Rosário Salema
maria.salema@cm-lisboa.pt
Arquiteta Paisagista, Câmara Municipal de Lisboa, Direção Municipal de Urbanismo, Departamento de Espaço Público, Divisão de Gestão de Projetos de Espaço Público, Portugal
Para citação: SALEMA, Rosário – A dupla condição de um Lugar: Memória e Futuro. Estudo Prévio 22. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2023, p. 99-115. ISSN: 2182- 4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182- 4339/22.HEP.2
A dupla condição de um Lugar: Memória e Futuro1
Resumo
O espaço público da cidade é o espaço do coletivo. Habitar o espaço público é existir coletivamente e em interação: na rua, na praça, no mercado, no parque, etc. Ao longo do tempo vão sendo inscritas na cidade as diversas formas de habitar o espaço público. São camadas da História da cidade que se vão sobrepondo num palimpsesto. O chão inscreve a história do coletivo na cidade.
Agir sobre o espaço público, como projetista, implica, naturalmente, conhecer e investigar essas camadas do tempo. Intervir no espaço público é abrir a possibilidade de conhecer e revelar a história coletiva da cidade, muitas vezes, difusa e anónima.
Utilizar o valor simbólico das camadas do tempo nos projetos de espaço público na cidade de Lisboa permite colocar o presente e o passado em diálogo e imprimir significado aos “novos” lugares.
Palavras-Chave: arquitetura paisagista, Lisboa, geomonumento, memória, Largo da Graça, Mosteiro dos Jerónimos
Introdução
Entendo que o espaço público de uma cidade constitui um poderoso arquivo da memória coletiva e que a pesquisa histórica constitui a base da metodologia de projeto. Através desta pesquisa é possível colocar o passado e o presente em diálogo e resgatar significado para os “novos” lugares.
Falaremos sobre duas obras de espaço público que realizei na Câmara Municipal de Lisboa através das quais se exemplifica esta metodologia.
Geomonumento da Rua Sampaio Bruno – Aqui foi mar há vinte milhões de anos
Este projeto, realizado em 1998, foi elaborado em colaboração com o Museu Nacional de História Natural da Universidade de Lisboa, e surge na sequência da realização de um Protocolo para a proteção do património geológico de Lisboa.
À frente da classificação e proteção daquele geomonumento, tal como de outros tantos em Lisboa, esteve o Professor Galopim de Carvalho que, durante anos, se empenhou na valorização e preservação das várias paisagens geológicas da cidade de Lisboa.
Figura 1 – Geomonumento da Rua Sampaio Bruno (Fonte: CML, 2008)
A maioria das pessoas não reconhece a existência de geomonumentos na cidade, mas identifica uma série de situações de escarpa. Uma das mais conhecidas é a escarpa localizada no topo da Avenida Duarte Pacheco, à entrada da cidade de Lisboa, onde se localiza um monumento a Almada Negreiros, da autoria de Leonel Moura, perto das torres das Amoreiras. Outro será a escarpa na Avenida Infante Santo, junto aos primeiros semáforos para quem sobe. Atualmente estão classificados oito geomonumentos na cidade de Lisboa.
Para muitos de nós, enquanto crianças, estes locais eram rochas de exploração e aventura, muito antes de serem classificados como geomonumento. Lembro-me de ser criança e passar horas a escavar na escarpa da Avenida Infante Santo para à procura de fósseis para a minha coleção. E de pensar que o mar já tinha estado ali.
O geomonumento da Rua Sampaio Bruno localiza-se em Campo de Ourique. O desafio é imaginar aquela paisagem à época da formação do geomonumento.
Estamos no período Miocénico, há cerca de vinte milhões de anos, quando a Lisboa se encontrava submersa debaixo da água, até à cota dos cem metros de altitude. Nesse tempo as únicas zonas que emergiam da água eram a serra de Monsanto, o Parque Eduardo VII, Campo de Ourique, o Castelo de São Jorge, o Alto de São João e o Aeroporto, localizados acima dos 100m de altitude.
Há vinte milhões Campo de Ourique era um mar tépido, transparente e pouco profundo com recifes e corais à superfície. Uma paisagem tropical. Aquele recife era habitado por animais invertebrados com dimensões milimétricas que viviam em pequenas colónias (Figura 1) e que lembram corais ou plantas do fundo do mar. São os briozoários (musgo animal, em tradução literal do grego). São frequentes em rochas sedimentares e abundantes nos mares atuais. Distribuem-se em todas as profundidades e latitudes no ambiente marinho.
Após o período Miocénico o mar começou a descer e os corais fossilizaram. Nestes fosseis ficou guardada, uma história importante da evolução da paisagem de Lisboa, muito antes da cidade existir.
Figura 2 – Imagem de Briozoários vivos (Fotografia Daniel Stoupin no artigo publicado em 23/07/2012 no Planeta dos Invertebrados).
O geomonumento da Rua Sampaio Bruno foi classificado em 1997 e está localizado um pouco acima do cemitério dos Prazeres em direção a Monsanto, à cota dos 100m acima do nível do mar.
No início do projeto tinamos um sedimento com 3m de altura e 20m de comprimento, localizado entre prédios. Já fora uma escarpa, mas obras sucessivas na zona envolvente reduziram substancialmente a sua dimensão e expressão na cidade.
O desafio do projeto era criar um espaço científico e didático para servir de apoio ao Museu Nacional de História Natural e à Universidade de Lisboa. Paralelamente permitiria informar os cidadãos sobre a evolução geológica da paisagem da cidade.
Para salvaguardar o geomonumento, que ameaçava derrocar, instalámos uma malha metálica e construímos um muro de suporte em betão a todo o seu comprimento. Na parte traseira do muro de suporte foi colocado um painel de azulejos. Este painel enuncia um rasgo sobre o sedimento e revela imagens dos briozoários, ampliados milhares de vezes. Foi um processo muito interessante uma vez que era fundamental ilustrar as imagens fossilizadas e revelar o que não era possível ver a olho nu. No início o Professor Galopim de Carvalho queria que as imagens fossem desenhadas na calçada portuguesa. Entendemos que corríamos o risco de perder rigor científico e optámos pela impressão fotográfica sobre azulejo.
Figura 3 – Geomonumento da Rua Sampaio Bruno Imagem dos Briozoários sobre painel de azulejos, na traseira do geomonumento, detalhe (Fonte: CML, 2021)
Figura 4 – Geomonumento da Rua Sampaio Bruno Imagem dos Briozoários sobre painel de azulejos, na traseira do geomonumento (Fonte: CML, 2021)
Para realçar o facto absolutamente extraordinário de que aquele sedimento existia desde o Miocénico gravámos, na face fronteira do muro, junto ao sedimento, a frase “Aqui foi mar há 20 milhões de anos”. A frase provoca um salto no tempo e coloca-nos um grande desafio de imaginação. É difícil imaginar, o que quer que seja, antes da História, porque possuímos poucas imagens. A instalação da frase gerou um profundo respeito por aquele sedimento que passou a fazer parte do quotidiano do bairro e resgata, na cidade, uma relação com um tempo sobre o qual não existe memória. A inscrição da frase no muro abre caminho à imaginação e à curiosidade e transforma o espaço, entre edifícios, num novo lugar da cidade.
Figura 6 – Geomonumento da Rua Sampaio Bruno, detalhe (Fonte: CML, 2008)
Largo da Graça – Um Largo Porta entre a cidade e o campo
O projeto para o Largo da Graça decorre entre 2007 e 2012 e surge no âmbito do programa “Uma praça em cada bairro”, cujo objetivo principal era criar novas centralidades na cidade de Lisboa e requalificar espaços públicos relevantes para a vida do bairro. De um modo geral as intervenções promoveram o aumento das áreas pedonais e a redução das áreas de circulação automóvel e de estacionamento.
O largo da Graça engloba toda a área a nascente e sul do edifício do Convento da Graça. A maioria das pessoas não tem a noção de que o largo abrange toda esta área dimensão e identificam o largo como sendo a zona do miradouro da Graça ou a zona do terminal do elétrico 28.
Pelo facto de o largo possuir uma área muito difusa e pouco clara existem seis placas toponímicas para o identificar. Em cada esquina dos edifícios existe uma placa, no encontro de cada um dos caminhos que vão dar ao largo.
É fundamental compreender que um largo não é uma praça. Uma praça resulta de um desenho urbano formal, geralmente geométrico, e definido pela arquitetura que a circunda. Um resulta do encontro entre caminhos que geram um espaço informal. O largo da Graça resulta do encontro de caminhos que vão dar ao Convento da Graça.
Figura 7 – Ortofotomapa do Largo da Graça (Fonte: Google Earth Pro, 2012)
Figura 8 – Ortofotomapa do Largo da Graça com a localização das placas toponímicas (Fonte: Google Earth Pro, 2012)
Quando se inicia o Projeto do largo da Graça compreendemos que existiam dois ambientes muito distintos: a sul do convento uma zona de grande movimento turístico: o jardim Gustavo Gil, o Miradouro Sophia de Mello Breyner Andresen, o adro da Igreja da Graça e os antigos palácios; a nascente do convento o terminal do elétrico 28 e uma grande concentração de comércio e restauração que constituem o coração da vida quotidiana do bairro da Graça.
Foi através da pesquiza cartográfica que compreendemos que a diferença entre as duas zonas tinha origem muito remota. Terá sido a Cerca Fernandina que, quando implantada, dividiu a zona, do que um dia seria o largo, em duas áreas.
Aquando da construção da Cerca Fernandina (1373-75) esta contornou o convento da Graça e resgatou-o para o interior da cidade, deixando de fora todos os campos agrícolas, a norte e nascente, que pertenciam ao convento. A existência da cerca deu origem a evoluções distintas das áreas intramuros e extramuros, ao longo do tempo. Do lado intramuros, a sul do convento, ficaria a cidade. O lado exterior da cerca permanecerá, durante séculos, muito pouco habitada, com os terrenos agrícolas da cerca do convento e as grandes quintas que forneciam hortícolas e fruta à cidade. Assim, a construção da Cerca Fernandina deu origem a uma separação entre cidade do campo. A nascente do convento existia o Postigo da Nossa Senhora da Graça que materializava uma porta entre a cidade e o campo.
Figura 9 – Cartografia de Tinoco 1650 (Fonte: Lxi CML)
Na zona intramuros, junto ao convento, a cidade consolida-se e, a partir do século XVI, vê surgir vários palácios, como a atual Vila Sousa, que em tempos terá sido o Palácio do Vale dos Reis e o Palácio dos Senhores de Trofa, a poente da Vila Sousa. Após vários sismos, em particular depois do terramoto de 1755, a cerca desaparece, na sua quase totalidade.
Só no início do séc. XIX aparece, pela primeira, vez o topónimo “Largo do Convento da Graça” (cartografia de Duque Wellington, 1812). A definição de largo aparece, apenas, após o terramoto de 1755, ou seja, após o desaparecimento da Cerca Fernandina, que terá permitido a cidade expandir-se para a antiga zona extramuros. Na sequência desta expansão urbana o largo começa a ganhar configuração para norte.
Figura 10 – Cartografia de Duque Wellington, 1812 (Fonte: Lxi CML)
As quintas e os campos agrícolas foram emparcelados e loteados a baixos custos da construção, dando origem a edifícios estritos e bastante altos para a época. Os baixos custos de construção vêm permitir a instalação de uma população, maioritariamente, operária.
Em meados do século XIX a zona extramuros estava totalmente consolidada e é nessa altura que o largo adquire a configuração que hoje conhecemos.
A cerca deixou de existir, mas a diferença entre “dentro” e “fora” permanece e traduz-se nas diferentes características de cada uma das zonas. A compreensão desta circunstância torna-se fundamental para o projeto porque vem explicar a bipolaridade do largo e permitir assumir e exaltar as diferenças entre as duas zonas.
Figura 11 – Cartografia Filipe Folque, 1855-58 (Fonte: Lxi CML)
Com o objetivo de promover a unidade espacial de todo largo optou-se pela criação de um chão comum para estabelecer a ligação entre as várias partes do largo e, paralelamente, garantir a continuidade com as ruas e espaços envolventes. Esta continuidade era bastante importante uma vez que o largo constitui o centro do bairro para onde todas as ruas convergem e a ideia era reforçar a ligação de toda a rede de caminhos do bairro com o seu centro.
Procedeu-se à utilização sistemática da pedra de calcário, sob a forma de calçada, blocos e lajes de maiores e menores dimensões. Esta matéria, tradicionalmente utilizada em Lisboa, permitiu adotar um sistema coerente para todo o pavimento e resolver todas as situações técnicas: recolha de águas pluviais (sumidouros), valetas, lancis, faixa confortável, passeios, etc. e, paralelamente, possibilitou vencer aos desafios da topografia.
O largo era um espaço complexo e fragmentado. Os passeios eram bastante estreitos e o pavimento betuminoso cobria mais de 70% da área. O largo era, quase exclusivamente, utilizado como parque de estacionamento. O desafio era inverter a situação: ampliar as zonas pedonais, diminuir as áreas de circulação automóvel e, tanto quanto possível, reduzir o estacionamento.
Figuras 12, 13 e 14 – Largo da Graça (Fonte: CML, 2007)
Foi através de uma memória inscrita naquele espaço que surgiu o motivo que permitiu alterar, de forma radical, a rede viária e ampliar consideravelmente as áreas pedonais.
Numa visita ao local com o meu colega Álvaro Tição, historiador da Câmara Municipal de Lisboa, temos conhecimento da existência um segredo bem escondido numa zona junto ao convento. Era uma frase inscrita na base do cunhal do Palácio dos Senhores de Trofa: “Aqui chega o adro da Graça”.
Figura 15 – Palácio dos Senhores de Trofa (Fonte: CML, 2009)
Figura 16 – Palácio dos Senhores de Trofa – inscrição na base do cunhal do Palácio (Fonte: CML, 2009)
Com a descoberta desta frase compreendemos que o espaço do adro da Graça, reduzido à época do projeto, à zona fronteira à porta da Igreja da Graça, junto ao miradouro, teria sido bastante maior, em tempos. Isto significava que todo o jardim Augusto Gil terá feito parte do antigo adro do convento.
Figura 17 – Ortofotomapa do Largo da Graça (Fonte: Google Earth Pro, 2012)
Estava assim definida a identidade desta zona do largo: o adro do convento. A identidade da zona nascente ficaria centrada na existência do terminal do elétrico 28, referência simbólica do bairro e da expansão da cidade no séc. XX. Dois tempos, duas zonas, um chão, um largo.
Com a descoberta daquela frase conseguimos, com apoio da Direção Geral do Património Cultural, retirar as vias automóveis a sul e sudeste do convento, assim como grande parte do estacionamento. O adro foi francamente ampliado para sul e sudoeste do convento. Todo o jardim passou a fazer parte do novo adro e as fachadas daquele edifício ganharam um enorme protagonismo.
Figura 18 e Figura 19 – Largo da Graça: Zona do adro do convento da Graça, antes e depois da obra (à esquerda Google Earth Pro 2012 e à direita FG+SG Fernando Guerra, 2017)
A inscrição da frase no cunhal continua oculta. Nada foi feito para a revelar ou tornar mais visível. Considerámos importante manter o segredo, como até então.
Figura 20 – Largo da Graça: novo adro do convento zona sudeste (FG+SG Fernando Guerra, 2017)
Figura 21 – Largo da Graça: novo adro do convento zona sul (FG+SG Fernando Guerra, 2017)
Na zona do terminal do elétrico 28 foi também possível retirar uma via junto aos edifícios, assim como todo o estacionamento e criar uma pequena praceta para inversão do elétrico. Um novo adro para o convento e um novo espaço para ao terminal do elétrico 28.
Figura 22 – Largo da Graça: novo terminal do elétrico 28 (FG+SG Fernando Guerra, 2017)
Por último recordo que no caso do geomonumento inscrevemos uma frase que enunciou a memória do lugar na cidade. Aqui, no largo da Graça, encontrámos uma frase que revelou e recuperou a memória do lugar. A dupla condição de um Lugar: Memória e Futuro.
Nota: Para a realização do projeto do Largo da Graça foi fundamental a colaboração com o atelier Bugio (João Favila e Miguel Moreia) e a Campo d ́Água (Marta Azevedo).
1 Conferência proferida no dia 15 de dezembro 2021, na disciplina de Seminários I e III 2021, sob o tema “Habitar o espaço Público”. Coordenação Bárbara Silva.