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Ana Tostões (1959- )

 

Para citação: TOSTÕES, Ana – Portugal: Arquitectura do Século XX. Estudo Prévio 20. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2022, p. 112-117. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/20.16 (ed. original Jornal Arquitectos n.º 185, agosto de 1998). Publicado a partir de RODRIGUES, José Manuel (ed.) – Teoria e crítica de arquitectura século XX. Lisboa: OA-SRS, Caleidoscópio, 2010, p. 974-978.

Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

Portugal: Arquitectura do Século XX

 

 

1. Situação

A exposição (e catálogo) Portugal: Arquitectura do século XX que será apresentado em Portugal no Centro de Exposições do Centro Cultural de Belém entre 25 de Junho e 25 de Agosto deste ano, integra-se no programa Deutsche Architektur Museum, sob a direção de Wilfried Wang, tem vindo a promover, reflectindo por altura do grande acontecimento cultural que representa a Feira do Livro de Frankfurt a arquitectura de cada um dos países tema, enriquecendo assim a leitura da cultura de cada país. Depois da Áustria, que abriu o ciclo, foi a vez da Irlanda e em 1997 de Portugal. Seguem-se a Suécia, Suíça e Grécia. Finalmente, a Alemanha fechará este conjunto de registo da produção arquitectónica europeia do século, que articula sensivelmente a relação entre centros de produção de cultura dominante e periferias, que recebem os modelos culturais de referência como sinal de uma atenta programação museológica que confirma a vitalidade do Museu Alemão de Arquitectura e o qualificado esforço do seu director e colaboradores na divulgação da arquitectura de raiz europeia e da sua história.

Depois de uma longa travessia do deserto a arquitectura portuguesa tem sido objecto de alguma atenção e divulgação internacional nos últimos anos. Claro que são diversas as razões que terão suscitado este recente interesse internacional como nunca antes aconteceu. Sucedem-se números monográficos das mais prestigiadas revistas, exposições, prémios internacionais, concursos, com destaque para a dimensão das “peregrinações” às obras de Álvaro Siza, o incontornável arquitecto português cuja obra é mais atentamente seguida pelos circuitos internacionais e que inteligentemente, isto é, sem perder a sua genuinidade, permitiu a consumação de uma singular internacionalização, arrastando consigo o nome de Portugal e suscitando o interesse por outros autores contemporâneos.

Naturalmente que as mudanças políticas ocorridas com a passagem da ditadura à democracia terão que ver com esta situação mas isso deve-se certamente ao facto de que a arquitectura produzida recentemente tem sido acolhida internacionalmente como uma contribuição autêntica e com personalidade própria. Na verdade, a mudança pode não ter ocorrido tanto na arquitectura portuguesa mas mais no modelo cultural de referência. Com efeito, parece claro hoje o facto de os centros de produção dominante terem começado a acolher com interesse produtos arquitectónicos menos habituais ao olhar e à informação destes circuitos. A tudo isto haverá certamente que acrescentar outros factores como a mobilidade das pessoas e sobretudo a intensificação das redes de informação que integram o conceito de globalização e que de algum modo tendem a atenuar a distância e mesmo os valores entre centro e periferia.

Pelo que foi dito, a proposta de apresentar internacionalmente a produção arquitectónica do século em Portugal constitui um estimulante desafio. Em primeiro lugar porque foi a possibilidade de registar com algum fôlego um percurso de longa duração quando apenas se divulgava e conhecia o ponto de chegada. Em segundo lugar porque revelou incontornavelmente a confirmação da qualidade dessa produção. Trabalho necessário em situação de final de século, permite fixar a nossa contemporaneidade homenageando um passado próximo, dos pioneiros da modernidade e de um caminho feito de avanços e recuos, de experiência e conquistas, de rasgos mas sobretudo de maior acento na continuidade.

A localização periférica de Portugal, pequeno país do extremo ocidental e meridional da Europa, tem contribuído para moldar o percurso da arquitectura portuguesa e criar uma situação de final de século com algum impacte no quadro da produção internacional. Situação periférica, desfasamento temporal e atraso tecnológico, têm sido referidos como factores determinantes na definição da especificidade da arquitectura portuguesa baseada na vontade de criar metodologias seguras, situação patente nos autores mais significativos das últimas décadas. Por isso podemos dizer que esta produção, à margem, mas não por isso menos qualificada, se afirma através de um percurso com alguma solidez e continuidade, mais permeável a influências externas do que ele próprio influenciador. Essa consistência advirá muito certamente do facto de se tratar de uma arquitectura sustentada com “coisas reais”, construída a partir da resposta às múltiplas implicações de programas, orçamentos e sítios, e às vontades de criadores e encomendadores, que se constitui como uma verdadeira tradição de pragmatismo por vezes mais determinante do que a própria tradição cultural. Por outras palavras, pode afirmar-se que o grosso da produção qualificada tem revelado uma exigência de realismo construtivo, de sentido prático na resolução de programas ou na viabilidade concreta dos projectos singular ou genuína no quadro europeu.

 

2. Métodos e objectivos

Esta mostra permitiu reunir um acervo de mais de uma centena de obras decorrentes de um programa estruturado em rede cruzada cronológica e programática que constituem uma síntese actualizada da arquitectura portuguesa. Apontando para uma visão panorâmica recusa-se a pretensão de recompor um panorama ideologicamente unitário. Trata-se de reavaliar a arquitectura de autor no quadro de uma amostragem eclética, reflexo do pluralismo que caracteriza a produção ao longo de um século. Defende-se uma abordagem com a responsabilidade de autor à luz da historiografia da arte, em particular da história da arquitectura contemporânea. Entendemos que deste modo se poderá caracterizar com clareza a produção arquitectónica segundo perspectivas metodológica e cientificamente globalizantes. Não se procura produzir um catálogo ou compêndio de obras pelo contrário, pretende-se caracterizar uma produção enquadrando num todo as situações marcantes, aquelas que de um modo incontornável marcam a forma do tempo. O tema é a arquitectura portuguesa do século XX e não só a arquitectura dita “moderna” produzida em Portugal. O universo é o da arquitectura estendida à cidade e não reduzida ao objecto. Traçar o percurso da arquitectura portuguesa do século XX, valorizando a sua originalidade e especificidade, é o objectivo.

A base metodológica assenta numa periodização definidora do contexto em que as obras foram produzidas, analisadas à luz das tipologias ou temas programáticos dominantes, permitindo definir de um modo estruturado e afastado da aleatoriedade de uma escolha casual os conteúdos da exposição. As obras que integram cada tempo reflectem a leitura do século enquanto tempo de longa duração e confirmam a opção autoral de valorizar as obras independentemente dos autores. Na verdade tratou-se da fixação de obras e não de autores em que o fio serve para registar as construções que constroem a história. Do mesmo modo, no catálogo, incorporando monografias, ensaios temáticos e cronológicos dos especialistas nas diversas matérias que se constituem como importante suporte técnico da mostra, procurou-se esboçar um balanço crítico da produção arquitectónica do século XX em Portugal e uma primeira obra de referência na fixação de uma síntese heterodoxa da nossa contemporaneidade.

 

3. Estrutura e conteúdos

Assumidos como se disse na condição de risco autoral, consideram-se sete períodos bem como também sete os temas programáticos dominantes no quadro da história da arquitectura em Portugal no século XX.

Os contornos do primeiro tempo desenham-se entre 1900 e 1921 destacando-se a questão da casa portuguesa e dos novos programas. A arquitectura do século definiu-se entre um funcionalismo e um gosto instituído que se adequava imageticamente ao programa. Dois vectores, patentes nas duas obras que se apresentavam do Concurso para o Pavilhão de Portugal na Exposição Universal de Paris (1900), assinalavam os limites desta prática. Por um lado, nacionalismo, portuguesismo e revivalismo, constituíam temas de debate na cultura portuguesa destacando-se o magistério de Raul Lino e a questão da identidade nacional como tema recorrente. Por outro lado, a afirmação de um certo cosmopolitismo conformava a influência das Beaux-Arts divulgada pelos bolseiros parisienses (Ventura Terra e Marques da Silva) no quadro de uma modernidade entendida através dos novos programas de equipamentos com preocupações funcionalistas. O efémero Modernismo, que introduz a modernidade do século XX, analisado ao longo dos anos 20 e 30 desenha um segundo tempo (1922-1938) em que o gosto Art Deco evolui para um modernismo experimental mas também monumental condensado na década e “Ouro” das Obras Públicas. É o tempo de afirmação do Estado Novo através da arquitectura e da “Política do Espírito”. A procura historicista e regionalista, suspende-se a ela se sobrepondo a crescente utilização de modelos internacionais (alemães, italianos e menos holandeses) conformados a partir da crescente divulgação da “arquitectura do movimento moderno”. Às influências internacionais mais imediatas e algo epidérmicas entendidas como mais um “estilo”, tende a contrapor-se uma procura de monumentalidade e dos valores de dignidade que integram o sentido de obra pública, paradigmaticamente condensado nas obras oficiais de Pardal Monteiro. No quadro da produção corrente destaca-se a renovação linguística operada na imagem dos prédios de rendimento a partir de qualificadas intervenções de Cassiano Branco criando um código formal facilmente apreensível e repetível.

Segue-se o período de afirmação da Arquitectura do Estado Novo enquanto arquitectura de regime (1938 a 1948) apostada na busca de raízes pela via monumental ou regionalista: monumentalidade simbólica e desejada atemporal nos conjuntos urbanos de representação da “capital do Império”; regionalista ruralista na pequena escola (Bairros Económicos e vivendas unifamiliares da alta burguesia). Neste contexto, a referência a uma certa história colectiva é explorada através da exaltação dos valores da nacionalidade e consubstanciada no empenhamento da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais fixando e construindo os manifestos de uma memória. A Exposição do Mundo Português é entendida como referência cultural, a Praça do Areeiro como modelo e a Alta de Coimbra como paradigma urbano de poder. Uma terceira via vai procurar desenvolver com sinal de modernidade uma outra aproximação à tradição e à questão da identidade cultural (Távora publica O Problema da Casa Portuguesa, 1947, e Keil A Arquitectura e a Vida, 1942). Em tempo sobreposto desenha–se a contaminação moderna portuense com Losa, Artur Andrade, Viana de Lima.

A situação de pós-guerra conformou a ruptura moderna e o questionamento do Estilo Internacional desenvolvidos ao longo do período seguinte (1948-1961). É o tempo da contestação ao regime no contexto do Congresso heróico dos arquitectos que passam a reivindicar a adopção dos princípios da Arquitectura do Movimento Moderno e a resposta funcionalista a novos programas. A nova revista Arquitectura e as organizações de arquitectos (ODAM, ICAT e MRAR) revelam uma nova classe consciente da sua missão social. A procurar de referências locais, de contextualização e a revelação da Arquitectura Popular com a tarefa do “Inquérito” (1955-1961) darão lugar a explorações organicistas e regionalistas críticas, no quadro de uma produção em situação periférica e com sinal de resistência.

No quinto período (1961-1974) desenvolve-se a pluralidade dos anos 60. O início da década é marcado pelo eclodir da guerra de África que rompe com a paz instituída e constitui gérmen de contestação crescente ao regime. No mesmo ano, a publicação de Arquitectura Popular em Portugal fixa a memória de um território e de um construir. É a gestação de um tempo definido entre ruptura e nostalgia. O território tende a transformar-se com grandes empreendimentos turísticos, a cidade a internacionalizar–se com grandes edifícios de serviços e a escala de intervenção a alterar-se. O “moderno” pela via imagética do Estilo Internacional tende a banalizar-se ao sabor de uma crescente especulação capitalista surgindo “arquitecturas” de ruptura com a cidade. Afirmam-se o organicismo a par com a crescente diversidade, a cultura “Pop”, a valorização vernacular e a arquitectura do detalhe. É a época da “profissionalização”, da formação de grandes empresas de projectos e gestão de obra. Clivagem em 1968 anuncia os anos 70: Portas publica A Cidade como Arquitectura, Siza projecta em Caxinas e a Avenida da Ponte. No virar da década esboça-se uma aproximação racionalista que denuncia a eminência do fim da situação moderna ao mesmo tempo que são trazidos a debate novos temas: o retorno à cidade, a abordagem culturalista da questão patrimonial e a emergência da investigação disciplinar.

Os anos da Revolução (1974-1976) constituem o sexto tempo, cujas experiências levaram a arquitectura portuguesa além-fronteiras e onde pela primeira vez a sua contribuição é entendida como original. O poder sob a forma de Comissões de Moradores passa a ser o principal encomendador. Com as operações SAAL, as populações viram a possibilidade real de darem resposta aos seus problemas de carência de habitação, os arquitectos a possibilidade de projectarem e construírem em dimensões pouco usuais e de intervirem efectivamente na transformação da cidade e uma parte do poder político-militar a possibilidade real de a caminhar para o que então se designava por democracia popular e participativa.

Com o fim do período revolucionário define-se uma época (1976 ao fim do século) em que o fenómeno da abertura da arquitectura portuguesa acompanha o número crescente de arquitectos e uma certa dispersão geográfica. A modernidade tende a afirmar-se como valor operativo a par da contestação do racionalismo e da arquitectura moderna em situação pós-moderna. É o tempo da internacionalização e da consagração de Álvaro Siza bem como da afirmação da Escola do Porto. O surto de construção, conduzindo muitas vezes à destruição do território, a expansão das vilas e cidades do interior, são factores de transformação que implicaram a formação de uma consciência que tende cada vez mais a valorizar a paisagem e os recursos naturais bem como a necessidade da gestão do território e do património. A adesão de Portugal à CEE desencadeou alguns esforços de desenvolvimento de tal modo que a reabilitação, os grandes equipamentos, com destaque para as universidades e politécnicos, as operações imobiliárias e a arquitectura de prestígio tendem a definir-se como temas dominantes.

A sequência cronológica acima descrita cruza-se horizontalmente com os sete temas programáticos igualmente problematizados no catálogo. A habitação, sem esquecer a unifamiliar quando ela apresenta progressos e experiências retomadas, mas privilegiando naturalmente a plurifamiliar e a sua extensão enquanto desenho de cidade foram temas eleitos. Entendidos como sinais dos tempos, os equipamentos públicos, as grandes obras ou edifícios notáveis, as construções mais significativas para a comunidade são por isso mesmo a tipologia privilegiada nesta recolha e que de algum modo esclarece a evolução da arquitectura ao longo do século. A representação nacional, condensada nos pavilhões de exposições, funciona como um barómetro enquanto posição extremada de uma imagem pública, elegendo-se por época o caso mais significativo, aquele que teve a importância de determinar consequências no percurso da arquitectura. Também a fixação de um certo inconsciente colectivo representado pela arquitectura religiosa pareceu significativo para enriquecer esta panorâmica. Finalmente, num país com uma significativa memória do passado, monumental mas também vernacular, as intervenções no património não podiam deixar de integrar a rede estruturante da mostra já que a reutilização de construções tem sido uma constante da arquitectura portuguesa e uma confirmação da sua vitalidade.

 

4. Conceito expositivo

Organizada em moldes inovadores que confirmam a sua vocação ou tese historiográfica, esta exposição apresenta exclusivamente documentos originais, desenhos de esquiço, telas finais, esbocetos, croquis de concepção, revelando o processo de criação e aproximando o visitante e o leitor do mundo da arquitectura. Este princípio condicionou de algum modo a selecção quando não foi possível localizar e reunir os desenhos originais, ou quando não foram esclarecidas as autorias. Por outro lado este tipo de trabalho baseado no estudo das fontes revelou-se de grande utilidade, permitindo confirmar datas de projectos e autorias de obras, informações de estudos futuros no quadro da historiografia da arquitectura contemporânea portuguesa.

A par do registo das obras do século pode ler-se uma outra história, a da sua representação, a do desenho. Pela primeira vez, um material disperso em arquivos de diversos autores e instituições é reunido, exposto e fixado em catálogo, constituindo um importante conjunto de documentos originais representado as mais significativas obras da produção arquitectónica portuguesa do século XX. A escolha dos registos foi deliberadamente diversificada quer no que respeita à escala da representação como ao conteúdo dos documentos, apresentando-se perspectivas, plantas, cortes, desenhos de pormenor e mesmo esquiços de concepção. Também no que respeita à recolha iconográfica se privilegiou documentos de época, recolhendo-se imagens nos diversos arquivos fotográficos disponíveis, pelo que as obras são acompanhadas de fotografias de época, maquetas e algumas peças de mobiliário de modo a contextualizar globalmente as peças apresentadas. Resultado de um aturado trabalho de investigação que visou fixar a possível situação da produção arquitectónica deste século, o projecto de divulgação materializado na exposição e catálogo Portugal: Arquitectura do Século XX constitui base de uma pesquisa séria e contribuição para a construção da historiografia da arquitectura portuguesa contemporânea.

Finalmente, resta-nos referir que este trabalho não teria sido possível sem o apoio e a cooperação dedicada de autores, arquivos e emprestadores que possibilitaram a reunião de um conjunto de desenhos raras vezes divulgado. Com efeito, uma exposição desta dimensão dependeu fortemente da generosidade dos investigadores, amigos e colaboradores activos no catálogo, a quem agradecemos o apoio científico dispensado na estruturação dos conteúdos bem como o suporte moral tantas vezes demonstrado.