Manuel Mendes (1949- )
Para citação: MENDES, Manuel – “Escola” ou “generalismo” – ecletismo ou tradição, uma opção inevitável – Estudo Prévio 20. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2022, p. 93-102. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/20.13 (ed. original Escola ou generalismo – ecletismo ou tradição, uma opção inevitável, Páginas Brancas (Arquitectura de Docentes do Curso de Arquitectura da ESBAP), Porto, FAUP – Arquitectura ESBAP, 1986). Publicado a partir de RODRIGUES, José Manuel (ed.) – Teoria e crítica de arquitectura século XX. Lisboa: OA-SRS, Caleidoscópio, 2010, p. 816-822.
“Escola” ou “Generalismo” – Ecletismo ou Tradição, uma opção inevitável
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Em Maio de 85, um grupo de estudantes do 2º Ano do Curso de Arquitectura da ESBAP quer agitar a rotina da vida escolar, propondo-se à abertura de um inquérito-roteiro, orientado para a divulgaão do que fizeram e do que fazem arquitectos formados naquela Escola. Ainda que o objectivo seja despertar e contribuir para o estudo, a reflexão de uma ideia de arquitectura expressa na visão conjunta de um quadro significativo de experiências, de tendências e de gerações, o projecto desvia-se e fixa-se na edição de uma antologia de realizações recentes no conjunto de profissionais – Docentes no Curso. Agora, pedem a alguns deles, escritos introdutórios, espécie de testemunhos pessoais em que se relacionem tempos de formação, tempos de construção de uma pedagogia e os seus reflexos na vida profissional.
No momento ou na distância dos factos e da experiência, um testemunho exprime-se num diálogo artesanal entre o agir o pensar, de modo a reunir sinais de coisas passadas e registos de coisas vividas ou bloqueadas, encontrando-lhes a ordem e o modo. Eventualmente insiste neles, e vinca o seu valor de emergência no quotidiano da acção colectiva – instrução da memória e do presente.
Por princípio, por intenção, sem propósitos auto-justificativos ou redondilhas maniqueístas, o exercício faz-se escasso (o rigor possível é ainda extenso) – apenas a abertura a, a procura de uma medida na reconstrução de conhecimento, por condição fragmentado e de diferentes qualidades. Na vontade propositiva, o acto de escrever associa-se ao acto de projectar: observa a realidade, delimita saberes, provoca as definições, qualifica a construção do ofício – junta fragmentos para colher a possibilidade de conhecimento. Conhecimento a partir do qual, energia e persistência – confiam a vontade de invenção de uma realidade outra.
E isto porque “por vezes parece-me que, alimentados de “gafanhotos” e “mel silvestre”, cada um de nós se deve transformar num outro João Baptista preparando com muita humildade e não menor fé o advento do predestinado: o arquitecto da casa do homem. Talvez seja este o objectivo de muitas gerações; ele preenche certamente toda a nossa existência. A arquitectura adquiriu consciência da sua renovada missão de muitos decénios, desde que, saindo da especulação intelectual abstracta, se voltou para os termos concretos da vida e procurou aderir sinceramente à medida humana” (E. Rogers, 43).
O nosso problema é mais precisamente este: encontra a lei na liberdade, e “nunca uma reconstrução sã será possível se não quisermos reconhecer que as suas bases têm o fundamento na escola”. Aqui se instruirá a nossa palavra, até porque de profissão se trata.
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“Todos nos convencemos de que a academia acabou, mas ao baptismo de outro tempo sucedeu um sentimento agnóstico não menos vazio: quem não crê no constante renovamento do espirito arquitectónico não pode transmiti-lo e, destacando-se do tradicionalismo formal, é incapaz de ligar-se às nascentes da tradição .A história, quando não é estagnação, revive no espirito criador. O que se pode exigir da escola é que ela ensine um método onde o antigo e o moderno adquirem relevo à luz da mesma atitude crítica. Depois de abandonar os dogmas ela não pode contentar-se em assistir passivamente ao ressurgimento duma nova cultura, mas deve, exercendo socraticamente uma paciente manobra, ajudar o despertar em todas as consciências.” (E. Rogers, 43).
Ao longo das últimas quatro décadas, o Curso de Arquitectura da ESBAP constitui-se, e reivindica-se, autor colectivo de sensível plataforma de reflexão e debate ideológico, cultural, disciplinar e do ensino. Um gesto criativo de quem fomenta uma ideia de escola e de projecto, no entendimento e transformação do real. O seu movimento verbaliza-se nas contingências da história, e revela-se permanente depositário de alguns vínculos culturais e disciplinares de certa durabilidade e transmissibilidade, os quais permitem associar, generalizar momentos de pesquisa, de aprendizagem, de ofício.
Transmissibilidade que elege a contradição como factor agitador da tensão criativa nos caminhos da practica ao sistema de ideias, solidarizando o individual e subjectivo ao campo colectivo do desejo e do desenho. O uso de algum pragmatismo teórico, na orla da construção e do ressurgimento de uma nova cultura, acompanha os novos problemas, as novas ambições, referindo-as a uma base racional comum, socializando–as. Princípios que, simultaneamente, condensam um projecto o qual, através da escola, procura e estabelece uma dialéctica com a realidade, a política e a ideologia.
Transmissibilidade que faz do desenho o suporte de continuidade. Desenho que se materializa à escala do tempo e do lugar. Lugar que proporciona a escola do processo do desenho. Processo que evolui ao entendimento do campo da projecção arquitectónica num sistema aberto de interdependências das técnicas de modelação do espaço; da racionalização dos instrumentos moderadores / avaliadores da acção artística no âmbito ou no uso do significado; da democraticidade das hipóteses de uma nova fruição da essência da arquitectura (o espaço) na materialidade da história.
Transmissibilidade que, reconhecendo na escola um centro propositivo, divulgador, actuante, não prescinde de outras estruturas e de outros procedimentos, paralelos e complementares da formação – transgressão – realização que instrui a arte e a vida. Os “escritórios de arquitectura” actualizam a personalidade do método, contextualizam a criatividade do desenho, modelam a obra. Os “ateliers de estudantes”, a partir do aprofundamento da condição estudantil, intensificam a crítica à base material do estudo, à qualidade do ensino, aos processos didácticos, à instrumentalização ideológica e disciplinar.
Na sedimentação da formação, o processo ESBAP alicerça a sua historicidade numa heterogénea noção do movimento, de participação; saber vivido que renova a qualidade e a situação do desenho, reivindicando a necessidade da arquitectura na construção do espaço físico. O inventário da ordem colectiva permite, também, o encontro de figuras-síntese – Carlos Ramos, Fernando Távora, Álvaro Siza, personagens de reveladora retórica, que se oferecem à comunidade, no labor das rupturas, dos consensos – da resistência.
“Significa que embora nos caiba, a nós homens de oficio, espírito eclético, por formação, e congenitamente profetas, o direito de preferir uma orientação entre as muitas que nos é dado manifestar superiormente, tenhamos optado, numa primeira fase, pela que, integrada nos conceitos universalistas que em todo o mundo nivelaram, na sua essência, o produto das modernas correntes estéticas e dos mais variados meios de expressão, permitiram ainda que neste estabelecimento de ensino superior se processasse a mais perfeita e conveniente fusão de duas gerações sucessivas e se dessem as mãos a experiência dos mais velhos e ardor dos mais jovens, na tarefa docente comum em que são dignos rivais (C. Ramos, 59).
“…A arquitectura desde sempre considerada uma arte maior entre as maiores, submeteu-se, a partir de determinado momento histórico, a um exagerado tecniciscmo que acabou por corromper o conceito essencial em que era tida. Passado, porém, o período experimental e o de especulação – falemos claro – a que, durante anos foi submetida esta nova ciência… eis-nos de novo no bom caminho… Verifica-se o regresso consolador da arquitectura ao seio das suas irmãs de leite como arte que é…” (C. Ramos).
Porque acredita nessa rivalidade como energia mobilizadora do seu projecto de escola, Ramos pressiona e/ou orienta um compromisso de múltiplas direcções e sentidos; o espaço que se conquista e a evolução do projecto são obra colectiva pela apropriação e pelo movimento e ideias, permuta de significações e experiências. Em Carlos Ramos a noção de “moderno” é mais visionária ou ideológica que concretizadora; antes a leitura, a receptividade, que exercício continuamente alargado e arriscado na vinculação do conceito à prática arquitectónica. Na conceputalização do “moderno”, reflectir e desenhar enunciam uma sensibilidade polifacetada, dividida entre tradição e história; a universalidade do “novo” e os valores da cultura nacional; a dimensão estética-artística e a dimensão técnica da “nova ciência”. Carlos Ramos assume os limites de um fazer académico e eclético, mas, simultaneamente, liberta o limite para acompanhar o evoluir da ideia de que não é agente criador. Conceber é o “nivelamento” das tendências de outro fazer que já não lhe cabe por formação e vontade. A acção do projecto é, sobretudo, sentir aberto e envolvente de uma práctica que acompanha, reforça e divulga. Carlos Ramos, o patrono, acredita na juventude e este respeita-o; mas a sua escrita é fundamentalmente a atenção, em lavrar de clareiras que se anunciam e orientam pelo discurso de outros.
“…Da análise do nosso trabalho resulta claro a intenção de produzir uma obra que, para além do interesse funcional ou técnico, possua valor plástico…” (F. Távora, 50).
“…A família para quem a casa se destina tem a sua constituição, os seus gostos , as suas capacidades económicas… o terreno tem a sua forma, a sua vegetação, … o vento … em Esposende há construções…do outro lado do rio há granito e xisto… o arquitecto tem a sua formação cultural, plástica e humana (para ele, por exemplo, a casa não é um edifício), conhece o sentido dos termos como organicismo, funcionalistmo, neo-empirismo, cubismo, e, paralelamente, sente por todas as manifestações da arquitectura espontânea do seu país um amor que já vem de longe. Foi deixando falar tudo e todos, num magnifico e imprescindível diálogo… que chegamos a esta realização” (F. Távora, 57).
“…Foi um processo sinuoso e flexível e não um projecto de estirador, foi um método de homem apaixonado e não de frio tecnocrata, foi um desenho de gesto mais do que um desenho no papel…” (F. Távora, 83).
O discurso é límpido, claro, directo, com a simplicidade dos grandes axiomas. Simultaneamente, recolhe-se como que convidando o leitor-autor a enriquecer-lhe, a descobrir-lhe os planos de significação. Clássico, popular, “moderno” abstractizam-se e, enquanto património anónimo, são valências revivificadoras de um novo espaço. Na escrita tranquila, a inquieta personalidade que se abre ao diálogo vivo e constante com a natureza, e com tudo o que nela outros homens sinalizam e inventam. Assim, “o artista e o homem se aproximam de si mesmo, do seu mundo próprio, da sua realidade, que é também a realidade do mundo que se descobre” (Ramos Rosa). Existe quem fale simplismo, convencionalismo, de mau gosto até. Aqui, a “desigualdade” é a tradução, sem preconceitos de modéstia e de redundância, das certezas e das dúvidas que assaltam o percurso da criação. Fernando Távora não se guarda e, abrindo-se, expõe o método. “É afinal, e unicamente, o Homem que está em causa” (F. Távora, 69).
“…Um arquitecto foi chamado a participar da resolução de um problema e fê-lo como julga que se resolvem os problemas, sobretudo os que se referem à elaboração de um projecto: apoiando e promovendo o aumento do número de pessoas a pensá-los responsavelmente, sem diluir a própria responsabilidade. Partiu de ideia apontada na primeira visita, porque considera que não se projecta somando bocados de informação, e que esta serve, se aplicada a uma ideia, para a corrigir e a definir. E que a ideia está no “sítio”, mais do que na cabeça de cada um, para quem souber ver, e por isso pode e deve surgir ao primeiro olhar; outros olhares dele e de outros se irão sobrepondo, e o que nasce simples e linear se vai tornando complexo e próximo do real – verdadeiramente simples…” (A. Siza, 79).
“…Obra que apague o passado está condenada ao apagamento. Quebra-se uma cadeia. Uma obra só é pouco para a próxima, e o que vem de fora, e deve vir, rapidamente e até à simultaneidade, vem para vivificar, não para ocupar (A. Siza, 85).
A arquitectura de “construir” para transformar (não para ocupar) repensa os ambientes como espaços qualitativos, passando de uma defesa passiva do ambiente à ideia de intervenção, isto é, “de uma ideia de paisagem natural à ideia de paisagem histórica” (Gregotti). Na prática do projecto o sujeito investiga – informa – conflitua a partir das condições materiais de produção dos fenómenos, ele próprio fenómeno. Daí que, na projecção, o acto de desenhar vê o lugar procurando-o numa nova ideia de lugar. Não se provoca uma nova arquitectura sem modificações do existente; modificar contém, também, uma noção de permanência. Se o contacto com a realidade confirma, convenciona a função social da arquitectura enquanto sistema de princípios estéticos, “o projecto arquitectónico trata o espaço em si mesmo, como matéria-prima (Schindler). Ainda assim na projecção, a modelação do espaço é, simultaneamente, produto e magma na globalidade fenomenológica do lugar. É nessa medida que, no “projecto arquitectónico”, tão só se questionam sujeito, linguagem e ofício, eles mesmos fenómenos, representação e troca, acto, conhecimento; forma de presença, delírio, morte. Por tarefa ou mester, por destino ou manifesto, estimar-se-à o desenho como ideia de caminho, como oferta ou festo, como gosto ou valor, como norma ou método, a clarificar em persistente amanho do ser – oficina colectiva da razão do tempo, da paisagem histórica.
Se o habitar, como condição do construir, é a revelação do ser no mundo, a arquitectura – o espaço – porque realidade vivente, é a revelação do lugar em procurada essência do habitar.
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…Indispensável é que, sem menosprezar toda a lição do exterior, se conheça integralmente toda a nossa realidade interior. Seguem caminho errado, igualmente errado, os que preconizam o retorno a estilos que já foram ou os que, pelo figurino da moda, pretendem criar em Portugal uma Arquitectura e um Urbanismo moderno; qualquer destas atitudes revela um tão perigoso como inútil diletantismo plástico que em nada contribui para a realização do fim em vista porque desvia essas manifestações da sua realidade envolvente. O “estilo” não conta; conta, sim, a relação entre a obra e a vida; o estilo é resultado dessa relação…” (F. Távora, 53).
“…Significa também que é necessário enunciar proposições teóricas claras se se pretende percorrer, sem muitos erros, a estrada na experiência…” (E. Rogers, 43).
Na dialéctica da cultura arquitectónica contemporânea, pluralidade da ideia de projecção suscita, genericamente, duas grandes atitudes. A primeira explica a situação actual a partir da dicotomia modernidade – pós modernidade, enredando a poética do desenho no terreno do ficcionismo de veia estilista-figurativa-cenográfica-populista; voo rasante na leitura da história que remete a invenção para a falsificação disciplinar no manuseamento da forma e do espaço; apaziguamento dos conflitos entre história-tradição-moderno, manifesto equívoco dos valores da diferença que manipula a significação colectiva, e daí faz decorrer o consenso público, produção e actividade artística. A segunda, insistindo numa leitura positiva do significado da “tradição” e do “novo”, alimenta o sentido artístico na vontade propositiva da prática disciplinar, e, simultaneamente, entende a ordem na individualidade do gesto na consideração material da projecção, onde uso, construção e forma se pretendem integrados; valoriza os caminhos individuais e subjectivos para a definição da forma “caso a caso”, sem com isso subvalorizar o conhecimento como inteligência prática do sentido oficinal do método – ideia de projecto que, na distância à realidade, orienta e provoca o espaço de invenção; aceita a fragmentação dos sistemas teóricos e da cultura universal, como condição de um novo modo de ser da reflexão teórica, de um novo relacionamento entre teoria e método, e de um novo sentido de resistência e de projecto na procura e na defesa da cultura do lugar.
Na marcha do tempo, (pese a diversidade de intenção e de qualidade na obra produzida) do “trabalho portuense” transparece, ainda, essa tradição oficinal do desenho que, ligando algumas gerações de arquitectos, permite considerá-lo como fenómeno conexo, também descontínuo. E na descontinuidade gera a possibilidade de transmissão do sentir e do fazer de um tempo que, embora sensível ao que pré-existe, se lhe acrescenta, sem obrigatoriedade o negar ou reproduzir. O espírito da escola ou tendência nasce aí, com esse saber empírico que investigado ou teorizado, comunicado à e pela obra, isto é, são esses resíduos que, na aproximação do antigo e do novo, referenciam a evolução da ideia e, simultaneamente, marcam o acesso à verdade e ao rigor do comportamento projectado. Numa evolução assim concebida, sem elaboração teórica explícita, sem passagem das coisas arquitectónicas ao articulado das ideias, os princípios deslocam-se para o desenho; e na meia verdade do desenho – instrumento único de expressão – os princípios tornam-se esquematismo formal, em que a qualidade é a fidelidade à prática “modelo”.
Nas incertezas da situação actual, tal forma de proceder possibilita raros momentos de identificação da ideia, do seu processo, da sua revisão; e sem o outro lado do desenho, reduz-se o papel da razão no discurso arquitectónico, no acerto e na ordem do terreno em que movem os seus próprios passos.
Mas as deformações da expressão de tendência são também esforço positivo – reconhecimento do valor disciplinar do desenho, do discurso do desenho como capacidade poética de aproximação e transformação do real; vontade materializadora do desenho em que a linguagem e construção, dialogando, se desenvolvem, se fundamentam, se complementam na estruturação e na significação do espaço; valorização do desenho na crítica ao abstracionismo e à ortodoxia, procurando no contexto da intervenção parâmetros geradores de forma; aceitação de elementos figurativos e enriquecimento iconográfico da “tradição do novo”, no conhecimento alargado da história, entendia como ordem e como memória de desenho outro.
Ainda assim, por circunstância ou estabilização necessária, o produto da “escola do Porto” caracteriza-se por um envelhecimento prematura do gosto pelo detalhe e e pelo particular da “nossa realidade interior”, isto é, à degradação de instrumentos e processos, a “estrada da experiência” desliza para “tão perigosos como inútil diletantismo plástico” que fabrica o “estilo” da obra virando-se à vida.
Ainda assim, no âmbito da pluralidade da arquitectura contemporânea, a “escola do Porto”, o trabalho recente traça um percurso genuíno do desenho, busca (mais individual que colectiva) de caminhos para a definição de forma, considerando a “arquitectura como fenómeno organizador do espaço, entre as escalas do edifício e da cidade de que não são indissociáveis, para redução, a escala do objecto, ou por ampliação, a escala do território. Porém, esta “ideia generalista do desenho”, afastada de realidade, confrontada nos seus próprios limites, orienta-se mais para a “produção da memória” que para a “produção da história, isto é, nas dúvidas dos tempos, academizada ou deformada a ideia, a esperança (a vontade e o projecto) do desenho divide-se entre a “falsificação disciplinar”, abuso ecletista do sinal, e a “defesa da cultura do lugar”. Se “a formação generalista do desenho” deixa a reserva necessária à vigilância prática da invenção, esta refugia-se na sublimação da sua formalização; na exaltação da sua pretensa autoridade, à margem por condição crítica.
O resultado é ambíguo, por vezes híbrido. A breve prazo, resta-lhe a escolha necessária – ecletismo ou tradição.
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Nos últimos anos 70, em época de revisão ideológica (diálogo da razão e da dialéctica da história) o curso de arquitectura resiste pela experiência acumulada, pelo património construído; salvaguarda da metamorfose e da alteridade da ideia de desenho e de escola que o anima, querem-lhe sonâmbula imagem de provinciana tecnocracia, imposta do exterior. A experiência SAAL é referência próxima. Dos valores e das insuficiências constatadas no exercício (mais pedagógicos que didáctico) que a acompanhou, objectivo vira-se, para a estabilização do conceito de globalidade do desenho numa orgânica de curso, e numa prática baseada na ligação ao exterior; também a recuperação do espaço de escola como local de aprendizagem e de produção de conhecimentos, ou centro animador da vida da comunidade. Por limite, por vício, por reserva crítica relativamente ao sentido da mudança, o Curso e a tendência fecham-se dentro no exercício e na elaboração; segurando a interrogação alguns riscos de individualismo marginal e desculpabilizador da consciência e da prática. Para (as) segurar o desafio, a Proposta de Bases Gerais é a forma possível de reconhecimento dos princípios, da ética da mensagem, e da esperança disciplinar.
Hoje, a Faculdade de Arquitectura manifesta-se continuadora de um projecto disciplinar e de ensino aberto na ESBAP. A sua orgânica de curso assenta na tendência centralizadora da prática do projecto, reflexo da supremacia do desenho na síntese globalizadora da diversidade de materiais intervenientes no processo de concepção; promove a valorização da história e da teoria da arquitectura, no processo de sedimentação do território disciplinar, como a construção e o urbanismo. A criação da Faculdade de Arquitectura gera condições subjectivas para a renovação da qualidade de ensino, e para a qualificação da matéria arquitectónica, na medida em que, a diversidade de colectivos nela intervenientes assumir o movimento de ideias, o uso das ideias da didáctica do projecto, o projecto para tornar a sofrer a realidade, como “utopia concreta”, “princípio de esperança” (Gregotti).
Mas na transição, a nova etapa arrastará, no mínimo na sua evolução próxima, o empirismo tão dominante no actual processo pedagógico, tão dominador da personalidade da invenção, tão responsável pelo design acrítico e de catálogo, caracterizador do que se vem fazendo.
Sem pudores maniqueístas, uma observação aberta, não voluntarista ou anestésica, constará que os percursos, se “generalistas” de princípio ou de programa, são generalizadores do esqueleto da concepção e das respostas. E são-no, argumentamos, não apenas por dificuldades da acção formativas, mas, também, por adulteração do princípio na globalidade do desenho, e, por adição, o esvaziamento da razão teórica no trabalho e na expressão do conceito. A realidade e a construção que são a justificação e a materialização da sensibilidade discursiva que faz o desenho, refugiam-se nessa área fosca e tosca do que as coisas são ou querem ser. Entre a realidade e construção do desenho eleva-se um vazio disponível; vazio que acelera o espaço da incerteza, incerteza não clarificada, uma vez que não isola instrumentos e/ou hipóteses de trabalho como alternativas aos mostruários de ocasião; disponibilidade que, na ausência da investigação ou na subvalorização de ferramentas essenciais – território, método, crítica, técnica, interdisciplinaridade – se preenche desse “difuso irracionalismo que ignora a transmissibilidade é e foi sempre condição necessária para toda a produção cultural e que a arte se produz e se goza no encontro entre sentimento e razão” (J. L. Mateo) .
Ficará ainda a sugestão (não menos verdadeira, por efeito) de que na escola se trabalha para a formação de uma elite urbana e aristocratizante, construída numa área de franja. Não que isso lhe baste no espaço que lhe consentem, mas, no que lhe sobra pelo isolamento, pela demissão, pelo carreirismo é, também, a que lhe satisfaz pela cumplicidade e pelo privilégio. Digamos que já não chegam alguns “recrutas” (porventura os mesmo) para qualificar uma prática; para justificar uma eventual expressão de tendência que ultrapasse a estreiteza de limites de uma nova academia, urge ver e amadurecer na globalidade da cena, do tempo e dos autores.
O que de momento é um erro (talvez útil e inevitável), a persistir no tempo, será puro diletantismo negador da própria tarefa de escola, por arrasto, desagregador da integridade da arquitectura na ausência de relações reais com “o mundo das necessidades, da produção, do crescimento urbano, da significação colectiva, da própria tradição do oficio disciplinar” (Gregotti).
A breve prazo, resta-lhe a escolha necessária – ecletismo ou tradição.
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Na evolução da escrita, à questão que nos interessa – o ensino da arquitectura ou a negação do absurdo da luz total do desenho puro – o tema terá faces diversas, a saber: reconhecimento da escola e da arquitectura na metamorfose e na alteridade ideológica e cultural do lugar que a proporciona e a motiva, deslocação da “disciplina de retórica” para a disciplina da construção e modelação do espaço; recusa do saber histórico como medida absoluta, como reconciliação com o passado, como “sombra” da projecção, ou como forma imperialista da validação fundamentalista da acção que decorre, pela reivindicação da necessidade da presença do saber histórico, na perspectiva de que, o arquitecto pode e deve trabalhar, lutar para que a história, nos dois sentidos da palavra, seja outra (J. Le Goff); contestar o desenho para implantar o âmbito disciplinar de desenho, única possibilidade de encontro do rigor do métodos e da dimensão estética na praxis do projecto, e na possibilidade epistemológica da interdisciplinaridade; recuperação do sentido oficinal e laboratorial das técnicas de modelação do espaço, recusando o “artesanato” da colagem ecleticista; profissionalização da escola, reconhecendo na e pela investigação a possibilidade de prática científica do desenho, e daí, criando condições mínimas para praticabilidade de um sistema pedagógico e didáctico, em que os princípios e/ou os fragmentos de teoria se tornem regras e métodos transmissíveis, hipóteses de trabalho, em lugar de imagens e modelos mumificáveis.
Associando a ideia de prática de ciência ao processo do desenho, pensamos, exclusivamente, na construção de uma metodologia, de uma linguagem, cuja sintaxe tenha o poder de saber instruir sobre as relações internas e externas do fenómeno arquitectónico.
Associando aquela ideia ao conceito da globalidade do desenho, valerá a pena reflectir no sentido de saber – se a “formação generalista do desenho”, na sua voracidade anti-especialismo, não esquece as especialidades do desenho, se “a formação generalista do desenho”, tal como vem sendo entendida e praticada, não esquece a mensagem do princípio, e em contra partida, o coloca num plano ético de “bem fazer, plano que não lhe cabe por impensável exclusividade; se “a formação generalista do desenhos” não faz do princípio uma espécie de “desenho iluminado” que, reconhecendo no objecto arquitectónico força demiúrgica definidora do desenho da cidade, da paisagem urbana, do ambiente, nos coloca bem mais perto de algumas ideias de Gropius e sectores do Movimento Moderno, e, simultaneamente, nos distancia da herança (que nos está próxima) de alguns sectores do realismo europeu dos anos 50-60.
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É certo que um projecto, embora apenas defina uma disciplina, uma orientação, pode dentro de certos limites, ser pormenorizada por meio de desenhos e de memórias, mas como todos sabemos, não se pode detalhar previamente, sem se correr o risco de nunca mais se poder realizar as obras. E quem constrói sabe também que há casos imprevisíveis e outros, embora previstos, que só no decorrer das obras se podem definir com o necessário rigor (Pardal Monteiro).
Apesar de tudo, “aludindo a futura necessidade de re-sintetizar princípios e elementos derivado de diversas origens e de diversos sectores ideológicos, devemos admitir que este encontro, ao nível de um autêntico diálogo, ainda não ocorreu. Este é o motivo pelo qual nos encontramos numa espécie de trégua, na qual já não podemos exercitar mais o dogmatismo de uma só verdade, e na qual somos ainda incapazes de parar o cepticismo em que nos temos encontrado (P. Ricoeur).
“Se a experiência de observar explica a complexidade do desenho”, “se a experiência de ensinar explica a clareza do desenho”, a expressão clara da complexidade do desenho é um acto de cognoscibilidade; descoberta do interdito pelo culto da aprendizagem da inteligência, na medida em que a serenidade do desenho explicar a experiência de resistir, e, a solidez do desenho explicar a experiência de construir.
A breve prazo, resta a escolha necessária – ecletismo ou tradição.
Em reserva, Minerva está pensativa.