Paulo Varela Gomes (1952-2016)
Para citação: GOMES, Paulo Varela – Per forza di levare – Estudo Prévio 20. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2022, p. 103-109. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/20.14 (ed. original Architécti nº3, dezembro 1989). Publicado a partir de RODRIGUES, José Manuel (ed.) – Teoria e crítica de arquitectura século XX. Lisboa: OA-SRS, Caleidoscópio, 2010, p. 833-837.
Per forza di levare
“As disciplinas ligadas à Arquitectura possuem o conhecimento como se este fosse desde a origem imanente aos actos” (Platão).
Produzir e conhecer são a mesma operação para as disciplinas que, pela acção, criam corpos que antes não existiam tornando-se deste modo, segundo Platão, mais nobres que as artes da Mimese, apenas reprodutoras de conhecimentos que lhes são exteriores. A arquitectura (ou a carpintaria) situam-se por essa razão, acima da pintura ou da escultura, embora ainda abaixo da música, arte que já nada tem que ver com a mão.
Platão é evidentemente a primeira referência filosófica que deve ser invocada a propósito da arquitectura de Álvaro Siza Vieira. Por duas ordens de razões que, na sua confluência, desenham uma atitude projectual rigorosamente peculiar:
- Em primeiro lugar, porque o purismo e a austeridade que habitualmente se referem ao falar desta arquitectura, sendo características propriamente formais e traços de uma polémica contra outras correntes de arquitectura contemporânea, constituem primordialmente uma atitude de tábua rasa que visa restituir a arquitectura ao seu lugar – esse lugar, diz Platão, só pode ser de facto o primeiro lugar porque o conhecimento arquitectónico é imanente ao seu processo produtivo. Antes de haver edifício não há conhecimento arquitectónico, este é essencialmente diverso de outros conhecimentos e talvez mesmo anterior a eles no sentido ontológico.
- Em segundo lugar a arquitectura de Siza é obrigada, nesta procura das origens, a proceder por eliminação (e por hostilidade a) outras formas de arte e de conhecimento. É uma arquitectura tendencialmente autista.
Aqui há anos, Hubert Damisch perguntava: “Que é feito da arquitectura como coisa do espírito?”
A pergunta – também de intuitos polémicos – tem conotações ainda platónicas. E parece conter uma resposta implícita a uma outra pergunta – esta muito conhecida – formulada por Nietzsche à margem dos seus escritos: “Como (ou onde) classificar a arquitectura?” Damisch parece responder: “No espírito”. Mas inquirindo que é feito desse lugar da arquitectura, dá-nos a entender que o problema da classificação da disciplina continua em aberto. Se a arquitectura é cosa mentale, como pode ela, ao mesmo tempo, existir de facto, no mundo real e nos seus compromissos?
Talvez valha a pena, para podermos localizar Siza Vieira e esta questão, recuar quatrocentos anos – e observar brevemente o caso de um outro arquitecto português que enfrentou problemas semelhantes aos de hoje no quadro de uma cultura completamente diferente: trata-se de António Rodrigues, arquitecto o rei D. Sebastião, autor do manuscrito de um Tratado de Arquitectura composto por volta de 1570.
O livro de António Rodrigues, homem formado em arquitectura de fortificações, é essencialmente um tratado de geometria construtiva. Dele estão ausentes tanto a teoria das Ordens (o que é surpreendente para a época), como outros aspectos do vitruvianismo. Atravessa-se nessa época em Portugal um período de rescaldo da cultura humanista em que a arquitectura se tornara de facto uma Humanidade, cultivada por reis, príncipes e nobres ou clérigos ilustrados. A cultura clássica, exibida neste contexto era, bem entendido, de importação, cosmopolita e anti-manuelina (ou seja, anti-tradicional) e sempre mesclada com a cultura literária.
O propósito fundamental do Tratado de António Rodrigues foi o de ignorar ostensivamente este contexto cultural e formular as bases da autonomia da arquitectura relativamente à cultura literária – e também (o que é particularmente importante) ao vitruvianismo no seu aspecto mais literaturizado no Renascimento (a teoria das Ordens) enquanto cultura estrangeira e estranha à arquitectura.
António Rodrigues encara a arquitectura como construção de um mundo, de um lugar próprio. O facto desse mundo ser semelhante ao mundo cósmico (através de vários apontamentos de carácter astrológico e cosmológicos presentes no Tratado), sendo conhecida caraterística de episteme renascentista, é particularmente significativo desta postura arquetípica que dá a arquitectura como origem de todo o conhecimento enquanto imanente à acção do homem no mundo.
O arquitecto de D. Sebastião reatava, deste modo, um laço obscuro com os arquitectos e pedreiros medievais (e os manuelinos, em particular os Arrudas), cujo hermetismo cultural os tornava uma espécie de iniciados de um culto próprio: a construção. Mas, ao mesmo tempo, António Rodrigues humanizava essa cultura, procurava que ela, na sua autonomia, pudesse ser partilhada pelas elites da época enquanto modelo da cultura em geral.
A situação em que opera hoje Siza é bem diversa desta. Mas a preocupação fundamental que este manifesta é a mesma de António Rodrigues: voltar ao princípio. É já de si significativo que este princípio seja para Siza também o princípio da arquitectura moderna (Loos, o Corbusier). António Rodrigues não tinha princípio onde voltar, que não fosse ao princípio do mundo. Siza parte do pressuposto que é preciso procurar os princípios no início da nova arquitectura. Não se trata de revivalismo. Trata-se da clara compreensão de que o princípio da arquitectura é uma questão de lugar e não de história.
A origem da arquitectura não está na História, contrariamente ao que defendeu todo o classicismo apostado em subalternizar o conhecimento arquitectónico relativamente ao mito literário ou, na nossa época, relativamente à ciência histórica. Pelo contrário: a origem da História é que está na arquitectura – e não é possível hoje mostrá-lo sem regressar à mesma atitude de estaca-zero-da-História que assumiram os primeiros modernistas.
Segundo Argan, a aposta filosófica principal da Bauhaus teria sido a de que, sem a arquitectura, é impossível “conceber o Homem fora da sua natureza originária, no seu histórico, na função que o torna membro de uma sociedade”.
Aquilo que António Rodrigues, homem da Renascença, procurava no Cosmos e nas suas leis, aquilo que Gropius, homem do Modernismo (ou seja, do neoclassicismo radical), procurava nos volumes primordiais, Siza, homem de hoje, procura nas raízes da arquitectura moderna.
Mas nem António Rodrigues buscava uma arquitectura simbólica, nem Gropius um estilo cubista, nem Siza quer encontrar um estilo neo-moderno. Todos eles procuravam e procuram, antes, um lugar.
O procedimento de Siza é todavia, neste contexto, muito específico. A ideia de Loos de que a arquitectura só existe nos túmulos é a concepção desesperada de quem sente que é preciso evacuar da arquitectura todas as referências (incluindo a qualquer utilidade prática) para poder reencontrá-la. Esta ideia foi retomada por um arquitecto contemporâneo – Aldo Rossi – que ao túmulo de Loos acrescentou o Monumento (e a prisão, o hospital, a escola), edifícios em que a ordem construtiva abstracta se sobrepõe programaticamente a quaisquer ordens ou “imperativos” sociológicos, funcionais ou geográfico-culturais.
Esta posição polémica assenta em pressupostos de carácter político assaz características da década de 70 mas vem também na continuidade do neoclassicismo radical de Loos, cujas afinidades com Boullée são evidentes.
A arquitectura de Siza (particularmente a mais recente) dá mostras de uma outra posição (mais difícil e mais consequente): a origem da arquitectura não está no programa mas nela própria; é intrínseca ao próprio acto de projectar.
Para discutir esta ideia, volto brevemente a outro exemplo do classicismo arquitectónico: a evolução do conceito de solidez.
Até à segunda metade do século XVIII, a solidez de um edifício não era concebida ou avaliada do modo como seria hoje. Ainda em 1777, o teórico luso-brasileiro Matias Ayres escreveu sobre o assunto algumas páginas brilhantes e absolutamente exemplares da velha maneira renascentista de abordar o problema: um edifício sólido não é aquele que pode suportar tecnicamente as vicissitudes do tempo e da geografia; solidez arquitectónica é um conceito simultaneamente técnico e por assim dizer artístico que se avalia não à luz de performances práticas, mas da cultura arquitectónica, com referência a edifícios já construídos, ou seja ao corpus da arquitectura. Como escreve o tradutor de Vitrúvio, Danielle Barbaro, em 1556: “Em Arquitectura não basta que as coisas sejam verdadeiras; é ainda necessário que sejam conformes”, ou seja, coerentes com a arquitectura na sua especificidade.
Só depois de cerca de 1740 a solidez começou a ser encarada como uma questão funcional, aparecendo a referência coeva ao gótico enquanto expressão dessa procura de princípios legitimadores da nova teoria fora da cultura arquitectónica clássica. Depois, no século XIX, vieram todas as teorias sobre o ferro e o vidro, mais tarde as do betão, do plástico, do alumínio, do aço, da electrónica…
Os edifícios mais recentes de Siza (desde a casa em Ovar, por exemplo) não procuravam nada fora da arquitectura. São belos porque também o eram as obras de Loos, de Corbusier, de Gropius, de Aalto…
A utilidade arquitectónica não justifica a forma, nem o investimento formal é um suplemento estético da utilidade. O funcionalismo surge como uma ideologia que destitui a arquitectura, tornando-a dependente de algo que lhe é estranho: não a utilidade prática, bem entendido, mas a ideia de que os imperativos funcionais podem ser considerados separadamente da maneira arquitectónica de os resolver.
O pensamento arquitectónico ou é topológico ou não é; utilidade e beleza só podem ser concebidos a partir de um lugar (topologia é a sabedoria do lugar). Que lugar é este?
Diferentemente da obra de arte que é um lugar no sentido francasteliano (ou seja, um lugar simbólico, com características próprias, onde confluem e se anulam várias influências ou textos, como diria Kristeva), as obras de arquitectura são lugares ao mesmo tempo reais e simbólicos; além disso, ocupam e transformam outros lugares, igualmente pertencentes ao mundo real e ao mundo das ideologias e da cultura.
Como tendem a provar as teorias e as artes da memória, nenhum conhecimento é fixável sem a arquitecturação de um lugar, sem uma topologia de objectos reais que permitem fixar a memória. Mesmo que esses objectos pertençam à natureza (árvores, rochas, etc.), a operação de lhes dar uma ordem à qual se possa agarra o que se quer gravar na memória é sempre uma operação arquitectónica. O primeiro gesto humano é o de identificar o lugar. Sem esse gesto não existe identidade do Sujeito, ou possibilidade de Logos. Nenhum lugar natural existe como lugar (conceputal, lugar-para-mim) sem uma arquitectura.
O modo como um objecto arquitectónico estabelece o lugar (e se estabelece no lugar, pela mesma operação) pode talvez ser esquematizado com a ajuda de algumas categorias operativas:
a) A Monumentalidade, quer dizer, a relação simbólica do edifício com a sua envolvência física. A arquitectura à máquina de racionalidade, cria consciência, memória, histórias, símbolos.
b) A Ipseidade, ou seja, a relação entre o objecto arquitectónico e a cultura arquitectónica em geral.
Estas são as categorias que definem a arquitectura enquanto lugar originário.
Mas a história da arquitectura ocidental obriga a considerar-se também em relação de subserviência do objecto arquitectónico em relação aos lugares (reais/simbólicos) onde se estabelece esta relação (genius locci) pode compreender-se de acordo com três outras categorias:
c) O Sítio (envolvência imediata);
d) O Território (envolvência regional);
e) A Tradição (hábitos e culturas arquitectónicas locais).
Já foi notado com alguma surpresa e desconsolo (por Nuno Portas) que a arquitectura de Siza Vieira vem abandonando desde meados dos anos 70 a referência a sítios, territórios e tradições, fortificando-se progressivamente na sua Monumentalidade e Ipseidade.
Não há razão para surpresas e desânimos. De facto, a referência ao genius locci, encarada a partir de certa altura pela cultura arquitectónica moderna (designadamente por Kenneth Frampton) como uma espécie de panaceia para a degradação das referências tradicionais da cidade, do território e da própria arquitectura, é uma posição defensiva, destituidora da autonomia da arquitectura. Além disso, é particularmente vulnerável na nossa época de intensa internacionalização cultural e imagética e de ascensão de correntes arquitectónicas apostadas em retornar às referências clássicas da arquitectura ou às preocupações com a sua beleza formal.
Àqueles que proclamam a autonomia da beleza arquitectónica (confundindo isso com a autonomia da arquitectura, que é coisa muito diversa) é difícil responder com o sítio, e a posição dita pós-moderna de desinvestir o lugar em favor do simbolismo, a arquitectura de Siza volta-se para dentro, para o seu lugar, que é o lugar da arquitectura.
O empenhamento cultural e arquitectónico de Siza é, deste modo, uma atitude característica dos períodos da revolução na história da arquitectura – comparável, na tradição portuguesa, àqueles que deram origem a edifícios paradigmáticos (no sentido forte do termo) como a igreja de São João da Foz, no Porto, iniciada em 1527, a igreja da Conceição de Tomar (fundada talvez em 1550), a igreja de Santa Engrácia em Lisboa (iniciada em 1682).
A história da fundação destes três templos identifica-os como novos lugares onde a monumentalidade e a ipseidade arquitectónicas afectam toda a envolvência construída, toda a paisagem circundante e as ideologias e mentalidades da época. Réplica de São Pedro de Roma num dos projectos de Rafael, situada na margem mais ocidental da cristindade (no caso da igreja do Porto), mausoléu real dominando a vila de Tomar do alto de um monte e da sua pura linguagem clássica indiferente ao passado (Conceição), “fortaleza da fé”, como lhe chamou o Padre António Vieira, e descomunal símbolo da vontade nacionalistas portuguesa e da vontade de mudança arquitectónica (Santa Engrácia), a arquitectura destes três edifícios apresenta-se como aparelho de racionalização e simbolismo pela soberba passividade das suas características próprias.
Na tradição platónica, Siza parece compreender que a via destas monumentalidade e ipseidade só pode ser, nos nossos dias, a forza di levare com que Miguel Ângelo identificava a escultura por oposição à pintura.
O primeiro impulso da recente arquitectura siziana é o de não fazer. Numa interessante observação, H. Damisch escreveu que há uma lei do extremismo inerente à arquitectura que a faz tender para o descontrolo e a catástrofe para que tende é a de uma implosão por fraccionamente e minimalização ou a de uma explosão controlada tendente à desordem (a Moradia em Haia, por exemplo).
Sinto por vezes que Siza está, em cada projecto, à beira de deixar de projectar. Mas, de intervenção em intervenção, o projecto ressurge: os novos pavilhões da Faculdade de Arquitectura do Porto são volumes sujeitos a golpes bruscos do machado do conceito, volumes fracturados que se situam na margem última da desordem ou na ruína que constantemente denegam (negam para afirmar) pela sua evanescência branca. É esta tensão à beira da catástrofe que lhes dá a sua extraordinária força enquanto sintomas do que lá não pode estar, enquanto restos afirmativos da ruína da arquitectura.
Siza afirma o primado ontológico e tectónico da arquitectura contra todas as tentações: contra o design, afirma o desenho, uma arquitectura que se recusa a ser produto de mercado ou sujeita ao marketing. A Faculdade de Arquitectura do Porto não é um produto-bem-apresentado… Contra a expressão e o simbolismo (a versão literária da arquitectura), opta pela secura da razão arquitectónica: contra o sítio, o território e tradição (contra a sociologia e o geografismo), escolhe o monumento virado para si mesmo; e finalmente, contra a funcionalidade como ideologia (contra o empirismo), concebe espaços comprimidos, escadas (e escalas) difíceis, fragilidades materiais.
A arquitectura de Siza evacua de si todas as referências não arquitectónicas numa obsessiva persistência polémica. Este impulso de libertar a essência do acto e do lugar arquitectónico é extremamente arriscado – e não é certo que não resulte por vezes numa metafísica do projecto que dá ver a aporia essencial da arquitectura: a ideia arquitectónica tem que degradar.-se no real para ser possível enquanto arquitectura, mas ao fazê-lo cede às insistências daquilo que já não é arquitectura (sejam sociologia, a literatura ou as Artes). Recusando ou adiando por subtracção de referências essa degradação. Siza está mesmo à beira de fazer aquilo que Hegel considerava ser o anúncio da morte da Arte (como observou recentemente Cerveira Pinto): transformar- em “puro objecto de reflexão”. No caso da arquitectura, isso é a negação da sua especificidade. Os extremos, verdadeiramente, tocam-se…
Não sei, todavia, se há outro caminho mais seguro para impor essa impossível evidência da arquitectura como lugar originário. De facto, talvez seja necessário fazer cada obra como se fosse a primeira depois do Dilúvio. É que o mundo – e a arquitectura que lhe da lugar – estão demasiado velhos.