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Rute Figueiredo

rfigueiredo@autonoma.pt
CEAA/ESAP, Porto e CEACT/UAL, Lisboa, Portugal

 

Para citação: FIGUEIREDO, Rute – ‘Para Ligar dois Hemisférios’. Os mecanismos de mediação crítica da arquitetura na cultura transatlântica. Estudo Prévio 23. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2023, p. 58-62. ISSN: 2182-4339 [Available at: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/23.4

‘Para Ligar dois Hemisférios’. Os mecanismos de mediação crítica na cultura transatlântica.

Desde meados do século XIX, a crítica foi uma prática fundamental para a construção e questionamento de ideias, modelos e narrativas no campo da arquitetura. Foi, também, um instrumento crucial na estruturação de redes de relações, contacto e permuta entre críticos e arquitetos que extravasou as fronteiras físicas e imaginárias que diferentes tensões geopolíticas ajudaram a erguer e a cristalizar.

Mesmo durante períodos complexos como foi o da Guerra Fria (1947-1991), por exemplo, que introduziu grandes demarcações territoriais e roturas intelectuais; ou em países sob regimes autoritários como no caso de Portugal, geográfica e ideologicamente isolado das democracias ocidentais até 1974, a deslocação física ou aquela outra que as revistas impressas, exposições e livros também permitiam, tornou-se uma prática regular entre arquitetos e críticos – como o anúncio publicitário que está na origem do título deste dossier claramente sugere (Figura 1). O facto deste anúncio ter sido publicado numa revista de arquitetura nos anos 1960 não é, por conseguinte, inócuo. Nele os dois hemisférios que compõem o globo terrestre são unidos por meio de um atilho de linhas aéreas, que força a sua unidade e pressupõe a existência de uma cidadania profissional num território global interconectado.[1]

Figura 1: Anúncio publicitário da companhia aérea VARIG publicado na revista portuguesa Arquitectura, 1960, n. 119.

 

O dossier Para Ligar dois Hemisférios. Os mecanismos de mediação crítica na cultura transatlântica [2] que agora se publica, procura precisamente tomar essa cidadania como objeto empírico. Mais concretamente, procura reconstituir as redes de relações (sociais, intelectuais e epistémicas) que arquitetos, historiadores e críticos foram tecendo, inquirindo sobre os mecanismos de mediação que lhe deram tangibilidade. Ao repensar a crítica da arquitetura como uma prática em trânsito e ao tomar o espaço Atlântico como recorte metafórico e metodológico, este dossier integra-se no processo de revisão da própria história da crítica de arquitetura – das suas escalas de leitura, métodos de análise e estratégias de investigação –, bem como no trabalho laboratorial da rede Crítica|Memória – ele próprio lugar de cruzamento de ideias, culturas e geografias, discutidas no I Colóquio Crítica. Mídias. Memória (Rio de Janeiro, 2022).

Recentemente, alguns autores no campo da história da arte têm evidenciado que “se olharmos a viagem do ponto de vista de um conjunto de práticas dentro de um determinado grupo social (Kramer-Mallordy, 2020: p.2), observamos que existe uma correlação evidente entre a acelerada democratização dos meios de transporte e a profissionalização da crítica de arquitetura. De facto, as grandes inovações técnicas na área da informação e impressão em grande escala desde Oitocentos, aliadas às transformações da aerodinâmica e tecnologias de comunicação no início do século passado, permitiram a criação de redes intercontinentais e a construção de uma cultura transatlântica de encontro, circulação e coprodução de conhecimento, que transcendeu fronteiras geográficas e epistémicas também no domínio da crítica.

No campo da arquitetura, apesar da publicação de importantes trabalhos monográficos que têm tomado a crítica como uma forma historicamente modelada, problematizando sobre as suas definições e evolução no tempo (Jannière, 2019) e da cartografia da sua produção – particularmente visível em projetos e redes científicas como Mapping Architectural Criticism que se dedicou durante os últimos anos ao mapeamento de espólios arquivísticos dos seus agentes [3] –, os estudos desenvolvidos neste domínio permanecem tendencialmente circunscritos a delimitações regionais ou exploram práticas de investigação normalmente assentes em métodos de natureza comparativa – prolongando as convencionais dualidades centro-periferia, norte-sul, importação-exportação.

Quer a perceção do impacto dessa cultura de deslocamento (físico, disciplinar ou intelectual) na construção da cultura arquitetónica, quer a constatação de que os estudos da critica têm necessariamente de considerar as redes de relações sociais e conceptuais em que os atores se movem, motivaram a estruturação deste dossier. Aqui, através do cruzamento de perspetivas e geografias, privilegia-se o entendimento da crítica da arquitetura como prática de natureza transnacional e resultado de fenómenos de transculturação. Mais precisamente, trata-se de compreender como é que, “em diferentes ondas de mundialização, os críticos parecem ter sido agentes ativos na construção de uma cidadania global e vocabulário compartilhado”. [4]

Os artigos que este dossier reúne definem, por conseguinte, duas tentativas de aproximação às maneiras de se pensar e fazer crítica como ação de transculturação. Partem, por isso mesmo, de interrogações muito diferenciadas entre si. Se, por um lado, Karolina Koppke na reflexão que tem por título “Para uma historiografia dos deslocamentos: pensar o século XIX entre a Europa e a América”, pergunta até que ponto as “biografias se confundem com as travessias que [os autores] empreenderam”? Como é que uma rotina de encontros entre os críticos e historiadores europeus e os sul-americanos criou no século XIX uma cultura de influência mútua, diálogo disciplinar e posterior refutação crítica? Por outro lado, em “Receção e comentário sobre a cultura arquitetónica moderna brasileira em Portugal. Uma breve análise a partir de duas publicações periódicas de arquitetura”, Pedro Castelo examina as histórias que as revistas contam nos anos 50 e 60 do século passado sobre a arquitetura brasileira, como nesse processo de circulação se estabelecem cânones e perceções hegemónicas, e até que ponto as nuances e complexidades das modernidades, distintas, de cada um dos hemisférios permanecem hoje ainda por resolver.

A partir de diferentes mecanismos de mediação da crítica, situados em momentos cronológicos também eles muito distantes entre si, como mencionado, este dossier procura sobretudo testar métodos e formas de contar as histórias cruzadas que a compõem. Tais mecanismos sejam eles físicos, como no caso das deslocações intercontinentais descritas por Koppke, ou conceptuais como a rede impressa de periódicos de arquitetura perscrutada por Castelo, são aqui examinados não apenas como veículos de comunicação, circulação de ideias e disseminação de modelos, mas acima de tudo como relevantes “zonas de contacto” (Avermaete e Nuijsink, 2021; Pratt, 1991). Ou seja, “espaços de produção, negociação e conhecimento multidirecional, passíveis de conferir tangibilidade ao exercício da crítica” (Figueiredo, 2024 [no prelo]), cuja configuração vai sofrendo mutações no espaço e tempo.

Como bem recorda Koppke, estudar a ideia de conectividade exige um esforço de revisão metodológica e deslocamento do próprio investigador. Com efeito, “trazer para o primeiro plano a construção de saber ativada pela travessia do Atlântico significa atentar para uma cultura transatlântica que encontra condições de formulação justamente nos processos de encontro, negociação e reconfiguração que caracterizam a interação entre culturas”. Esta perceção atravessa ambos os artigos, como veremos.

Ao contemplar os jogos de escalas e dinâmicas espaciais da narrativa histórica e discurso crítico, este dossier toma por base o pensamento de autores como Jacques Revel (1996; Struck, Ferris, Revel, 2011), ou, mais recentemente, Jürgen Osterhammel (2015) que propõem uma análise policêntrica, articulada entre o global e o local. O movimento da história conectada ou transnacional no qual esses autores se enquadram pressupõe, com efeito, a utilização de ferramentas conceptuais e abordagens metodológicas passíveis de ler os fenómenos de transferência, circulação, troca, coprodução e influência mútua dificilmente apreendidos no quadro de espaços geograficamente delimitados ou disciplinarmente compartimentados. Por esse motivo, neste dossier o recorte transatlântico funciona como recurso metodológico que nos permite acrescentar complexidade à historiografia da arquitetura e aos discursos que a definem. Procura, acima de tudo, compreender de que forma é que os fenómenos circulam e se coproduzem dentro de “nebulosas” sociais, intelectuais e impressas (Pereira, 2020), bem como a partir das agendas dos seus atores processadas nos dois sentidos do Atlântico.

 

Bibliografia

AVERMAETE, Tom; NUIJSINK, Cathelijne – Architectural Contact Zones: Another Way to Write Global Histories of the Post-War Period? Architectural Theory Review, 25: 3, 2021, p. 350-361.

ESTEBAN-MALUENDA, Ana; FIGUEIREDO, Rute – Learning from the Opposite? Iberian Journals Glance at Australia. Fabrications 31:1,  2021, p. 24-53. DOI: 10.1080/10331867.2021.1907028

FIGUEIREDO, Rute – Agir por Ensaio. In Peixoto, Priscilla et alCrítica. Mídias. Memória. Rio de Janeiro: Rio Books, 2024. [no prelo]

JANNIÈRE, Hélène – Critique et Architecture. Un état des lieux contemporains. Paris: Éditions de la Villette, 2019.

KRAMER-MALLORDY, Antje- New York, Rio, Moscow: on Travel as an Archival Object. Critique d’art 45. Rennes: Archives de la Critique d’Art. 2015. [Available at: http://journals.openedition.org/critiquedart/19188]. DOI : https://doi.org/10.4000/critiquedart.76300

OSTERHAMMEL, Jürgen – The Transformation Of The World. A Global History Of The Nineteenth Century. Princeton: Princeton University Press, 2015.

PEREIRA, Margareth da Silva et al. Narrar por transversalidades III. In: PEREIRA, Margareth; CERASOLI, Josiane; JACQUES, Paola – Nebulosas do Pensamento Urbanístico: tomo III – Modos de Narrar. Salvador: EDUFBA, 2020.

PRATT, Mary Louise – Arts of the Contact Zone. Profession, 91, 1991, p. 33-40.

REVEL, Jacques – Jeux d’échelles. La micro-analyse à l’expérience. Paris: Gallimard, 1996.

STRUCK, Bernhard; FERRIS, Kate; REVEL, Jacques – Introduction: Space and Scale in Transnational History. The International History Review 33, no. 4, December 1, 2011, p. 573–584

 

Notas

  1. No desenvolvimento deste tópico ver Esteban-Maluenda, Figueiredo 2021.

  2. Este dossier surge no seguimento do seminário com o mesmo nome ocorrido em maio de 2023 na Escola Superior Artística do Porto (ESAP). Este seminário resultou do esforço concertado dos projectos de investigação ARCHMEDIUM (CEAA) e História da Crítica da Arquitetura (PROARQ-UFRJ) e da articulação entre o Programa de Mestrado Integrado em Arquitetura da ESAP e o Programa de Pós-graduação em Arquitetura da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

  3. A rede científica Mapping Architectural Criticism teve origem num projecto de investigação financiado pela Agence Nationale de la Recherche entre 2017 e 2019, que envolveu diversas instituições, nomeadamente: Université Rennes 2, Archives de la critique d’art, ETH Zurich, Oslo Center for Critical Architectural Studies, The Bartlett School of Architecture, Columbia University, Musée d’Orsay, Università di Bologna. Veja-se: https://mac.hypotheses.org

  4. Extraído da sinopse que acompanhou o seminário partilhado “Para Ligar dois Hemisférios” (ESAP, Porto; PROARQ, Rio de Janeiro, Maio 2023).

 

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito dos projetos UIDB/04041/2020 e UIDP/04041/2020 (Centro de Estudos Arnaldo Araújo)