Alexandre Alves Costa (1939- )
Para citação: COSTA, Alexandre Alves – A experiência do Porto. Estudo Prévio 20. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2022, p. 82-89. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/20.12 (ed. original L’esperienza di Oporto, Lotus International, 18, 1978). Publicado a partir de RODRIGUES, José Manuel (ed.) – Teoria e crítica de arquitectura século XX. Lisboa: OA-SRS, Caleidoscópio, 2010, p. 730-735.
A Experiência do Porto
INTERVENÇÃO PARTICIPADA NA CIDADE / A EXPERIÊNCIA DO PORTO
Não se tentou nunca prefigurar a cidade, a vida quotidiana, nem as formas de vida socialistas, não se tentou nunca elaborar um contraplano exterior à consciência dos moradores. Tratou-se de propor, praticando, uma alternativa metodológica que, nascida de um processo dinâmico de luta e organização, ela própria processo, criasse as suas imagens provisórias, construísse a sua teoria.
Assim, metodicamente, a par e passo com o desenvolvimento da luta pela efectiva melhoria das condições de vida dos trabalhadores, sempre a partir de situações reais e com base em propostas viáveis, se foram concretizando algumas, poucas, obras que fixaram no concreto da organização territorial os efeitos urbanos e os efeitos políticos dos movimentos urbanos, transformando as suas lutas em vitórias.
Nunca tornando claros os verdadeiros argumentos políticos, escondidos sob a capa de argumentos técnicos, ditos neutros, confundindo o provisório com o definitivo, não compreendendo a alternativa como processo, exigindo a racionalidade da sua lógica de classe, a experiência do SAAL foi classificada como terrorista ou, mais polidamente, imediatista, empírica, anárquica, tendo sido, afinal, metódica, paciente, racional, dialéctica.
A publicação de alguns trabalhos do SAAL/Norte deve ser compreendida dentro desta perspectiva: projectos provisórios, ambíguos e contraditórios. Fragmentos, apesar disso, de imagem de uma cidade liberta por inversão de conteúdo na sua utilização.
271 pedidos de intervenção, dos quais foram satisfeitos 174 envolvendo 41.758 famílias.
O PLANO CONTRA A ESPECULAÇÃO ANÁRQUICA. O PLANO CONTRA O FASCISMO. O TEMPO DE MARCELO CAETANO
Acordar para dias mais directos que os dias da Europa: essa era a saída, a única, a valer dores e torturas e noites sem dormir.
Por tímido que seja o processo do novo desenvolvimento urbano, a verdade é que as transformações induzidas pelo enfraquecimento da condição “rural”, cuja manutenção por um Estado ainda manipulado essencialmente por interesses retrógados, acaba por ceder face à imposição de uma política de fomento e industrialização, provocaram no sistema uma situação de instabilidade.
O crescimento das cidades opera-se desordenadamente, constituindo-se a sua implantação e a organização dos espaços mero subproduto do crescimento capitalista. As carências de toda a ordem, o acumular das contradições e o perigo das explosões que a exploração “não integrada” possam causar, levam a burguesia a renovar as suas regras de actuação. O planeamento urbano é um das consequências lógicas desta renovação.
Para que o planeamento sócio-económico definido pelos grupos monopolistas industriais não seja dificultado pelo aumento das rendas fundiárias urbanas que beneficiam um dos sectores da classe dominante – os próprios fundiários – torna-se urgente para o Estado a definição de medidas que contrariem a especulação dos terrenos.
Depois de servir de acumulação inicial, a especulação imobiliária é mal a combater; neste contexto se insere a política dos solos urbanos.
Nos colóquios, mesas-redondas, relatórios técnicos, passa insistentemente a chamar-se a atenção para a gravidade da situação. A vanguarda tecnocrática da classe burguesa apressa-se a divulgar soluções “radicais” como a municipalização dos solos, expropriação sistemática ou mesmo separação do direito de propriedade do direito de edificar. A cedência de terrenos pela administração a promotores particulares e a sua colaboração com as entidades particulares nas obras de urbanização e desenvolvimento habitacional serão os instrumentos adequados pelos quais se favorecerá e incrementará a realização dos grandes empreendimentos e obras, zonas de urbanização, bairros económicos, centros urbanos, empreendimentos turísticos, loteamentos urbanos, etc.
Embora a partir dos anos 50 se note uma progressiva generalização dos conceitos racionalistas de planeamento urbano – a legislação de 1944 torna obrigatórios os planos de urbanização e de expansão -, nunca foram criadas estruturas para preencher tais necessidades. Contrariando o discurso oficial, acessível pela primeira vez à voz dos tecnocratas, o real desinteresse pelo planeamento faz suspeitar que o sistema sociopolítico económico português não está verdadeiramente interessado na sua utilização como instrumento de uma política urbana.
O tempo de Caetano é rico na clarificação das contradições internas do regime. Alguns importantes planos nunca chegaram à aprovação do Conselho de Ministros.
Esta situação ambígua serve para a administração se acomodar às exigências de um mercado especulativo que poderia sentir-se embaraçado por um planeamento a cumprir obrigatoriamente, mas que pode ser utilizado sempre que sirva os seus interesses.
O sistema impõe assim ao plano a adequação ao desenvolvimento especulativo da cidade. Não utilizadas as suas potencialidades como instrumento de desenvolvimento social e económico, o sistema necessita dele para aplicação de regras em áreas onde se possam gerar condições de instabilidade ou que necessitem de ser controlados para aí se estabelecerem os produtos integrados.
A HABITAÇÃO DOS TRABALHADORES NO PORTO. A LUTA DOS MORADORES. DAS REIVINDICAÇÕES IMEDIATAS AO DIREITO À CIDADE. O TEMPO DO 25 DE ABRIL
Como puro início
Como tempo novo
Sem mancha nem vício.
Atrasada pelo fraco desenvolvimento das forças produtivas, apesar da exploração colonial e sobretudo por razões políticas, a primeira revolução industrial aparece tardiamente, mas com certo desenvolvimento na cidade do Porto.
A necessidade de concentração de mão-de-obra trouxe à cidade milhares de trabalhadores que é necessário alojar em quaisquer condições. Esta situação vai dar origem à criação e expansão de um tipo de habitação a que se chama “ilha”. A sua tipologia, “back to back houses”, é, em primeiro lugar, o resultado directo do aproveitamento especulativos dos fundos dos talhões, onde à face da rua estão implantadas casas burguesas. O talhão do Porto, estreito e comprido, condiciona a forma de agrupamento e a tipologia do fogo que pouco a pouco se vai tornando consciente e vem a ter larga utilização em operações mais vastas de especulação, transformando-se em princípio ordenador do território da cidade. A “ilha” é uma habitação de classe que surge e se desenvolve com a evolução do capitalismo e o seu estudo liga-se indissoluvelmente às condições gerais da vida e da luta do proletariado do Porto.
Depois de se criarem condições externas que forçaram a economia portuguesa a enveredar pela via da industrialização, aumenta o desequilíbrio, já existente, entre as necessidades crescentes e a oferta de habitação. O sector privado controla a gestão e dirige-a para as camadas com maior poder de compra. Os trabalhadores, excluídos do circuito são obrigados a aceitar soluções deficientes: sublocação, bairros de lata ou habitação clandestina (especulativas ou autoconstrução), soluções toleradas porque factores de estabilização de uma situação desequilibrada e a todo o momento ameaçadora.
No Porto, onde a situação é particularmente grave nas zonas degradadas das “ilhas” e na parte antiga da cidade e mediante a rentabilidade financeira de certas operações de demolição de tugúrios para construção de prédios novos, desenvolveu-se a maior e mais sistemática operação de rejeição para a periferia de populações urbanas de baixo nível de vida que deve ter existido neste país. Para além das suas razões económicas – libertação de terrenos urbanos e lançamento de avultados programas de edificação -, esta acção possibilitou que sobre essa população se exercesse uma diabólica e violenta repressão. “Os ocupantes das habitações podem ser desalojados sempre que se tornem indignos do direito concedido”.
O 25 de Abril libertou de forma explosiva a energia criadora das massas, a sua iniciativa, a sua capacidade de organização espontânea. Os operários tomam em mãos a produção de fábricas abandonadas ou com administração fascista, os camponeses ocupam os grandes latifúndios e organizam a produção em novos moldes.
Nas zonas urbanas desenvolvem-se, com base em exigências de caracter imediato, muitas delas situadas ao nível da sobrevivência, movimentos reivindicativos desencadeados pelos moradores dos “bairros de lata”. Bairros sociais, alguns deles por acabar ou não distribuídos, são ocupados e constituem-se as primeiras comissões de moradores e ocupantes.
No Porto, é nos bairros municipais da periferia, resultado da confluência de diversos factores – a violência da expulsão da cidade, a miséria e a existência de um regulamento fascista – personificados pela Câmara Municipal, que se iniciam as primeiras lutas urbanas e se organizam as primeiras comissões de moradores. Seguem-se as casas subalugadas, as “ilhas” e os bairros pobres. Por todo o lado se constituem comissões de moradores e se estabelecem programas reivindicativos. Com a primeira manifestação de moradores pobres, convocada a nível da cidade e que acaba invadindo a Câmara Municipal, a 30 de Novembro de 1974, criam-se perspectivas políticas mais amplas, caminhando-se claramente para a globalização da luta.
O frente a frente com a nova administração municipal democrática evidenciou, do lado dos moradores, a falta de estruturas organizativas globais e sobretudo de um programa único. Evidenciou também a perplexidade do poder provisório.
O SAAL. A ALIANÇA DO MOVIMENTO POPULAR, TÉCNICOS E SECTORES DO APARELHO DO ESTADO. DA INTERVENÇÃO PONTUAL À ALTERNATIVA DE PLANEAMENTO. AINDA O TEMPO DO 25 DE ABRIL
A verdade não é uma especialidade
Para especializados clérigos letrados.
A 6 de Agosto de 1974 é publicado o despacho que criou o SAAL “para apoiar através das Câmaras Municipais as iniciativas da população mal alojada no sentido de colaborarem na transformação dos próprios bairros, investindo os próprios recursos latentes e eventualmente monetários”.
A iniciativa da operação é estatal, embora de resposta – talvez tentativa integradora – aos primeiros movimentos de massas. A população deverá organizar-se com vista a participar na transformação do bairro, através da construção das suas próprias casas. O programa SAAL, não tendo uma definição inicial muito clara, foi sendo clarificado em resultado de uma longa luta e reflexão dos moradores, principais interessados, no sentido da concretização do que no despacho eram indefinições, ambiguidades ou até incorrecções.
Os moradores pobres, assumindo o que de bom tinha o despacho que garantia a sua fixação nos terrenos urbanos e uma certa autonomia de decisão, começaram por recusar a auto-construção, considerando-a um processo de dupla exploração.
O interesse despertado pelas qualidades do despacho, aliado à inesperada capacidade das populações avançarem com processos reivindicativos que tendem a abranger todos os mal alojados, transformou a metodologia do SAAL num processo dinâmico que ultrapassou largamente as suas perspectivas iniciais e foi um dos principais factores de unificação do movimento dos moradores. Da necessária discussão do processo foi nascendo um programa e a necessidade constante de provas de força cimentou as relações entre as comissões. A discussão política as dificuldades da sua concretização, foi dando ao movimento o seu carácter anti reformista e anti capitalista.
O SAAL, tal como o entenderam os moradores nele integrados, podia, à data da sua extinção, ser definido como uma intervenção de carácter prioritário subordinada à concretização do direito à habitação e do direito à cidade sob controlo dos moradores organizados, assentando mais pormenorizadamente, em sete princípios fundamentais:
O carácter prioritário da intervenção, iniciativa e organização dos moradores pobres, sobre a localização dos núcleos habitacionais, controlo sobre o trabalho de apoio técnico, gestão da obra, controlo sobre o processo de financiamento e gestão social das casas e dos bairros.
Os terrenos, correspondendo às zonas degradas e áreas livres anexas, são entregues, depois de expropriados, em direito de superfície, às associações de moradores, para que concretizem o seu programa de reestruturação, renovação e equipamento da zona, com ajuda financeira do Estado. Cada associação desenvolve o seu processo apoiada por uma brigada técnica de apoio local.
Os pedidos de intervenção multiplicam-se por todo o território da cidade. Às zonas de influência de cada associação – unidades operacionais – começam a tocar-se. A necessidade de acordos é pretexto para elaboração de programas mais gerais. A despontualização das intervenções, caminhando do bairro para a zona, da zona para a cidade, é acompanhada por complexidade crescente na organização dos moradores e nos serviços centrais de coordenação.
O plano e os seus interesses aparecem claramente como barreira. Os moradores participaram na sua crítica e na definição de novas propostas alternativas, a caminho de um projecto global que resolva a cidade com outra lógica, que dignifique a casa dos trabalhadores, que liberte outra cultura pela primeira vez assumindo todo o passado da cidade sem o destruir pelo lucro.
Esta simplicidade é um método. Teve a sua prática, projectou, construiu. Foi elaborando a sua teoria, criando as suas técnicas. Teve a lógica elementar e indiscutível que parte da urgência das necessidades primárias.
Teve a força dos milhares de Portugueses que entreviram no 25 de Abril uma nova sociedade.
Existiu apesar dos ataques – que chegaram ao terrorismo bombista – e de todo o tipo de bloqueamentos. Derrotado, deixará memórias e, sobretudo, dados de acção para todos e futuros momentos.
O PLANO CONTRA A ESPECULAÇÃO SELVAGEM E CONTRA O SAAL. O TEMPO DO 25 DE NOVEMBRO OU DA INSTITUCIONALIZAÇÃO DA DEMOCRACIA.
– Não está morto, não morre, quando calco para baixo, alguém – e benzeu-se – o levanta para cima.
Os movimentos sociais urbanos surgidos depois do 25 de Abril, aos quais o SAAL está directamente ligado, processam-se numa situação de mudança de conjuntura política, mas de grande indefinição a nível do poder dominante e dividido entre o compromisso histórico partidário e que tem a ver com a chamada legalidade burguesa e certas instâncias poltico-militares que foram os lugares privilegiados do que se pode chamar legitimidade revolucionária. A luta de classes quebra, entretanto, todo este espaço de poder a sua hipotética linearidade e equaciona-o em termos de conflito.
O SAAL, enquanto aparelho de Estado, goza do privilégio do seu enfraquecimento global e consegue ir-se adaptando ao projecto político das massas. Tem o carácter ambíguo de relação de colaboração não conflituosa com os movimentos urbanos e simultaneamente de assistência no sentido do encaminhamento legal das suas reivindicações, com todas as implicações que isso acarreta – uma parcela do aparelho de Estado identificado com as aspirações populares de alteração estrutural, canalizando contra o aparelho de Estado essas aspirações. Afinal, é o enfraquecimento deste que permite abrir este campo de acção que as massas aproveitam. A reorganização burguesa tornará claras estas contradições em termos de conflito dentro do aparelho de Estado no qual o SAAL é corpo estranho a ser expulso ou integrado na sua perspectiva de classe.
Tal como se previa, ainda antes do golpe de Direita de 25 de Novembro de 1975, o SAAL veio a ser, na prática, extinto em Outubro de 1976, em época de desesperança e cansaço do movimento dos moradores.
Melhor que nos anos 50, afastado o estrato mais retrógrado, o sistema, depois de organizada a actividade política e económica e de se ter apropriado do controlo da actividade produtiva, pode propor um plano de actividades concretas. É de novo o momento de relançar o plano director.
Este é utilizado contra a intervenção SAAL, conforme o aumento da intervenção do Estado e consequente valorização de papel dos técnicos na linha ideológica da “racionalidade e neutralidade urbanística”, cujas raízes se encontram, como vimos, nos últimos anos do marcelismo.
A posição do SAAL/Norte face à questão do planeamento estava patente na conclusão do Encontro de Julho de 1975:
“No que se refere ao planeamento existente, e considerando que ele traduz a defesa dos interesses da classe burguesa, entende-se que as intervenções SAAL, ao defender o interesse dos moradores contestam na práctica tal planeamento.
Não existe ainda alternativa de estrutura da cidade/território; compete ao SAAL dar a sua contribuição para a criação dessa alternativa pensando-se que a sua concretização só será possível como resultado de uma nova estrutura do Poder sob a direcção da classe operária.
As intervenções SAAL deverão ser, na circunstância política actual, as intervenções possíveis que defendam os interesses imediatos dos trabalhadores sem se oporem ao desenvolvimento do processo revolucionário.”
Assim é verificada a inevitabilidade da contradição entre as intervenções no território do SAAL e o projecto burguês.
É, pois, claro que, quando vozes do “poder democrático legitimado pelas eleições livres” clamam contra a anarquia urbanística, é de forma ambivalente: pela racionalidade e desenvolvimento harmónico do capitalismo contra a especulação anárquica existente antes do 25 de Abril e, simultaneamente, contra a “anarquia” das propostas dos movimentos urbanos (e sua cobertura parcial, mas legal, pelos serviços do SAAL) que tem por objectivo a alteração profunda da lógica do sistema.
A extinção do SAAL demonstra a coerência de novo conseguida no aparelho de Estado que, assim, clarifica os interesses que defende.
O que se chamou regresso à pureza inicial (a terminologia é idêntica à do 25 de Novembro – regresso aos ideias do 25 de Abril) consistiu na integração das operações SAAL nas câmaras municipais, extintos os serviços de coordenação, a pretexto da necessidade de um controlo urbanístico, legalmente da sua competência. As novas administrações representariam, de resto, a vontade popular expressa nas eleições municipais.
A institucionalização dos mecanismos da democracia burguesa vem preencher o vazio legal até ali ocupado pelas organizações populares de base. A existência de um programa popular, assumido pelas associações de moradores, com larga base de apoio, condicionou a primeira fase do processo de extinção do SAAL, caracterizada pela tentativa, ainda tímida, de controlar os seus efeitos antes que atingissem situações de ruptura com o sistema.
O “processo SAAL”, entendido como sistema de relações entre o movimento dos moradores, a sua organização e o apoio técnico e legal coordenado, foi a pouco e pouco perdendo o seu carácter global, disperso por diversos municípios, afastados os técnicos que a ele estavam ligados e extinto o serviço público que lhe dava cobertura e viabilidade real.
Aproveitando a consequente e inevitável desmobilização e divisão do movimento dos moradores, a Administração Local propõe soluções demonstrando, aliás, uma grande ineficácia e incompetência. Para conseguir alguns apoios aceita, ainda, a cedência dos terrenos que os moradores escolhem, impondo a condição de serem utilizados os novos projectos.
Os modelos do SAAL, projectos elaborados a partir duma profunda colaboração entre técnicos e moradores, de respeito e recuperação dos valores culturais da cidade, construções simples a evitar tecnologias sofisticadas, a executar por pequenas empresas e cooperativas de desempregados sob controlo dos futuros utentes e por eles garantida a sua manutenção, são substituídos por novos modelos que prefiguram as imagens que virão a ser impostas nos próximos conjuntos periféricos. Estes modelos, excedente da social-democracia europeia serão, ao contrário dos que o SAAL propunha, os que “resolverão” mais depressa as situações desesperadas.
Recomeçando a destruir a cidade para construir alguns blocos no centro, tenta-se conquistar a conivência dos moradores para a ir continuando a destruir para fins menos humanitários.
O abandono do programa popular ou a alteração do seu conteúdo arrastará os que com ele se identificam e, finalmente, as associações de moradores que resistiram passarão a dóceis correias de transmissão do Poder…
Programa ambicioso de um poder tão arrogante quanto ainda frágil!
A experiência histórica dos moradores e dos técnicos não quedou, como dissemos já, apenas memória e não tem sido fácil a tentativa de demonstrar a inviabilidade a nível de planeamento das propostas globais implícitas e em estudo a partir do trabalho da coordenadora SAAL e das brigadas técnicas. A reacção às propostas camarárias de outras respostas às necessidades da população tem posto em destaque a consciencialização e informação das associações de moradores e seus representantes.
A área de manobra é ainda muito vasta. A luta de classes mantém-se viva em Portugal. A recente queda do governo socialista mostra as dificuldades gerais que existem no nosso país. A conjuntura política não é clara e o esquema de reorganização social democrata, de facto caracterizado por cada vez maior cedência à direita reaccionária, num país de economia à beira da ruptura a ser vendido ao imperialismo, não foi capaz de se estabilizar, sobretudo porque os trabalhadores parecem dispostos a defender as conquistas de Abril.
Não se vislumbram vitórias fáceis, nem vitórias. Apenas se reconhece uma nova maturidade no movimento dos moradores na busca de diferentes tácticas, de forma a prosseguir defendendo o que já conseguiu no sentido da sua dignidade e a que se costuma chamar direito à cidade.
Para os arquitectos não deve estar próxima a concretização das suas propostas, nem sequer a conclusão das iniciadas. Arquitectos que dramaticamente não podem utilizar as novas ferramentas, adquiridas justamente no momento em que a sua crise histórica parecia ultrapassada e a Arquitectura encontrava, por se não ter demitido, a sua dimensão autêntica.