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Nuno Portas (1934- )

 

Para citação: PORTAS, Nuno – Arquitectura e sociedade portuguesa. Estudo Prévio 20. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2022, p. 69-72. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/20.9 Publicado a partir de Encontro Nacional de Arquitectos. Arquitectura e Sociedade Portuguesa, Mensagem, dezembro 1969, p. 115-116.

Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

Arquitectura e Sociedade Portuguesa

Como estou longe na data do encontro posso dar-me ao luxo de ser agressivo – comigo e convosco. Defenderei a modéstia e logo o inconformismo como meios para uma melhor localização e eficácia da acção do arquitecto.

  1. Com a modéstia queria pôr dois problemas: o primeiro parte da conhecida ideia de que a arquitectura pode pouco como instrumento para modificar substancialmente o contexto social; o segundo é o de que o pouco que pode nesse domínio não é desprezível – e é um direito dos nossos concidadãos, como a competência do médico a que se entregam – e não tem sido dado por nós aqui e agora. Pior ainda é o facto de se usar com frequência o alibi simpaticamente radical de que “primeiro há que mudar as estruturas” para nem fazer nada ou pouco, no plano da eficácia, por mudar as estruturas, nem buscar no atelier ou na repartição quais as melhores soluções e os processos mais eficazes de as impôr, senão à realização, pelo menos à demonstração da viabilidade.
  2. A arquitectura tem poucas chances de crescimento fora do contexto social que a pode soletrar, compreender, consumir e pedir mais, melhor ou outra coisa. Contexto social não é administração activa; a administração, nas sociedades burocráticas de consumo dirigido responde a prioridades de grupos de interesse e procura evitar as pressões de uma base que desperte e proponha alternativas. Neste contexto, o arquitecto, por hipótese consciente, não tem relações orgânicas com a base social (é um técnico socialmente privilegiado, apesar de tudo), interpreta mal as necessidades da população utente (lembremos os Olivais) e, ao nível da linguagem põe, nega e repõe questões de forma de incrível arbitrariedade que lhe retiram qualquer validade semântica – e responsabilidade! -. E ao mesmo tempo trabalha para as administrações como um marginal que não propõe sequer na maior parte dos casos níveis superiores de racionalidade (como o faz o economista ou o agrónomo, apesar de tudo).
  3. O campo decisivo onde se decide o destino social da arquitectura é o da definição de prioridades socio-económicas e logo a seguir o das decisões sobre os programas. É aqui que terá de começar o nosso plano de abordagem; ora, mesmo que a definição de prioridades entre os diversos sectores exceda muito a nossa competência disciplinar (não a de cidadãos, naturalmente), a verdade é que a partir do momento em que se põe o problema da concretização dos problemas – estratégia das operações, aglutinação das actividades no espaço, etc. – o arquitecto competente pode dar contribuições decisivas a melhores rendimentos sociais e culturais dos investimentos. Exemplos: a alternativa de operações de habitat evolutivo aos bairros acabados convencionais é uma típica proposta cuja viabilidade compete ao arquitecto demonstrar, tomando sobre si os riscos da proposta; mostrar um conceito de centro direccional pode conduzir à unificação dos transportes regionais e nós privilegiados e indicar pontos prioritários para a instalação de edifícios até agora dispersos, pondo-os mais à mão da população do subúrbio com o mesmo ou menor investimento; e mais profundamente saber que ideia temos do território urbanizado e quais os processos ou tácticas para chegar a soluções melhores que as que conhecemos, é uma responsabilidade indeclinável que nos encontra demasiado desprevenidos. Adivinho as objeções a este desafio que me ponho a mim próprio: são problemas complexos, precisamos de equipas inter-disciplinares e de proceder a extensos inquéritos antes de tomar decisões. Não nos iludamos no entanto: Le Corbusier não teve oportunidade de proceder a amplos inquéritos por extensas equipas antes de arriscar os modelos de que nos servimos ainda; o que hoje temos sobre a ideia de cidade foi reunido por dez homens em 2 ou 3 congressos (esse Team X), que sacaram da sua experiência profissional quotidiana e alienada, mas também de uma imaginação desinibida, alguns conceitos que estamos longe de ter esgotado ou provado a inoperância. (E pelos inquéritos não chegariam lá) Ou melhor, depois dessas ideias os inquéritos são mais possíveis, o campo é menos indeterminado. Os limites do desenho são obviamente enormes, mas sem alguns conceitos essenciais da estrutura das coisas, que exigem estudo, pesquisa e desenho, não é possível dialogarmos com as equipas que planeiam e programam – se não continuarmos assim não nos resta então mais do que esperar que decidam e chegue a chance de fazer um projecto, desintegrado. A tendência actual na formação de equipas é de juntar quem tem certas ideias e não certos canudos.
  4. A aquisição desta competência passa por duas vias principais: a primeira é de montarmos vias de educação permanente que nos permitam discutir sobre a arquitectura que se faz ou se devia fazer, criar difundir as novas ideias e conceitos, fornecer novos métodos de projectar alheios à nossa formação profissional – e atenção, aqui pois a revolução maior está em sabermos projectar arquitectura para standardes com factor tempo – custo incluído, ideias que partam da estratégia do fazer, em que cada escudo gasto não comprometa a evolução futura, em vez dos projecto óptimos (?) finitos, acabados e isolados que nos habituámos a fazer.
  5. E neste ponto há que rever corajosamente os meios de reunião de que dispomos (não reunimos nunca para definir hipóteses de arquitectura, mas apenas acções mais ou menos vagas, que nos deixam sempre de mãos vazias para actuar junto da opinião pública[1]), os meios de difusão de que dispomos (e antes do mais a transformação da “Arquitectura” – revista hoje asséptica e consumistica num órgão de combate onde não haja medo de falar das coisas com os seus nomes, de arriscar propostas, etc.;) e ainda os meios de contacto internacional com centros com mais possibilidades para a produção de ideias e onde não actuamos por uma espécie de complexo inexplicável.
  6. Se temos a parte mais empenhada da profissão com uma mentalidade “liberal” – ainda quando se trate de funcionários – é condição de sobrevivência destinar uma quota–parte do tempo útil, com sacrifício, naturalmente, – discussão e difusão de ideias alternativas muitas vezes nadas-mortas na prancheta ou na gaveta do cliente, mas que importa prosseguirmos, discutir. Fê-lo o CIAM, o Team X, fazem-nos as dezenas de grupos que hoje pelo mundo empurram a arquitectura, que parecia perdida, para novos horizontes de intervenção. É uma questão de escola – e de coerência.
  7. Mas há uma segunda via, ligada a esta, que é a do trabalho integrado nos centros de decisão, sobretudo do Estado, que exige neste momento no nosso País uma estratégia bem definida e tácticas de actuação adequadas. (É um momento de remodelação, não interessa se boa ou má agora, de serviços no nosso campo de intervenção. E essa mexida irá prosseguir). É difícil que a elaboração de planos e a definição dos programas dos edifícios e da sua realização se possa processar fora dos quadros da administração. Desenhar desses quadros (quando seja possível ocupá-los) pelo sacrifício que impõem e pelos condicionalismos adversos que todos conhecemos é uma atitude suicida. Ficar-se-à fora dos próprios problemas, não se chegará a demonstrar a validade das alternativas que por hipótese tenhamos, e perdemos a oportunidade única de entrar no trabalho interdisciplinar, que aí se começa a esboçar.
    Quando afirmei que as duas vias são interdependentes, fi-lo consciente de que são vias difíceis, intermitentes, que exigem paciência e, volto ao princípio, inconformismo. Mas agora ficou claro que se trata de
    inconformismo justificado em ideias alternativas.
    Decidindo programas, pesquisando, lutando em alianças com outros técnicos nos quadros administrativos, impondo concursos para democratizar a angariação de trabalho a partir da competência e, paralelamente, procurando ideias no conjunto da profissão. Um exemplo mais: a delapidação mais grave de riqueza e energias situa-se hoje no chamado “urbanismo”; parece ser onde tudo se decide para o bem ou para o mal e no entanto, sabemos nós planear? Paralelamente ao uso não-uso dos planos conforme os interesses da especulação corruptora de técnicos e administrativos, não há uma desadequação total dos planos que fazemos? Não termos de discutir isso tudo dos anos que os planos levam, dos inquéritos que não têm que ver com as propostas, dos meios de transmissão dos critérios que não servem, etc. etc.? Não será possível propôr à administração uma estratégia do planeamento não perfeccionista nem idealista que utilize as forças em presença para obter algumas conquistas para a colectividade? É pelo menos uma interrogação que nos vale a pena pôr. E logo em seguida, ou ao mesmo tempo, a reforma dos serviços de urbanização (em que já se pensa) e a formação acelerada de técnicos executores de novas formas de planeamento.
  8. Em resumo o “incoformismo competente” traduzido na crítica pública aos rumos da “edificação” e da “urbanização”, e em paralelo no acesso concertado e apoiado de camadas (mais jovens provavelmente) aos quadros administrativos de maior    reprodutibilidade pôr-nos-à à prova nos limites disciplinares que são os nossos.
    Mas a convicção que ponho na busca de tácticas adequadas a estes objectivos não me faz esquecer que, paralelamente, subterrâneamente outra acção nos envolve, mas aí misturados na massa dos cidadãos, sem os privilégios de técnicos, quando muito servindo a população como “advogados” que lhes podem emprestar hipóteses, e esperanças (ainda mais uma vez
    alternativas ao que lhes estão dispostas a conceder). Essa acção parte dos sectores disponíveis do que chamamos agora a base e dirige-se ao câmbio das estruturas e dos interesses dominantes. Tem a sua estratégia e ritmo próprio, que importa não confundir com as da acção disciplinar que nos cabe.
    Mas não tenho dúvidas de que esta esperança não dispensa o trabalho quotidiano que aqui quiz lembrar. Depois de ter contactado com colegas de muitos países, fiquei convencido de que não deve haver país onde a acção crítica e alternativa dos arquitectos seja tão inexistente de há meia de dúzia de anos para cá, como o nosso.
    Uma profissão muda, disponível para o que calha, refugiando-se em corporativismo para não meter as mãos no que é difícil. O que se traduz na prática em conformismo real (ainda que altamente inconformista e sobretudo individualismo. O que parece ser até especialmente cómodo para os interesses que queremos combater.
  9. Plano A1. Ideias sobre temas prioritários portugueses onde a competência do arquitecto possa ser decisiva.

    exs. – Processo de Planeamento – Ensino – Polos de desenvolvimento, centros direcionais

            – Industrialização da construção – Participação da população no habitat

               A2. revigoração de órgãos de difusão, sobretudo “Arquitectura”, jornais, TV

               A3. reivindicação da Faculdade de Arquitectura e Urbanismo como Instituto de formação em Urbanismo

               A4. reivindicação concursos públicos como forma de adjudicação de trabalho de maior reprodutividade pública.

    Plano B1. Detecção dos serviços em remodelação e campanha de acesso de acordo com curriculum e interesses.

               B2. apoio à infiltração pela pesquisa e discussão de processos de actuação.

 

 

[1].  que teremos para dizer de concreto e com provas, num programa de TV, uma vez esgotadas as generalidades longínquas e sempre apenas metodológicas (começando na criação do mundo), que há anos repetimos e não falam à opinião pública! Já houve polémica nos jornais por uma questão de arquitectura?