, podem extrair-se, com as cautelas que o carácter sumário do método aconselha, alguns critérios que permitam orientar ações ou empreendimentos habitacionais efectivamente dirigidos ao maior número. E a luz desses critérios fazer a seguir alguns comentários a experiência portuguesa neste domínio.
Na realidade, tem sido frequente que os empreendimentos dirigidos exatamente as populações mais mal alojadas sejam implantados em lugares segregados, fora dos circuitos de transportes públicos, desprovidos de equipamento básico. Muitas vezes ainda obedecendo a sistemas de construção precários, possibilidade de melhoria ulterior: os bairros de fibrocimento ou mesmo de tijolo para as chamadas classes pobres ou para os habitantes de barracas, são exemplos de uma visão errada na construção para o maior número.
Efectivamente, programas habitacionais dirigidos ao maior número implica necessariamente uma certa dimensão – o factor quantitativo não pode ser deixado de lado – ou ainda uma pressionante urgência; mas não serão empreendimentos isolados, ainda que vastos ou de emergência, que poderão contribuir para a solução do problema, tal como foi exposto atrás. Tais programas beneficiaram sempre (e talvez de forma precária) uma pequena percentagem das massas de população carecidas em ritmo crescente. E podem cria a ilusão (e isso tem acontecido) de que se está a fazer algo para debelar realmente o mal.
Só serão na realidade dirigidas ao maior número as ações que se inscrevam no processo rápido de superação da situação de crise actual, bem como de absorção das necessidades previsíveis em futuro próximo: processo que considere as necessidades de habitação não apenas quanto aos aspectos quantitativos, mas também qualitativos (nível das rendas, inserção urbana, etc.); e que se encaminhe para a maximização dos recursos disponíveis e a minimização dos encargos, inserindo-se no numa perspectiva de resolução progressiva. Processo, enfim, que aponte para uma reforma das estruturas do setor, ainda que a expressão quantitativa, em termos de construção de casas, possa ser reduzida num período inicial.
Podem, portanto, atingir-se volumes elevados de construção, sem que, necessariamente se esteja a construir para o maior número. E pode, inversamente, construir-se relativamente pouco (num período inicial), construindo-se para o maior número, desde que, por exemplo, os investimentos sejam concentrados em empreendimentos-piloto de carácter inovador ou aplicados em programas de expansão urbana ordenada, ou inseridos em reformas estruturais do setor; concorrendo em qualquer caso para a obtenção de instrumentos técnicos, jurídicos ou administrativos susceptíveis de permitirem um aumento rápido da produção de habitações, no âmbito de um crescimento ordenado das cidades, integrando ao mesmo tempo franjas marginais e recuperando zonas degradadas.
Nesta perspectiva caberiam, por exemplo: a adopção de regimes legais permitindo a utilização do solo urbano por forma a fazer prevalecer o interesse geral sobre os interesses particulares; a organização de sistemas de financiamento e de locação que reduzissem substancialmente a distância entre os encargos com habitação e as possibilidades económicas dos utentes; a utilização de métodos de programação, de desenho, de administração, de execução cada vez mais rápidos, rigorosos e produtivos.
Isto quer dizer também que, do ponto de vista do maior número, contam não apenas a quantidade e a qualidade dos empreendimentos, mas o seu efeito multiplicador ou generalizador, num processo em que cada acção deve beneficiar das experiências anteriores e procurar traduzir-se em novas aquisições instrumentais, de alcance cada vez mais amplo.
Considerando o plano específico da expansão urbana, só este processo permitirá a superar a situação actual, que consiste na chamada acção disciplinadora ou correctiva a que o planeamento tenta obrigar os mecanismos da produção, integrando ao invés estes mesmos mecanismos na expansão ordenada da cidade.
A experiência portuguesa
Ao longo de quase 40 anos de legislação e de realizações, a nossa experiência em matéria habitacional é variada e susceptível de uma apreciação de conjunto, que aliás tem sido feita, nomeadamente nos estudos preparatórios dos últimos planos de fomento.
Além de uma acentuada timidez nas tentativas de alteração estrutural, caracteriza-se sobretudo pela falta de continuidade: as acções empreendidas, algumas de certa amplitude, têm geralmente carácter pontual não se aproveitando o cabedal de experiência de umas para outras.
Nas considerações que se seguem, procurar-se-á, de uma forma sucinta, passar em revista a experiência nacional, à luz dos critérios antes expostos relativos à construção para o maior número, sendo fácil verificar que muito do potencial que se criou em inovação e experiência não foi depois aproveitado; e que uma boa parte dos recursos investidos, em legislação, iniciativa, estudos, financiamentos, etc., não têm sido convergentes, o que se traduz necessariamente numa fraca rentabilidade.
O regime chamado das Casas Económicas, criado em 1933, teve aspectos altamente inovadores – acesso a propriedade, seguro de vida, para além do facto, também novo, de se traduzir em empreendimentos programados e realizados. Mas a sua limitada amplitude é bem patente: em 33 anos de permanente atuação (1934 a 1967) construíram-se em todo o País cerca de 13 500 habitações neste regime, o que dá a modesta média de 400 fogos por ano.
O reforço que a certa altura os capitais da Previdência vieram trazer ao sistema não resultou em aumento do ritmo das construções, pois os financiamentos do Estado, que no período inicial tinham alimentado em exclusivo este regime, praticamente reduzidos a zero nos últimos anos. O único passo em frente que esta modalidade registou, ao longo de décadas de realizações de rotina, foi o abandono da moradia unifamiliar e do bairro fechado como soluções tidas por obrigatórias até há bem pouco tempo.
O período do pós-guerra foi prolífero, sobretudo em matéria de legislação. Criaram-se as Casas para Famílias Pobres e as Casas de Renda Económica em 1945, os Casais Agrícolas e as Casas para Pescadores em 1946, as Casas de Renda Limitada em 1947.
As duas primeiras modalidades têm tido uma expressão quantitativa já de maior significado (respectivamente 600 e 500 fogos por ano entre 1949 e 1967) e alargados a todo o território; as Casas para Famílias Pobres, congregando subsídios do Estado em recursos locais, e as Casas de Renda Económica, investindo importantes capitais da Previdência Social. Quanto aos restantes regimes, o seu alcance tem sido diminuto (Casas para Pescadores), praticamente nulo (Casais Agrícolas) e passageiro (Casas de Renda Limitada).
Entre os anos de 1949 e 1960 – pois a partir deste ano a modalidade deixou praticamente de ter aplicação – ainda se construíram em Lisboa cerca de 800 fogos por ano ao abrigo do regime de Renda Limitada, o que mostra a respectiva potencialidade. Verificada, porém, a existência de manobras especulativas, não se quis utilizar contra elas os instrumentos previstos na própria lei, preferindo-se o abandono puro e simples do sistema. Iniciada sob os melhores auspícios, até com projectos elaborados pelo próprio Município, este regime mostrou a possibilidade de conferir ao investimento de capitais privados na habitação um maior alcance social. Uma nova regulamentação, promulgada em 1958 com o fim de combater a especulação, que impunha até as Câmaras a obrigatoriedade de reservarem para Renda Limitada pelo menos 50% dos lotes vendidos em hasta pública, e na qual se anunciavam medidas drásticas no caso de não se atingirem os objectivos propostos, não teve qualquer aplicação, tendo-se deixado perder uma oportunidade de verificar até que ponto, e partindo da experiência já adquirida, se poderia contar com a rentabilidade social da aplicação de capitais privados na habitação.
Alguns anos antes da proliferação legislativa a que se fez referência, algo se realizou da maior com vista a uma política de habitação: a Câmara Municipal de Lisboa, sob o impulso do então presidente Duarte Pacheco, iniciou uma vasta operação de compra de terrenos em toda a periferia da cidade. Foi esta operação, continuada em anos subsequentes, que tornou possível a realização dos importantes programas habitacionais levados a efeito mais tarde, nomeadamente Alvalade e Olivais; programas do maior significado na experiência portuguesa em matéria de habitação social.
O bairro de Alvalade, inteiramente planeado pelo Município e iniciado por volta de 1947, integrou variados regimes de construção, desde as Casas de Renda Económica financiadas pela Previdência, até às Casas de Renda Limitada e de Renda Livre, e incluindo mesmo uma importante parcela construída por cooperativas de habitação. Os aspectos inovadores desta realização foram numerosos: planeamento do conjunto perfeitamente integrado na cidade e operado sobre terrenos totalmente disponíveis; tecido urbano diversificado, equipamento previsto e executado, convergência de iniciativas e de capitais de variada proveniência.
Como núcleo deste empreendimento foi construído um conjunto de Casas de Renda Económica, com métodos totalmente inéditos e que não voltaram a ser utilizados, nem sequer nas obras congéneres dos Olivais: elaboração de projetos-tipo, construção prévia de um grupo experimental, desdobramento da obra em empreitadas do volume industrial (500 fogos), fornecimentos em conjunto de certos materiais e elementos da construção e criação de estaleiros para o seu fabrico.
Nos empreendimentos dos Olivais (Norte e Sul), iniciados em 1960 e agora em conclusão (com excepção dos equipamentos coletivos ainda praticamente inexistentes) os aspectos inovadores foram dados sobre tudo no plano da legislação. Efectivamente, o Decreto-Lei n.º 42 454 fixou rigidamente certas características por forma a garantir o alcance social do empreendimento, tais como as rendas máximas por categorias, as percentagens de cada uma destas, os valores máximos a atribuir ao custo dos terrenos, etc. No plano da realização, abandonou-se toda a experiência acumulada em Alvalade, embora algo de interesse tenha ensaiado, como a participação de um maior número de entidades na construção e uma ampla distribuição na encomenda dos projectos. Deve constatar-se, embora, que a crise da construção civil ocorrida na década de 60 apanhou em cheio este empreendimento.
Outra realização que interessa referir é a do programa para a eliminação das chamadas ilhas na cidade do Porto, prevendo a construção de 6000 fogos em 10 anos, a partir de 1956. Os aspectos inovadores deste empreendimento, caracterizado por austeridade e disciplina por um lado limitativas, permitiram a sua realização integral no prazo estipulado, traduzindo-se sobretudo no plano do financiamento (pela conjugação de fontes e regimes muito diversos, incluindo subsídios do Estado e Empréstimos da Caixa Geral de Depósitos) e no cumprimento rigoroso dos objetivos.
Alguma coisa interessa ainda referir quanto ao regime de mais recente instituição: os empréstimos da Previdência para a construção, aquisição ou beneficiação de casas, criado pela lei 2029 em 1958. Este sistema, cuja característica essencial se centra no apoio a particulares (indivíduos, empresas e Casas do Povo) tem mostrado um dinamismo crescente: cerca de 15 000 fogos financiados até 1968, dos quais perto de 13 mil para a construção ou aquisição de casa própria. Apoiando a iniciativa individual e aproveitando as pequenas poupanças, a utilidade do sistema no conjunto da legislação portuguesa é indiscutível, aí residindo o seu caráter inovador. Mas a falta de critérios seletivos na concessão dos empréstimos está a tornar-se desastrosa no plano da ordenação urbana: concebido para as zonas rurais, contribui de forma crescente para o caos das cinturas urbanas em crescimento. E o que é mais grave, alimenta a especulação e a construção de má qualidade, sobretudo através da modalidade de aquisição em propriedade horizontal, que regista uma subida vertiginosa.
Conservando os méritos do sistema, seria necessário condicionar os empréstimos a mínimos de qualidade urbana, por forma a estimular a construção de conjuntos residenciais bem localizados e organizados e adequadamente equipados. Por outro lado, encorajado o agrupamento de beneficiários da Previdência em cooperativas de habitação, o que está aliás no espírito da própria lei, mas não chegou a ser regulamentado.
As lacunas desta lei são típicas do que se passa com o conjunto da legislação portuguesa em matéria de habitação: a intervenção oficial faz-se por setores independentes e segundo ângulos de visão parciais e incompletos. A criação do Instituto Nacional de Habitação, insistentemente reclamada nos últimos anos e já prevista nos recentes planos de Fomento, parece condição indispensável para que se ponha em prática uma política urbana, cuja ausência tem permitido a extensão progressiva de males a que cada vez será mais difícil dar remédio. Uma política da habitação que ignore os aspectos ligados à organização do solo nunca poderá servir efectivamente o maior número, ficando condenados todos os investimentos e esforços a uma rentabilidade social bem precária.
Os recursos não aproveitados
Toda a experiência nacional, em matéria de promoção habitacional, que foi sucintamente relatada, ignora sistematicamente os recursos potenciais das populações a alojar. Isto tanto no que se refere a habitações com carácter definitivo, como a construções intencionalmente provisórias, como os bairros de fibrocimento dos anos 40, ou ainda os programas de emergência para os desalojados pelas obras da ponte sobre o Tejo ou as vítimas das cheias de 1967 na região de Lisboa. Mesmo quando dispondo de sumárias condições de habitabilidade, as casas têm sido construídas integralmente pelas entidades promotoras a assim entregues aos moradores, sem qualquer possibilidade de ampliação ou completamente ulteriores.
Em consequência, como se referiu atrás, dadas por um lado as limitações de capitais e de iniciativa das entidades promotoras, e por outro o desnível entre o poder aquisitivo das populações e o custo de uma habitação normal, tudo se conjuga para que os défices habitacionais se mantenham, se é que não aumentam.
Verifica-se, por um lado, que as populações entregues aos seus recursos, têm sido muitas vezes capazes de, pelas próprias mãos, conseguirem precárias habitações que pouco a pouco vão melhorando. Este fenómeno, largamente verificado nas regiões rurais, é particularmente visível na região suburbana de Lisboa, através dos aglomerados de casas abarracadas ou dos bairros chamados clandestinos. Embora muitas das construções efectuadas nestas condições sejam o produto de pequenos empreiteiros, uma larga percentagem é obra dos próprios moradores que, tendo encontrado um terreno (normalmente por aluguer e outras vezes por compra) aí improvisam um abrigo que, com o andar dos tempos e a elevação progressiva do nível de vida, vão ampliando e melhorando. Um exemplo deste processo é o Bairro da Liberdade, nas encostas de Monsanto, em Lisboa, que, iniciado como aglomerado de barracas no princípio do século, é hoje uma zona habitacional com características quase de normalidade.
É este capital, produto da iniciativa, dos esforços e das pequenas poupanças de grandes massas de população, e que rapidamente pode atingir valores consideráveis, que urge aproveitar ao máximo, canalizar de forma ordenada e orientar no sentido de uma expansão urbana gradual.
Países de economia subdesenvolvida, ou com défices habitacionais muito grandes, têm precisamente praticado uma política habitacional visando o apoio a este tipo de autoconstrução, logrando através dela não apenas a edificação massiva de novas habitações, mas a promoção social das populações interessadas, mediante o enquadramento e a racionalização do seu esforço. Os exemplos mais concludentes encontram-se do Norte de África, do Médio Oriente e da América Latina.
Podem encontrar-se algumas razões para a inexistência entre nós de realizações dentro desta via: por um lado, o facto de a crise habitacional se expressar mais através da superlotação de edifícios normais do que da extensão desmesurada de bairros de lata, o que favorece uma imagem do défice bastante benévola em relação à realidade; por outro lado, a nossa legislação revela uma convicção de que a crise será debelada com o novo regime que se põe em vigor, pois desconhece o carácter contínuo e inelutável do processo de urbanização; por outro lado ainda, o espírito do legislador tem sido avesso a soluções que impliquem a aglutinação de forças populares com vista a solução dos seus problemas, preferindo sistematicamente métodos paternalistas ou autoritários.
As realizações levadas a efeito em muitos países e os estudos que sobre os mesmos têm sido feitos, mostram que a atitude das entidades públicas, por um lado, e o ponto de aplicação da respectiva contribuição, por outro lado, têm de ser radicalmente diferentes do que se verifica nos programas de habitação convencionais. A distribuição dos papéis far-se-á consoante aquilo que cada qual pode dar, contribuindo naturalmente os moradores com a construção da célula familiar e as autoridades com o planeamento do conjunto, os terrenos e os equipamentos colectivos. Muitas vezes, o apoio das autoridades vai até ao ponto de oferecer assistência técnica (projectos, técnicas de construção, etc.) e mesmo certos materiais ou elementos da construção (por exemplo, pré-fabricados produzidos em série). Os moradores começam por construir, ou uma célula inicial susceptível de ser aumentada e completada, ou uma construção provisória destinada a ser mais tarde substituída.
Nestas condições, os recursos financeiros e técnicos das entidades públicas podem atingir um número muito maior de famílias do que os programas correntes, e assim contribuir muito mais rapidamente para a atenuação dos défices existentes.
É evidente que estas soluções não evitariam certos problemas de grande dificuldade nas condições e com a legislação atual: aquisição de terrenos (que seriam cedidos a prazo ou alugados aos moradores, e não vendidos), urbanização e equipamento de vastas áreas, planeamento urbanístico, etc. Mas permitiriam integrar no processo de expansão urbana, de forma ordenada e portanto útil, recursos de enorme vulto que têm sido, ou desperdiçados, ou aceites irremediavelmente em condições de impossível recuperação ulterior.
A experiência acumulada noutros países é já muito importante nesta via: mas ela não poderá ser seguida entre nós sem a realização de empreendimentos-piloto; e ainda sem uma mentalidade capaz de trocar a obra acabada, mas para poucos, pelo trabalho incompleto, mas progressivo, de uma colectividade lançada num empreendimento comum; e capaz sobretudo de rejeitar uma imagem da cidade dividida em fachadas e traseiras, aceitando uma outra onde todos tenham lugar dentro de esquemas ordenados de desenvolvimento.
Este texto repete, em parte, a comunicação com o mesmo título que o autor fez no Colóquio do Funchal, de que publicamos já outras comunicações.