PDF Repositório UAL

Amâncio de Alpoim (Pancho) Guedes (1935-2015)

 

Para citação: GUEDES, A. D’Alpoim (Pancho) – A cidade doente – várias receitas para curar o mal do caniço e o manual do vogal sem mestre. Estudo Prévio 20. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2022, p. 41-46. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/20.6 Publicado a partir de A Tribuna, 9 de junho de 1963, p. 6-7.

Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

Várias receitas para curar o mal do caniço e o manual do vogal sem mestre (1)

“Senmut, o egípcio fez o que lhe mandaram fazer; uma casa de granito para uma rainha sòzinha e morta. Serão os filhos de Senmut hoje incapazes de fazer aquilo que se lhes pede que façam: espaços habitáveis para os milhões que vivem, mas que já não são mais capazes de fazer as suas próprias casas com o barro e com as mãos, não mais forçados a arrastar granito”.

Aldo van Eyck, Arquiteto às vezes na Cidade muito velha de Amsterdão

o cinto do caniço

Formando um cinto imenso à roda da Cidade existe uma outra cidade aonde vive muito mais gente do que toda a gente da Cidade – é a cidade dos pobres, dos serventes e dos criados – dependência enorme da Cidade. Ninguém sabe bem ao certo quanta gente está nessa outra cidade de caminhos de areia – uns dizem 150.000 outros 300.000. Dentro de alguns anos serão 600.000, talvez 1.000.000 de gente. Essa gente toda vive sem esgotos sem água, sem luz. As suas casas são barracas precárias de zinco velho, lata, caixotes e caniço, à noite é perigoso passar nos corredores e labirintos de acesso.

memória curta e vagamente comentada de grandes trabalhos municipais

Fizeram-se os Cronistas no Sommerchield. Nos Cronistas moram agora 1092 patrões e 410 criados em 273 fogos de vários estilos.

As ruas são estreitas, os terrenos são compridos, as casas são pequenas com exceção do paredão Buccellato que é grande, pobre e feio demais. Cada casa tem uma lata de lixo à porta, cada quintal tem uma fossa enterrada, cada quarteirão tem uma tela de fios de vozes e correntes. Os cronistas são as cores de glória da urbanização de vai e vem. Quanto é que nos custa a nós todos o fazer cidades jardins à Cronistas?

Será só 100.000$00 por fogo?

As cidades jardins são brincadeiras de gente rica em estados ricos. Faz-se a encosta da praia para quem passa e quem está, ver o mar de alto e o acampamento dos turistas ficou escondido no mato, com cantinas onduladas à entrada.

Fez-se a volta da Ponta Vermelha com passeios simétricos e bombas de gasolina nas pontas.

Fez-se a pista para a Costa do Sol – dizem que só custou 9.000.000$00.

Foi para chegarmos de dia depressa aos camarões e de noite aos e de noite nos encadiarmos uns aos outros. A pista é para o futuro – para quando o aeroporto mudar para aqueles lados.

Esfaltaram-se as ruas que faltavam na Carreira de Tiro e fez-se a Craveiro Lopes, depressa para entrar o presidente.

Fizeram-se os esgotos a descarregar na praia.

Estamos agora no final do desarranjo da Pinheiro Chagas (a conta desta primeira fase é coisa-se para 7.000.000$00 – o compôr do desarranjo custará pelo menos outro tanto) e no cinto do caniço fizeram-se 5 chafarizes monumentais.

fogo de vista encharcado

Os sabetudos quando chegavam de avião viam, lá do alto, muita gente pequena em barracas de lata à roda da cidade. Preocupados com isso (entre outras preocupações) alugaram arquitectos rápidos para sonhar o sonho deles, que era que com muitas casas ia ficar tudo mesmo bem. Os arquitectos não pensaram, nem falaram – desenharam e mandaram fazer algumas casas – longe, caras e más. (Algumas quando chove são lacustres).

Graças à debilidade económica provincial só se fizeram algumas.

pequena cena inédita de contabilidade astronómica

Para alojar 300.000 pessoas são precisos mais ou menos 75 mil fogos. Para 75.000 fogos são precisos mais ou menos 3.750.000.000$00; mais terrenos, mais água, mais luzes, mais telefones, mais ruas, mais estradas, mais avenidas – fora o resto.

Prevendo que esta parte do que falta só custa mais 25.000$00 por fogo (os terrenos tamanho guardanapo à roda do aeroporto custam 21.000$00 cada) a despesa sem pensar em transportes e serviços públicos fica lá para os 6.000.000.000$00 – superior aos orçamentos e fomentos inteirinhos de um ano de Moçambique.

Mas não é uma questão de haver ou de que se acabou o dinheiro – é que resolver o problema às casinhas é fazer da Cidade um monstro enorme e terrível. A cidade chegará a Marracuene e passará da Matola num sem fim de casinhas e casinhas e aos problemas atuais serão somados outros mais graves e infinitamente mais sérios.

só não tem casa quem não quer

(Slogan no comercial recente e indecente).

As áreas da Cidade do caniço foram em tempos concedidas a gente que sem nunca nada ter feito nelas até ao pouco se contentava a esperar, vendendo por rendas anuais o direito anual a outros de construirem barracas temporárias nos seus terrenos, mas que recentemente se impacientaram com a tentação de negócios fabulosos. A cega simplicidade dos faz casas despertou os agentes de terrenos que, manobrando na confusa floresta de gabinetes acolhedores, vendem futuros pesadelos mascarados de sonhos – retalham a terra à roda da cidade em proveitos astronómicos para eles – em prejuízo para toda a gente.

Só não tem casa quem não pode.

O mal do caniço o mal da cidade do caniço é uma doença longa e cara de tratar.
Daquelas que não se tratam na África do Sul.

A cidade está gravemente doente.

a cidade na sala de reanimação

A Cidade dispõe de duas zonas centrais que graças às suas acidentadas topografias
puderam ser digeridas nas várias aventuras de terrenos. São a encosta da Malanga e a barreira da Ponta Vermelha sob o Hotel Cardoso. Infelizmente no prolongamento da encosta da Malanga começou-se a construir recentemente no género especulação urbanizada.

A consolidação das duas zonas e a abertura de acessos permitirá construir dois centros habitacionais de grande densidade que comportarão uma pequena parte dos habitantes da cidade do caniço que trabalha na cidade central, no porto, na Polana e na zona industrial da 1.º de Maio. Tal solução trará para próximo do local de trabalho muita gente que hoje passa uma larga parte do dia e da noite em andanças sem fim – irá facultar a toda essa gente e às suas famílias o uso da Cidade central, a utilização  das suas funções culturais, recreativas e sociais; permitir-lhe-á um acesso fácil aos liceus e escolas nocturnas e simultaneamente revitalizará a cidade baixa.

Tal solução provocará e acelerará uma genuína integração racial.

Para que esses dois centros habitacionais aconteçam é fundamental realizar um grande número de unidades dentro da capacidade económica actual dos que nelas vão habitar – unidades alugáveis e até vendáveis em condomínio por rendas de 100$00 a 400$00 mensais e outras ainda de renda inferior a 100$00. É possível fazer tais coisas, com alguma coragem e boa vontade, com muito trabalho, com muitos erros, com um grandessíssimo pedaço de imaginação e o tal manual para todos os vogais.

Manual alfabetizado do vogal sem mestre.

Preparação do doente

a. Estudar realmente o problema e inventar maneira flexível, prática e rápida de agir. (Ser amador às quartas e às sextas não chega).

b. Obter a colaboração do Centro dos Negros e nele, por meio de exposição, filme e conversa, explicar aos habitantes da cidade do caniço o que se pretende fazer e conseguir a sua boa vontade e colaboração. (Toda a gente gosta de saber e de dar opiniões sobre o que lhe querem fazer).

c. Formar brigadas de consulta de auxílio social a sério. (Pôr a assistência pública mesmo a assistir).

d. Formar brigadas de recuperação de barracas. (Remoção e reconstrução).

e. Criar uma secção de foral e cadastro para resolver os reajustamentos e expropriações dos terrenos, as mais valias, as compensações, para fazer os levantamentos e demarcações e passar títulos. (Há tantos agrimensores parados nos cafés).

e1. Inventar processos rápidos para resolver estes assuntos com poucos selos, carimbos e assinaturas. (Mandar fazer um carimbo monumental com todas as assinaturas de todas os assinadores camarários e contratar um carimbador geral).

Primeiros curativos no cinto peritonítico

f. Marcar algumas ruas já várias vezes definidas em vários planos de urbanização. (Os planos só serão verdade quando os “bulldozzers” trabalharem – até lá são papéis caros e bonitos que dantes andavam de avião).

g. Abrir algumas ruas. Essas ruas levarão água, luz e esgotos ao interior da cidade do caniço. Verão também 300.000 esperanças para 300.000 vidas melhoradas. Para que não se desespere muita gente, para que os pobres não sejam terrivelmente prejudicados, cada barraca que for necessário mover será imediatamente reconstruída noutra área pelas brigadas de recuperação. As construções são fáceis e fàcilmente móveis. Aos mudados será dada a opção de ocuparem as primeiras unidades dos novos centros habitacionais.

h. Obter o consentimento da Direcção da Praça de Touros para nelas alojar temporáriamente famílias cujas barracas tenham de ser mudadas. Alternativamente usar o equipamento do “camping” da Polana.

i. Construir pequenos centros sociais e comerciais com estações de ambulância, telefones públicos, correios, polícia, sanitários e balneários públicos, algumas lojas e pequenos mercados locais. Instalar nestes centros jardins infantis do tipo abrigos – escolas elementares que à noite sirvam como centros sociais para a juventude. (Talvez fazer os centros sociais e comerciais antes das ruas, antes de tudo – para que toda a gente acreditar e ver com os olhos que tem na cara, que agora é mesmo a sério).

j. Criar um serviço tipo agência de trabalho aonde seja possível a cada um procurar emprego e encontrá-lo com justiça, sem cunhas, sem favor.

l. Criar um grupo de assistentes sociais que maneje jardins infantis, centros pré-natais e estações de ambulâncias.

Tratamento demorado (na cidade do caniço e nas encostas)

m. Estudar projectos-tipo para realizar uma ocupação de elevada densidade.
(Construir os estudos, estudar outra vez, criticar outra vez, fazer melhores estudos, construir novos estudos).

n. Fazer com que a maior parte das construções tenha pelo menos 3 pisos.

o. Encorajar a actividade da Cooperativa de Construção de Casas e facilitar-lhe a realização das suas obras.

p. Requisitar e coordenar as atividades de várias pequenas indústrias relativas a construção civil. (Firmas com os estaleiros de peças pré-fabricadas e pré-esforçadas com capinalto nas passagens).

q. Facultar, àqueles que disponham de algumas economias e aos que ofereçam garantias, empréstimos a longo prazo através das caixas económicas para a compra ou realização de habitações para ocupação própria. (Se as caixas cá do sítio não o saibam fazer – formar «Building Societies» que o saibam).

r. Colaborar com as companhias de seguros para lançar sistemas de seguros de vida e trabalho e re-investir a capitalização de tais seguros na cidade de Caniço em construções e empréstimos.

A convalescença da cidade

s. Estudar um plano regional para a zona de Lourenço Marques esquecendo as subdivisões artificiais administrativas. (A Matola é o outro porto da Cidade – o Benfica e a Matola-Rio são dormitórios da Cidade – a Machava são fábricas quase dentro da Cidade).

t. Intercalar zonas industriais com zonas residenciais aproveitando as várias zonas já existentes – Estrada de Angola, Malanga, Jardim Zoológico, etc. (Não fica tão bonito nas plantas do plano mas funciona melhor na realidade a gente gosta de viver próximo do trabalho e andar de machimbombo é muito caro).

u. Instalar métodos de tratamento e iluminação de lixos, compactos eficientes e proveitosos.

v. Tornar fácil as entradas e as saídas da cidade. (As dragas retiram todo o dia lodo da passagem no fundo da baía que os navios cheguem aos cais no coração da cidade. Porque é que é tão difícil entrar e sair da cidade com os camiões, com os carros, com a gente? Uma cidade tem que girar e circular. A vida das cidades é movimento).

x. Procurar e encontrar aquilo que a Cidade quer ser – que há de ser um dia – uma cidade de torres, uma Cidade de plataformas para estar e morar e de canais para passar, andar e passear.

z. Conseguir fazer da Cidade uma cidade de verdade sem perder aquilo que a cidade de caniço tem e que a outra cidade ainda nunca teve – vontade e vida de cidade.

Continuará a cidade dividida, doente, esquizofrénica?

Continuará a cidade traída pela preguiça, estupidez e ganância dos homens, ou começará amanhã a cidade a ser a casa de toda a gente?

Agitem-se os vogais

A. d’Alpoim Guedes, arquitecto às vezes no sítio da cantina do Senhor Marques.

 

[1].  Por decisão editorial, as imagens do texto original não foram incluídas nesta publicação.