Gonçalo Byrne (1941- )
Para citação: BYRNE, Gonçalo – Algumas premissas para uma nova arquitectura. Estudo Prévio 20. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2022, p. 73-77. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/20.10 (ed. original Quelques prémices pour une architecture nouvelle, L’Architecture d’Aujourd’Hui, nº185, Mai/Juin, 1976). Publicado a partir de RODRIGUES, José Manuel – Teoria e crítica de arquitectura século XX. Lisboa: OA-SRS, Caleidoscópio, 2010, p. 654-656.
Algumas Premissas para uma Nova Arquitectura [1]
Ainda que por um lado, a produção arquitectural em Portugal tenha seguido a evolução da cultura arquitectural europeia (à qual atribui a sua ausência “natural” de reflexão crítica), é necessário constatar que o “caetanismo” e a tecnocracia não conseguiram, mesmo no plano quantitativo, melhorar as características internas da produção actual. Os ajustamentos que a Europa capitalista necessitava para adaptar os seus investimentos à estrutura social portuguesa, serviram apenas para provocar um fenómeno de esclerose.
Ainda que durante este período a resistência política tenha sido tão real quanto trágica, é necessário confessar que no domínio especifico da arquitectura ela não teve, mesmo para os que eram comprometidos na luta política, consequências sobre o plano teórico, excepção feita às experiencias “de prática-critica” da arquitectura enquanto sistema de preceitos. Tendo constatado que era impossível uma inversão profunda do sistema que começasse no arquitecto, não houve, durante este período, um esforço sistemático para analisar o sector da produção arquitectural enquanto esquema ideológico. Esta ausência faz essencialmente falta ao nível do trabalho diário das equipas encarregadas de realizar os novos programas (novos em quantidade assim como em qualidade) procedentes do 25 de Abril de 1974 onde as relações anteriores (o papel do arquitecto e do cliente…) se tendem a reproduzir com uma facilidade surpreendente.
Há dois anos que a nossa reflexão crítica está monopolizada pelas prioridades da luta politica e arrisca-se a prolongar a situação a-critica das práticas arquitecturais anteriores ou a sobreavaliar de maneira demasiado optimista o processo desencadeado desde o 25 de Abril que, apesar de tudo, permanece limitado ao domínio “do possível” em arquitectura. Ora, esta reflexão sobre “o possível” deveria cobrir, para além da explicação ideológica da produção arquitectural como sistema de saber, a análise das transformações possíveis do papel do arquitecto. Isto é tão mais necessário quanto as relações do arquiteto com o poder mudam com a natureza deste mesmo poder. Poderemos falar das mesmas relações cliente-arquitecto quando os Comités de inquilinos se tornam os mestres-de-obra das operações SAAL? Contentar-nos-íamos de indicar resumidamente algumas das experiências críticas às quais acabamos de fazer referência. Porque, apesar da sua formalização rudimentar, elas constituem no nosso ponto de vista, tentativas para uma desmontagem sistemática das condições actuais da nossa produção arquitectural, numa perspectiva que desejaríamos socialista.
Para uma prática crítica da arquitectura
Duas tendências dominam a produção arquitectural portuguesa dos anos 60: a primeira, “italianisante” de origem organicista e neo-realista aparece sobretudo em programas de alojamentos sociais e de equipamentos colectivos financiados pelo Estado. A segunda, associada “ao desenvolvimento turístico” denota, o nível da linguagem, por um lado, uma certa influencia mediterrânica “folclórica”, por outro lado, um funcionamento de tipo anglo-saxónico que provém do “brutalismo” ou do “internacional style”.
Para além destas, desenha-se uma nova tendência em ruptura com estas duas formas de expressão. Ainda que certos projectos aqui apresentados não sejam, pela sua natureza, mais representativos de uma dimensão ou uma integração urbana, eles têm pelo menos o mérito de demonstrar os sinais desta ruptura. Esta tendência é apelidada “de formalismo” pelos defensores da neutralidade fictícia (ideológica) de uma adequação funcional, que assume, apressadamente os organigramas distributivos de qualquer método importado. Mas é precisamente agindo sobre os mecanismos da forma, pondo em causa os vocabulários institucionalizados, e praticando “a composição” enquanto articulação significativa dos diferentes elementos do programa nas suas relações com o local, que esta tendência se demarca do Movimento Moderno (ou de que, em Portugal, foi considerado como a sua aplicação ortodoxa). Reconhecer os limites de tal autonomia, ou seja, desmitificar a arquitectura enquanto “máquina autónoma” é possível apenas através de uma acção lúcida, dessacralizante da linguagem da arquitectura e dos seus sistemas internos.
Resultado de uma prática circunstancial definida pela encomenda, sem convergência de pressupostos teóricos, estes jovens arquitectos tentam quebrar com as correntes dominantes de um arquitectura mais ou menos burocrática denunciando a arbitrariedade dos códigos arquitecturais e dos sistemas de normas, por meio da austeridade e da depuração.
Esta atitude estava já presente, embora matizada de romantismo, na obra de Siza; noutros trata-se de uma desconfiança pelo pitoresco e uma vontade redutora inerente à manipulação crítica do discurso da composição. A utilização de uma poética minimalista preconizada por certos arquitectos, regressa às formas da arquitectura dos anos 20 curiosamente eliminada durante a ditadura salazarista[2]. Apesar de minimalista, a exploração da a-funcionalidade do espaço supérfluo foi utilizada em orçamentos muito limitados por Vítor Figueiredo por exemplo[3]. Este trabalho de manipulação crítica do discurso de composição apoia-se sobre o que se poderia chamar de “géneros” arquitecturais; a colagem e a referência tornam-se leis estruturais simples da (de) composição, reforçam o artifício interno do jogo arquitectural. Por exemplo, opondo “a linguagem” de superfície utilizada pelos arquitectos “organicistas” durante os anos 60 (descrição de matéria diferente através de um trabalho meticuloso das juntas) a um esqueleto racionalista da ordem Renascentista (o plano é em si mesmo sacrílego) encontram-se as bases de uma análise crítica do processo de composição: estas referências mostram a permanência a-histórico (por conseguinte ideológica) de certas regras subjacentes à produção arquitectural.[4]
Além disso, a utilização de uma fachada existente, esvaziada do seu contexto e colada a uma nova forma-edifício, tenta não disfarçar o fenómeno típico de esclerose progressiva dos centros históricos, exprimindo claramente a densificação do volume construído pela sobreposição a um referente-memória do tecido urbano (Mundial). A continuidade das fachadas contíguas, sugerida pela membrana que cerca os andares superiores, reenvia a um discurso derivado de um espaço interior fortemente caracterizado, espécie “de racha” onde se estende a complexidade do sistema das circulações internas. [5]
O objecto crítico
Uma outra forma de subversão da produção arquitectural dominante leva-nos a um novo tipo de projecto que, partindo também da manipulação do discurso da composição, encara quer o projecto quer o objecto construído como produtos autónomos. Esta diligência, por essência normativa, isola o objecto projectado do lugar onde se insere para lhe atribuir uma significação pontual.
Ela apropria os elementos básicos do repertório histórico (o muro, o arco, a parede) assumindo o risco de um síntese e erige-o em monumento. Esta exaltação da função “pública” do edifício supõe que a sua identificação seja possível pelo jogo de uma memória colectiva. [6]
Noutros projectos, o envolvente da construção pode tornar-se o recipiente do espaço externo. Esta inversão traduz, não somente uma inversão da tradição racional que exige que se componha o edifício do interior para o exterior, mas também uma investigação sobre o papel da fachada como plano de tensão (mediação dialéctica da relação interior-exterior)[7]. Esta maneira de caracterizar os espaços encontra pontos comuns com a obra de L. Kahn. [8]
Na medida em que o meio pré-existente é de algum modo ignorado ou diminuído, a arquitectura torna-se ela própria “um local”. Para além desta atitude de ruptura, assegura a função de germe seminal para um tecido desqualificado invertendo a tradição que exigia que o projecto se integrasse em continuidade com o meio. É necessário recordar que em Portugal, a influência do racionalismo europeu foi repelida sistematicamente pelo poder fascista que, temendo uma corrupção dos costumes se opôs a qualquer proposta de tipo “Tábua Rasa” feita por Le Corbusier ou pelo Movimento Moderno, enquanto incentivava um regresso à integração pela assimilação e a reprodução do estilo “nacional”.
Alguns projectos dos anos 60 já tinham colocado o princípio de novas relações entre a intervenção arquitectural e o local, baseando-se na interpretação do contínuo urbano limitado a signos marginais, sequências visuais ou escalonamentos de gabarito dentro dos quais se podiam criar ao nível formal novas relações de tensão ou de oposição[9] ou recuperar certas constantes de cor ou de texturas[10]. O problema da integração dos objectos arquitecturais é doravante colocado em termos dialéticos a partir da aceitação de certas continuidades urbanas mas também da sua própria negação.
Arquitectura e segregação urbana
Num outro plano, alguns arquitectos colocaram em causa a segregação urbana dominante que presidia às operações de expansão periférica de iniciativa privada ou pública. O fabrico de imagens urbanas naturalistas, visões nostálgicas da cidade-jardim, baseada na noção “de espaço verde” como elemento de mediação entre funções separadas, fatiadas (circulações, alojamentos, equipamento), e numa composição dos diferentes tipos de construção (volta, barra…) irregular, dispersado e pitoresco. Tudo isto correspondia ao sistema urbano universalmente difundido na Europa, fundado na proliferação das unidades de vizinhança à escala humana.
Neste contexto, compreenderemos o poder crítico que representam as propostas fundadas sobre a unificação da construção aos sistemas de circulação ou sobre a utilização das diferentes tipologias em ligação com a rua e como espaço interno dos ilhotes que já não são considerados como espaço residual.[11]
A recuperação de certos pressupostos teóricos recentes de origem anglo-saxónico, as citações tipológicas do Siedlung e a sua articulação numa grelha integrada tendem a eliminar qualquer atitude moralista quanto à inserção do monumento no tecido urbano;podemos então reencontrar os processos históricos de formação das cidades baseadas no potencial de simples regras repetitivas, essas mesmo que criaram a Lisboa de Pombal, os bairros em declive e aqueles de início do século.
Encontramos um reflexo desta articulação entre espaço urbano e arquitectura noutros projectos que, através de um maior rigor geométrico e uma forte definição de espaço se apoiam numa oposição de diferentes situação urbanas tais como a praça, a rua, a avenida, a passagem e muitas outras que procuram assim escapar a um certo mimetismo de origem neo-realista e a uma arquitectura “populista” que se pretende à escala humana.
Assim, a metáfora da cidade assume o seu sentido pleno na forma de uma construção que evoca “uma muralha”, que reforça a dicotomia entre um exterior – maciço quase sem janelas – e um interior que deixa transparecer a vida colectiva dos utentes. [12]
Neste tipo de projecto surge uma posição implícita de recusas de um certo determinismo tecnológico abstracto que diminuiria a força significante da arquitectura; pelo contrário, podemos perceber de uma forma muito clara a visão social de um agrupamento colectivo que se organiza em pequenos fortes, ilhotes de resistência incrustados num tecido urbano hostil, à imagem do sistema opressor.
[1]. Por razões editoriais, não são publicadas as imagens que acompanhavam este texto.
[2]. Adega e Zambujal.
[3]. Ver página 30.
[4]. Cascais.
[5]. Residência colectiva.
[6]. Pousada de Juventude, Beja.
[7]. Telheiras, Chelas, MV.
[8]. Queijas, RH.
[9]. Av. da Ponte, Siza.
[10]. Caxinas, Siza.
[11]. Restelo
[12]. S.A.A.L. MV.