Delia Ioana Sloneanu
sloneanu.delia@gmail.com
Arquiteta e Doutoranda no Departamento de Arquitetura da Universidade Autónoma de Lisboa (DA/UAL), Portugal. CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, Portugal
Para citação:
SLONEANU, Delia – A terceira margem do rio: residência para a embaixada de Portugal em Brasília. Estudo Prévio 25. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, dezembro 2024, p. 19-52. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/25.2
Artigo recebido a 30 de julho de 2024 e aceite para publicação a 30 de setembro de 2024.
Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
A terceira margem do rio: residência para a embaixada de Portugal em Brasília
Resumo
O atual artigo propõe investigar o Concurso para a Residência da Embaixada de Portugal em Brasília, organizado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros entre 1995 e 1996, no qual Ricardo Bak Gordon (1967-) e Carlos Vilela Lúcio (1967-) foram os primeiros colocados. Para tal fim, a investigação recua no tempo, olhando para os acontecimentos históricos que levaram ao momento deste concurso. Serão analisados também os desdobramentos posteriores, focando na figura de Ricardo Bak Gordon, desde a sua viagem ao Brasil e a relação com Paulo Mendes da Rocha, à necessidade de desenvolver um segundo projeto, de dimensões reduzidas, anos depois. Essenciais para o desenvolvimento da investigação, esses três tempos – passado, presente, futuro – servem para ilustrar um panorama muito maior que o objeto de estudo, necessário para o entendimento do mesmo. De maneira decorrente, na busca pelos elementos identitários na arquitetura de Bak Gordon, serão explorados conceitos como atravessamento – físico e cultural – continuidade, como permanência e consciência da distância no tempo, e representação in vitro, como uma condição de porosidade – física e conceitual – que deixa transparecer, ao mesmo tempo que preserva uma imagem.
Palavras-chave: concurso, embaixada, Brasil, Portugal, modernismo, Brasília, terceira margem do rio
1. Introdução
Ricardo Bak Gordon (1967- ) faz parte do grupo de arquitetos portugueses que se destacaram como “a geração de 90”, a mais nova geração de grande relevância na cena da arquitetura portuguesa reconhecida internacionalmente. O começo do seu percurso profissional é marcado pelo concurso para a Residência da Embaixada de Portugal em Brasília de 1995, quando ganha o primeiro lugar, junto com seu então socio, Carlos Vilela Lúcio. O projeto se destaca através de uma visão sintética e original, característica do final do século XX, que faz nascer uma nova abordagem: não busca romper com o modernismo, mas se distancia, ao mesmo tempo, da visão do modernismo como estilo.
Enquanto a primeira parte do artigo trata sobre o concurso e o contexto histórico que o determinou, focando no primeiro projeto ganhador, a segunda parte ganha um caráter pessoal e biográfico, propiciado pelas circunstâncias em quais se deu o segundo projeto. O elo que conecta as duas partes é a metáfora teórica que serve de base e referência para a investigação: o conceito da “terceira margem do rio”, de João Guimarães Rosa, como um lugar de suspensão entre cá e lá, uma nova margem do ponto de vista arquitetónico. O objetivo do estudo é mostrar como o pensamento arquitetónico de Ricardo Bak Gordon fomenta a base metodológica empregada para responder a uma demanda específica, e quais são as ferramentas usadas para aceder a esse universo próprio de inquietações, “rio abaixo, rio afora, rio adentro” (ROSA, 1962: 110). A pergunta da investigação se formula da seguinte forma:
Ao pensar a travessia como o deslocamento entre duas pontas, podemos entender a percepção do percurso como a concepção de um terceiro ponto interno, atravessado pela travessia? Essa terceira margem, percebida e construída, surge como um possível elemento identitário?
Na luz desta pergunta, ao focar na figura do arquiteto Ricardo Bak Gordon, o artigo transita entre relatos históricos, aspetos biográficos e análise do processo criativo, entendendo que essas áreas se influenciam e se determinam constantemente. Essa tríade, assim como os fluxos desses três tempos – passado, presente, futuro – convergem dentro da terceira margem, criando essas múltiplas circunstâncias que condicionam a vida e a produção arquitetónica, profundamente interligadas.
Figura 1 – Esquisso da Residência da Embaixada de Portugal em Brasília, realizado por Ricardo Bak Gordon durante a entrevista para a investigação. Junho 2024 (Fonte: Comunicação pessoal da autora).
Estado da Arte
Para a atual investigação, o estado da arte reúne livros, revistas, artigos, palestras e entrevistas, oferecendo base teórica e documental para os projetos analisados. Para tratar das Embaixadas de Portugal no Brasil anteriores ao concurso que faz o objeto do estudo, foram consultados textos e imagens na revista Arquitectura de 1974, no “Catálogo da Exposição Raul Chorão Ramalho Arquitecto” (RIBEIRO, 1977), e no livro “Embaixadas Portuguesas: Londres, Madrid, Rio de Janeiro” (CARNEIRO, 2021). Para tratar do concurso para a Residência da Embaixada de Portugal em Brasília de 1995, foi levantada a bibliografia completa onde o projeto foi publicado. À medida que o estudo aprofunda os conceitos trazidos por esses projetos, focando na figura do arquiteto Ricardo Bak Gordon, para além das monografias publicadas em 2005, 2009, 2021 e das inúmeras palestras, foi realizada uma entrevista com o arquiteto, como método investigativo.
Por fim, a obra literária cuja narrativa permeia o atual estudo é o conto “A Terceira Margem do Rio” (ROSA, 1962), uma das obras mais influentes do escritor João Guimarães Rosa, considerado uma obra prima da literatura brasileira. Através de um tom regionalista e universal, o autor traz grandes dilemas da existência humana. O conto trata sobre a curiosa história de um pai que decide, de maneira repentina, abandonar a família e a sociedade como um todo, para viver dentro de uma pequena canoa, entre as margens de um imenso rio. O conceito da terceira margem serve de suporte para falar de uma existência situada a meia distância deste entre-dois, que acaba criando um terceiro lugar de atuação, uma mina de ouro interna.
Figura 2 – Ilustração para “A Terceira Margem do Rio” – João Guimarães Rosa e Luís Jardim. 1962 (Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Terceira_Margem_do_Rio [Consult. Abril de 2024]).
2. Contexto
A embaixada do Rio
A escolha de situação no tempo do objeto de estudo começa com o contexto da construção da Embaixada de Portugal no Rio de Janeiro, a capital da então República dos Estados Unidos do Brasil (1889-1968) Em 1922, com a ocasião da Exposição Internacional do Rio de Janeiro, comemorando o Centenário da Independência do Brasil, foi adquirido o palacete da Rua São Clemente, como necessidade da representação diplomática funcionar condignamente na capital. Foi ali que funcionou a primeira Embaixada de Portugal, durante 25 anos. No quadro pós-guerra, no fundo das relações diplomáticas difíceis entre os dois países – de um lado, o regime salazarista, de outro, uma transição de um “Estado Novo” brasileiro para uma abertura democrática depois da deposição de Getúlio Vargas pelos militares em 1945 – surge a necessidade imediata de remodelação do palacete que abriga a Embaixada. Trata-se de um processo penoso que levou 15 anos e 5 projetos para se materializar, até a conclusão da obra em 1961, ano em que a capital do país foi relocada para Brasília, fora do eixo Rio – São Paulo.
A primeira encomenda foi feita para o escritório brasileiro Severo & Villares, o antigo Escritório Técnico Ramos de Azevedo, em 1946. Como a proposta se mostrou demasiado cara, a atenção mudou de foco em 1947, desta vez para dois técnicos portugueses conhecidos: o engenheiro Fernando Jácome de Castro e o arquiteto Guilherme Rebelo de Andrade, que já tinham trabalhado na remodelação da Embaixada de Madrid. A encomenda do projeto é designada ao escritório dos Irmãos Rebelo de Andrade, que desenvolveu 4 versões do projeto durante 14 anos, passando por mudanças de Presidentes e Embaixadores, até a conclusão das obras em 1961.
Figura 3 – Projeto da Embaixada de Portugal no Rio de Janeiro, “Fachada Sul”, Desenho nº6. 1954 (Fonte: CARNEIRO, Luis – Três Embaixadas Portuguesas: Londres, Madrid e Rio de Janeiro – Arquitectos Irmãos Rebelo de Andrade. 2021: 190).
Uma nova capital
Em 1955, Juscelino Kubitschek se candidatou à Presidência da República com a promessa de um projeto ambicioso, chamado Plano de Metas, que visava o desenvolvimento do Brasil em vários setores, culminando com a construção de uma nova capital. Para tal fim, foi escolhido geometricamente um lugar no Planalto Central, uma tabula rasa considerada o epicentro do Brasil, equidistante aos limites do país. No ano seguinte, Juscelino Kubitschek foi eleito, começando assim a construção de Brasília, inaugurada em pouco menos de quatro anos depois.
Para definir o desenho urbano da nova capital brasileira foi organizado, em 1956, um concurso nacional chamado Plano Piloto de Brasília, termo cunhado por Le Corbusier. Com a participação de 26 projetos, o arquiteto e urbanista Lúcio Costa foi eleito vencedor, chamando a atenção do júri com a retórica que trazia os valores éticos, estéticos e históricos da criação da nova capital, juntamente com a expressão da nova arquitetura vigente. Com uma grande capacidade de persuasão, apresentou um relatório justificativo bastante sintético, de 24 páginas, e um único plano piloto desenhado à mão, se comprometendo em elaborar o projeto caso o júri expressasse interesse. Foi assim que uma ideia de cidade se materializou no que hoje conhecemos como o maior exemplo de modernismo em escala urbana.
Figura 4 – Plano Piloto de Brasília, Relatório Lúcio Costa. 1956 (Fonte: http://doc.brazilia.jor.br/plano-piloto-Brasilia/relatorio-Lucio-Costa.shtml [Consult. Maio de 2024]).
Figura 5 – Revista Brasília, n.º 3, Fundo NOVACAP, custodiado pelo Arquivo Público do Distrito Federal. 1957 (Fonte: https://www.arquivopublico.df.gov.br/wp-content/uploads/2018/07/NOV-D-4-2-Z-0001-1d.pdf [Consult. Maio de 2024]).
Em 1960, Brasil inaugura a nova capital, cujo sucesso foi amplamente duvidado. Com a transferência da capital federal para Brasília, todas as embaixadas foram realocadas para o novo setor localizado na Asa Sul, destinado a representações de outros países. Portugal, que estava prestes a finalizar a obra em andamento há 14 anos no Rio, sofria pressão do governo brasileiro para efetivar a mudança. Num contexto de relações externas conturbadas entre os dois países, a primeira metade da década de 60 se constitui como um ponto de mudança: por um lado, marca o início do fim do império colonial português, com o início da guerra em África, a invasão de Goa e o aumento da contestação interna ao regime de Salazar e da emigração, e por outro, a instauração da ditadura militar, marcando o Brasil nos 21 anos seguintes.
A embaixada de Brasília
Para ganhar tempo face às pressões brasileiras de mudar a Embaixada para a nova capital, procurando minimizar tensões, é realizada uma visita a Brasília, que finaliza com a inauguração do monumento ao Infante D. Henrique, em 1960. Este virá a ser motivo para a escolha do terreno da futura Embaixada, no lote 2 da Avenida das Nações, sendo assim o Itamaraty oficialmente transferido para Brasília. Entre 1971 e 1973, o arquiteto Raul Chorão Ramalho, em colaboração com o arquiteto Leonel Clérigo, desenvolveu o projeto completo para a Embaixada de Portugal, do qual apenas a Chancelaria e a Praça de Portugal foram construídas, deixando de fora a Residência do Embaixador, a pequena residência dos funcionários e os arranjos externos.
Figura 6 – Embaixada de Portugal em Brasília, no lote 2 da Avenida das Nações. 1974 (Fonte: RIBEIRO, Rogério – Exposição Raul Chorão Ramalho, Arquitecto. 1977: 139).
Raul Chorão Ramalho (1914-2002) foi uma figura de destaque na arquitetura modernista portuguesa do pós-guerra, com uma vasta produção que abrange desde o continente português, as ilhas atlânticas, Macau e Brasil. Uma voz ativa da oposição ao Regime do Estado Novo, foi membro fundador do ICAT (Iniciativas Culturais, Arte e Técnica) fundado em 11 de março de 1947, participou do 1º Congresso Nacional de Arquitectura em 1948, como também em várias edições da Exposição Geral de Artes Plásticas. Com uma atitude abstratizante, de síntese no detalhe e na escolha dos materiais, a sua obra intemporal consegue atravessar continentes sem perder a unidade, “resgatando informação e fixando subtilmente apontamentos de culturas diferentes.” (RIBEIRO, 1977: 22) Talvez a característica mais marcante da arquitetura de Chorão Ramalho, que fica explícita nas obras públicas, é a qualidade urbanística: os projetos são ou muito bem integrados na malha urbana onde se inserem, ou são eles mesmos geradores de urbanidade. Através de uma posição ética na arquitetura, os equipamentos pensados por Chorão Ramalho respondem minuciosamente as exigências dos programas, baseando-se num conhecimento profundo das técnicas e dos materiais. A qualidade e o rigor estão presentes em todas as escalas, desde a inserção na cidade, aos mobiliários e decorações internas.
Nas notas sobre o Anteprojeto, nas palavras do arquiteto, pretendia-se atingir três objetivos principais: primeiro, a monumentalidade adequada à representação diplomática de Portugal no Brasil; segundo, a austeridade da composição, conseguida através da priorização dos elementos estruturais e materiais sóbrios; o último, não menos importante, traz as várias camadas de significado da inserção naquele contexto:
“gostaríamos, além disso, que a imagem arquitectónica do edifício reflectisse (…) a ideia de “abrigo” ou alpendre protector do clima exterior e da intensa luminosidade, e também, a de abrigo acolhedor e aberto com familiaridade e sem fronteiras com a Cidade.” (RIBEIRO, 1977: 137)
Figura 7 – Embaixada de Portugal em Brasília, Raul Chorão Ramalho. 1972-1976 (Fonte: Arquitectura, n.130, maio 1977: 24).
A espacialidade do edifício da Chancelaria mostra uma conceção estrutural dominante. O volume paralelepípedo se materializa através de uma distribuição racionalista de pilares, lajes em consola, varandas, grelhas sobre espaços abertos, escadas, com fechamento de caixilhos, sombreados por palas e venezianas. As obras de arte assinadas por artistas portugueses permeiam tanto o espaço interior, com painéis de azulejos, baixos-relevos em concreto e tapeçarias, quanto o espaço externo, com esculturas e desenhos de pavimento. O edifício da Residência, por sua vez menos austero, se desdobra em volumes conjugados em volta de espaços públicos exteriores, considerando a Praça de Portugal como preexistência. Com uma escala mais adequada a uma residência, a transição entre os espaços internos e os jardins é feita através de áreas cobertas e sombreadas, com uma vedação discreta que assegura a continuidade do espaço verde em qual o edifício se insere.
Figura 8 – Chancelaria da Embaixada de Portugal em Brasília, Raul Chorão Ramalho. 1972-1976 (Fonte: http://www.monumentos.gov.pt/Site/APP_PagesUser/SIPA.aspx?id=14191 [Consult. Maio de 2024]).
Figura 9 – Residência não construída da Embaixada de Portugal em Brasília, Raul Chorão Ramalho. 1972-1976 (Fonte: Arquitectura, n.130, maio 1977: p.28).
O programa Embaixada requer, por excelência, a representação de um país, de uma cultura de partida, inserida num contexto de outro país, dentro de uma cultura de chegada. O projeto de Chorão Ramalho mostra a habilidade da inserção em Brasília, cidade-manifesto do modernismo, de uma “casa nobre portuguesa” (RIBEIRO, 1977: 32), na sua forma mais moderna e internacional. Segundo Victor Mestre, o fato desta obra não ter sido construída na sua completude mostra uma visão mesquinha dos políticos, que não parecem entender o alcance político, social e cultural que um grande edifício pode ter no futuro.
Figura 10 – Chancelaria da Embaixada de Portugal em Brasília, Raul Chorão Ramalho. 1972-1976 (Fonte: RIBEIRO, Rogério – Exposição Raul Chorão Ramalho, Arquitecto. 1977: 13-14).
3. O concurso para a residência da embaixada
Em 1994, o Ministério de Negócios Estrangeiros decide continuar com o processo de construção da Residência da Embaixada, mas sem retomar o projeto original de Raul Chorão Ramalho e Leonel Clérigo. Para isso, no final de 1995 é organizado um concurso internacional que, até então, era o único concurso de arquitetura promovido pelo M.N.E para uma Embaixada em uma capital estrangeira (mais tarde, em 1998, um segundo será lançado, para a Chancelaria e Residência da Embaixada de Portugal em Berlim).
O relatório que acompanha a exposição dos trabalhos concorrentes, organizada pelo Ministério de Negócios Estrangeiros, abre com notas sobre os objetivos e programa do concurso, mostrando a complexidade do desafio a ser enfrentado pelos participantes. Primeiro, a localização na cidade visionária pensada por Lúcio Costa é definida como base inspiracional para uma linguagem contemporânea, atual, mas também “portadora de um pensamento simbólico e emblemático” (FERNANDES, 1995: 2). Em seguida, a linguagem da Residência deverá constituir a articulação entre a linguagem original da Chancelaria projetada por Raul Chorão Ramalho em 1973 e a Praça de Portugal. Assim como a Chancelaria, o novo edifício também terá o desafio de encontrar soluções para mitigar os efeitos do clima extremamente seco de Brasília. Um outro aspeto importante a ser considerado é a relação com os limites constituídos pelo contexto existente, onde é ressaltado o equilíbrio entre a separação e ligação da Chancelaria existente com a Residência proposta. Por fim, são mencionadas observações referentes a distribuição programática, com a definição de quatro áreas principais: área de receção, área de habitação da família, área de convidados e área de serviços. Participaram quarenta e quatro equipes, resultando em três prêmios e duas menções honrosas: em primeiro lugar, Ricardo Bak Gordon e Carlos Vilela Lúcio; em segundo, Óscar da Silva Lopes e Nuno Francisco Magalhães Pinto; em terceiro, Anton Schweighofer e Pedro George. A primeira menção honrosa foi para João Luís Carrilho da Graça, e a segunda para Angêlica Baptista da Silva.
São identificados pelo júri três grandes famílias de soluções: uma em que a Residência adquire um caráter nucleado em torno de um ou mais pátios (na qual também se inscreve o volume da Residência não construída de Chorão Ramalho); uma na qual a conjugação de volumes, normalmente simples, cria espaços hierarquizados que dialogam de forma mais ou menos complexa com a Chancelaria existente; e uma terceira, com evidentes qualidades de originalidade, que delimita um espaço através de uma estrutura de cobertura, criando assim um ambiente de equilíbrio bioclimático, de penumbra e transparência.
Figura 11 – Maquete para o concurso da Residência da Embaixada de Portugal em Brasília, Ricardo Bak Gordon e Carlos Vilela Lúcio. 1995-1996 (Fonte: Acervo © Bak Gordon Arquitectos).
A proposta ganhadora de Ricardo Bak Gordon e Carlos Vilela Lúcio conseguiu não só responder a todas as demandas do concurso, equilibrando a multiplicidade de condicionantes, como também fazê-lo de maneira totalmente original, criando uma espécie de representação in vitro, assim como descrita pelo Ricardo Carvalho, ao falar sobre os dois concursos das Embaixadas em Brasília e Berlim:
“Na base destas propostas está a génese in vitro de Brasília e Berlim, à qual se responde com o programa Chancelaria e/ou Residência, enquanto representação, também in vitro, de uma identidade transportada para outro território.” (CARVALHO, 2003: 58)
Para Ricardo Bak Gordon, o único lugar onde as ideias nascem é dentro da nossa cabeça, para depois serem trabalhados e investigados através de inúmeras ferramentas que os arquitetos têm ao seu dispor. Na entrevista para o atual artigo, questionado sobre o modo como nasceu a ideia para esse concurso, ele recorda esses momentos iniciais:
“(…) houve uma espécie de epifania no dia em que olhámos para aqueles blocos paralelepipédicos, (…) pousados naquele tabuleiro, que era uma espécie de desenho do plano do Lúcio Costa, e pensámos o que seria se um deles, em vez de ser feito de betão, fosse feito de floresta. Esse foi o ponto de partida para depois fazer surgir essa hipótese de uma construção onde se pudesse habitar lá pelo meio (…) e que a cultura fosse, basicamente, a tal hipótese de viver e habitar dentro dessa mesma floresta.” (Entrevista a BAK GORDON, 2024)
Figura 12 – Maquete para o concurso da Residência da Embaixada de Portugal em Brasília, Ricardo Bak Gordon e Carlos Vilela Lúcio. 1995-1996 (Fonte: Acervo © Bak Gordon Arquitectos).
Para responder às questões postas pelo programa e pelo lugar, os autores pensaram num volume paralelepipédico, que se assemelha com a paisagem arquitetónica de Brasília, enquanto almeja uma outra dimensão, com uma posição crítica frente à cidade. Se estendendo entre os dois limites laterais do lote, a fachada virada para a Praça de Portugal carrega em si o papel da representatividade, através de um painel em pedra serigrafada, compondo um mosaico de olhos de figuras da cultura portuguesa, semelhante a uma película de filme. Nas palavras dos autores, esse gesto
“não se pretende histórico ou simbólico mas sim meramente humano, simultaneamente perturbante e abstrato, capaz de “hipnotizar” e relegar para segundo plano a materialidade da fachada.” (Bak Gordon e Vilela Lúcio in FERNANDES, 1955: 6)
Figura 13 – Fachada da Residência da Embaixada de Portugal em Brasília, Ricardo Bak Gordon e Carlos Vilela Lúcio. 1995-1996 (Fonte: Capa da Revista Arquitectos, n.155-156, Lisboa, 1996).
Esta imagem faz pensar num outro projeto participante de um concurso em 1992. Se trata da proposta de Herzog & de Meuron para as duas Bibliotecas de Jussieu em Paris, onde a fachada principal, em vidro transparente serigrafado com os rostos de escritores e académicos traz, de maneira simbólica a essência do projeto – a relação entre pessoas e textos. Herzog & de Meuron estavam introduzindo as fachadas em pedra ou vidro serigrafados desde o final dos anos ‘80, em projetos amplamente difundidos através da revista El Croquis, impactando a cena da arquitetura mundial no final do século XX. Bak Gordon e Vilela Lúcio tinham ensaiado a fachada em pedra serigrafada num concurso anterior, para a reforma dos Banhos de São Paulo, a atual sede da Ordem dos Arquitectos em Lisboa, onde ganharam menção honrosa, em 1991.
No caso da Residência para a Embaixada, esta fachada ganha dimensões dignas da representação de um país. Ao utilizar um recurso da arquitetura moderna brasileira – o chão infinito sob o vão livre – o painel da fachada oeste paira no ar, deixando a calçada em pedra portuguesa polida passar por baixo. As outras faces desse paralelepípedo, ora transparentes, ora translúcidas, filtram e absorvem o sol, criando uma estufa cujo ambiente regulado, junto aos espelhos d’água que circundam o edifício atuam como um recurso higrométrico, contrapondo o clima seco. Dentro desta estufa, uma vegetação luxuriante lembra a floresta amazônica, como um pedaço de paisagem fixado num território artificial, uma metáfora que cria uma paisagem interior. No meio dela, volumes aéreos aparentam flutuar, ligados entre si – e com a estrutura do invólucro – através de passadeiras metálicas.
Figura 14 – Maquete para o concurso da Residência da Embaixada de Portugal em Brasília, Ricardo Bak Gordon e Carlos Vilela Lúcio. 1995-1996 (Fonte: Acervo © Bak Gordon Arquitectos).
Figura 15 – Maquete para o concurso da Residência da Embaixada de Portugal em Brasília, Ricardo Bak Gordon e Carlos Vilela Lúcio. 1995-1996 (Fonte: Acervo © Bak Gordon Arquitectos).
Figura 16 – Maquete para o concurso da Residência da Embaixada de Portugal em Brasília, Ricardo Bak Gordon e Carlos Vilela Lúcio. 1995-1996 (Fonte: Acervo © Bak Gordon Arquitectos).
Não seria a primeira vez que um pedaço de floresta é transportado e acomodado num lugar diferente do original. Os portugueses têm, em Lisboa, um dos melhores exemplos desse tipo de exercício, uma referência que não pode ser deixada de mencionar. A Estufa Fria, projeto idealizado originalmente pelo arquiteto Raul Carapinha, depois reconstruida e ampliada por Keil do Amaral, é um parque situado numa antiga pedreira, coberto por ripas de madeira que protegem as plantas das temperaturas excessivas. Ao visitar este lugar, fica mais claro a intenção de Bak Gordon e Vilela Lúcio de criar um ambiente com uma atmosfera própria, um oásis protegido, no meio da cidade, onde a natureza possa prosperar de maneira independente.
Figura 17 – Estufa Fria de Lisboa. 2024 (Fonte: Fotografias da autora).
Figura 18 – Estufa Fria de Lisboa. 2024 (Fonte: Fotografias da autora).
Portanto, fica evidente a preocupação dos arquitetos com a experiência fenomenológica do projeto que eles imaginaram. Para tal fim, é utilizado o recurso de justaposição de elementos antitéticos, carregado no cerne da própria cidade modernista:
“A atmosfera de Brasília não é alheia a esse momento de síntese, equação a duas incógnitas que se confrontam – Homem/Deus, infinitamente pequeno/ infinitamente grande, impuro/puro, artificial/natural. Lunar, sideral, transcende a presença do homem, tornando-a mais metafísica do que real, fazendo recordar De Chirico.” (BAK GORDON; LÚCIO, 1995: 5)
São essas as preocupações com atmosfera desta paisagem interna, criada por vegetação luxuriante, passadeiras e volumes suspensos, onde a luz solar, sempre em movimento, é captada e filtrada pelas fachadas de ripas metálicas e refletida pelos espelhos d’água. Uma vez esgotada a preocupação estilística modernista, a arquitetura busca refúgio no campo dos sentidos, almejando criar uma espécie de miragem, de sonho, como aquele “momento do nosso cérebro que transita entre estar acordado e estar a dormir.” (Entrevista a BAK GORDON, 2024)
Partindo para uma análise programática, observamos as quatro principais áreas funcionais separadas em volumes distintos, elevados entre três e cinco metros acima da calçada e conectados pelo sistema de passadeiras. No solo, a circulação de pedestres e veículos é feita de maneira livre, com preferência para os pedestres, que tem a possibilidade de um percurso mais fluido, uma verdadeira promenade architecturale pelo organismo do edifício. O volume da residência familiar atua como interface entre a Chancelaria e Praça de Portugal, equilibrando a relação entre a esfera privada e a pública através das duas fachadas, uma transparente e a outra opaca. O volume laminar de serviços, agarrado a fachada poente, abriga, na parte inferior, os acessos verticais e o estacionamento, enquanto na parte superior cria uma ponte entre a área de receção e o volume da habitação. O volume da área de convidados foi locado na parte sul do edifício, isolado em meio a vegetação, como um pavilhão-refúgio.
Figura 19 – Implantação da Residência da Embaixada de Portugal em Brasília, Ricardo Bak Gordon e Carlos Vilela Lúcio (Fonte: Revista 2G Bak Gordon, n. 64, Barcelona, 2012).
Figura 20 – Planta Geral de apresentação dos arranjos exteriores e Perfil Longitudinal, Residência da Embaixada de Portugal em Brasília, Ricardo Bak Gordon e Carlos Vilela Lúcio. 1995-1996 (Fonte: Revista Arquitectos, n.155-156, Lisboa, 1996).
Figura 21 – Planta do primeiro pavimento e Corte A, Residência da Embaixada de Portugal em Brasília, Ricardo Bak Gordon e Carlos Vilela Lúcio. 1995-1996 (Fonte: Revista Arquitectos, n.155-156, Lisboa, 1996).
4. Influências na arquitetura de Bak Gordon
Para poder falar sobre as influências na arquitetura de Ricardo Bak Gordon, é preciso começar desde o princípio, ilustrando o panorama da formação dele como arquiteto, mas também o situando no panorama da arquitetura nacional e internacional da época. A cena da arquitetura portuguesa em 1990 se encontrava dividida entre Lisboa e Porto, dois polos gravitacionais bastante diferentes entre si, naquela época muito mais do que hoje em dia. Se trata das únicas escolas públicas de arquitetura do país, somadas a uma terceira particular, a Cooperativa Árvore no Porto. A Escola do Porto carregava a marca tutelar do arquiteto Álvaro Siza, mas também Fernando Távora, Nuno Portas e outros arquitetos que participaram ativamente na transição do 25 de Abril, na política e na arquitetura. Isto levou a uma difusão da Escola no plano acadêmico internacional, com o reconhecimento de teóricos como Kenneth Frampton, o fundador do termo “regionalismo crítico”. No polo oposto, a Escola de Lisboa seguia uma linha guiada pelo pós-modernismo, com figuras como o arquiteto Tomás Taveira, Manoel Vicente, José Deodoro Troufa Real, entre outros. Os olhares destes arquitetos lisboetas estavam voltados para nomes reconhecidos na cena da arquitetura internacional, principalmente a norte-americana e anglo-saxônica, como Peter Eisenman, James Stirling e Michael Graves. Porém, havia arquitetos em Lisboa que não seguiam os preceitos pós-modernistas. João Luís Carrilho da Graça e Gonçalo Byrne, juntamente com a Escola do Porto, cunharam a imagem da arquitetura portuguesa como uma arquitetura branca, deixando de lado a vertente pós-modernista. Em 1989, a Academia de França organizou, em Roma, uma exposição de arquitetura europeia, comissariada por Jean-Pierre Pranlas-Descours, chamada “Lieux d’Architecture Européenne”, com amostras em Madrid, Paris e Lisboa. O texto do catálogo, escrito pelo Kenneth Frampton, elogia a arquitetura moderna e os ateliês que representam centros de resistência frente a uma degradação da arquitetura e do debate teórico. Essa exposição foi um marco importante na cena europeia dos anos 1990, difundindo os principais nomes da arquitetura de Espanha, França, Itália e Portugal.
Nascido em Lisboa em 1967, Bak Gordon não teve contacto, na sua família e círculo mais próximo, com a arquitetura desde cedo. Em 1985, começou a cursar arquitetura na faculdade do Porto, se formando 5 anos mais tarde, tempo em que teve uma experiência Erasmus fora do país, em Milão. É nesse contexto que o arquiteto se situa, entre duas cidades, representadas por duas escolas de linhas muito diferentes, e uma terceira mais diferente ainda, o Politecnico di Milano, que trazia referências fortes do modernismo italiano, como Aldo Rossi e Giorgio Grassi. O fato de ser exposto a esses modos tão diferentes de ver a arquitetura confere ao arquiteto Ricardo Bak Gordon uma grande liberdade em navegar as águas de uma visão arquitetónica múltipla. Na sua atuação profissional durante a faculdade, ele transita por escritórios de arquitetura sem se identificar ou evoluir debaixo de uma sombra tutelar, assim como outros arquitetos da geração dele o fizeram. Em 1990, depois de formado, junto ao seu sócio Carlos Vilela Lúcio, abre o atelier Vilela & Gordon. Essa trajetória conjunta acaba em 2000, quando funda o atelier Bak Gordon Arquitectos, onde atua há 24 anos. Essa liberdade, que se materializou no contexto de uma formação em faculdades e cidades diferentes, só é possível acontecer de maneira natural numa base alimentada por curiosidade. O fator curiosidade é uma via de mão dupla, uma troca. Nas palavras do arquiteto, “não é só o que você recebe, é aquilo que você já tinha preparado para entregar também.” (Entrevista a Bak Gordon, 2024). Trata-se da liberdade de abrir espaço dentro de si para receber conhecimento.
No contexto da trajetória entre países e culturas diferentes há esse acontecimento, a condição que muda o rumo da vida profissional e pessoal de Ricardo Bak Gordon inequivocamente. O fato de ter ganhado seu primeiro concurso, situado a 8 mil quilómetros, num continente e país tão distante, mas, ao mesmo tempo, tão ligado a Portugal, constituiu a semente que vem brotando deste então, abrindo espaço nesse território fértil da terceira margem. Depois de ter ganhado o concurso, Bak Gordon decide viajar para o Brasil, para sanar a curiosidade e o encanto com esse país sobre o qual tanto se sabia, mas que era, até aquele ponto, desconhecido por ele. Para ele, a figura de destaque da arquitetura brasileira era o arquiteto Paulo Mendes da Rocha, cuja obra conhecia através de uma monografia publicada por Gustavo Gili em 1996. Decide entrar em contato com Paulo quando da sua visita ao Brasil e os dois se encontram em São Paulo, marcando o começo de uma amizade duradoura que continua até hoje, para além do mundo físico.
Figura 22 – Paulo Mendes da Rocha e Ricardo Bak Gordon (Fonte: Acervo © Bak Gordon Arquitectos).
Visita e estuda de perto grandes obras da arquitetura moderna brasileira, edifícios públicos como o MuBE, o MASP ou a FAU-USP impactaram e serviram de inspiração, contribuindo profundamente para o seu entendimento da arquitetura. A liberdade, característica presente desde cedo no percurso do arquiteto, encontra no Brasil o catalisador que gera uma mudança na forma de expressão, numa escala totalmente nova. Nas palavras de Ricardo Bak Gordon, a visita ao Brasil foi a semente que gerou
“uma relação de curiosidade, de descoberta, descoberta do lugar, descoberta da arquitetura, descoberta das pessoas e descoberta também de quanto do Brasil, afinal, podia dizer-se que já estava em mim. E é isso que talvez “a terceira margem do rio” fale, é que você, para se deixar conquistar, é porque alguma coisa dessa semente já existe dentro de si.” (Entrevista a BAK GORDON, 2024)
Um dos primeiros grandes edifícios de São Paulo, o MASP foi concebido em 1957 e inaugurado em 1968, pela arquiteta brasileira de origem italiana Lina Bo Bardi. Construído inteiramente em concreto armado e vidro, o volume paralelepipédico parece desafiar as leis da gravidade ao fixar, através de um imenso vão livre, um pedaço de paisagem da Avenida Paulista. O vão livre do MASP, expressão literal e metafórica de um dos preceitos do modernismo, se tornou ponto de encontro, de manifestações artísticas e políticas dentro da cidade.
Figura 23 – MASP, Lina Bo Bardi, 1957-1968. Fotografia de Luiz Hossaka, Arquivo do Centro de Pesquisa do MASP (Fonte: https://www.archdaily.com.br/br/905090/masp-de-lina-bo-bardi-completa-50-anos?ad_medium=gallery).
A FAU-USP, projeto de Vilanova Artigas e Carlos Cascaldi, foi construída em 1961. Considerado paradigma da arquitetura paulistana, foi, desde o começo, mais que um edifício: um manifesto político concretizado numa reforma do sistema de ensino da arquitetura e urbanismo, materializado em concreto armado. Vilanova Artigas traz ensinamentos fundamentais sobre espaços livres e democráticos, através de um edifício a serviço da sociedade, levantado sobre o chão comum, que abrigava “um novo estilo de vida universitária (…) um espaço que favorecesse a formação do elemento humano.” (BAROSSI, 2016: 90)
Figura 24 – FAU-USP, Vilanova Artigas e Carlos Cascaldi, 1961. Fotografia de Raul Garcez Pereira, Acervo Vilanova Artigas doado para a Biblioteca FAU-USP (Fonte: https://www.architectural-review.com/essays/building-brazil-from-the-cariocas-to-the-paulistas-to-the-now).
Ecoando todos esses valores da arquitetura brasileira, a obra de Paulo Mendes da Rocha é marcada pela grande capacidade de síntese de uma visão poética, onde “a distinção entre croqui e conceito torna-se praticamente inexistente” (SCHENK, 2010: p.18). O volume de concreto do MuBE, pairando sobre o chão infinito da cidade, se materializa em sombra criadora de emoção arquitetural. O próprio edifício se torna uma escultura acolhedora, através da marquise sutilmente alçada na paisagem, como uma “pedra no céu”. (PERRONE, 2011)
Figura 25 – MuBE, Paulo Mendes da Rocha, 1995. Fotografia de Manuel Sá (Fonte: https://www.archdaily.com.br/br/924963/museu-brasileiro-da-escultura-e-ecologia-pelas-lentes-de-manuel-sa).
Figura 26 – Croquis de apresentação do MuBE, Paulo Mendes da Rocha. (Fonte: Revista Projeto, n.183, 1995).
5. Revisão e aprofundamento do concurso
Em 2003, o Ministério dos Negócios Estrangeiros chega a solicitar uma segunda versão do projeto, desta vez de tamanhos reduzidos, visando uma redução de custos. Afinal, o anterior se tratava de um edifício de 160 por 40 metros aproximadamente, levantado 21 metros acima da Praça de Portugal, um volume bastante parecido com o Museu dos Coches, construído muitos anos depois em Lisboa, projeto de Paulo Mendes da Rocha. Uma grande caixa metálica que abrigava, para além do que era solicitado pelo programa, um pedaço de floresta amazónica. Um projeto ambicioso que, pela escala e grau de complexidade decorrente, não passou pelo filtro dos custos de construção daquela época. Mas, considerando o modo como o cenário das Embaixadas de Portugal se mostrou historicamente, entende-se que os motivos que levaram a não-construção de um edifício de tamanha importância são múltiplos, e tem muito mais a ver com o âmbito das vontades políticas.
Ricardo Bak Gordon e Carlos Vilela Lúcio se juntam novamente, agora com percursos profissionais separados, para responder a essa nova demanda, surgindo assim o Projeto 2, comandado pelo escritório Bak Gordon Arquitectos. O desafio agora era achar uma solução que fosse construtivamente mais fácil, ao mesmo tempo que não perdesse os conceitos iniciais, conceitos que permaneceram na segunda versão, mas agora configurados de outra maneira, num volume feito inteiramente de concreto armado, muito mais identificado com a paisagem arquitetónica de Brasília. A mitigação da institucionalidade da representação diplomática portuguesa e o conforto e intimidade de uma residência familiar passa, novamente, pela questão do clima:
“como confrontar um lugar que é desde sempre o paradigma do mundo moderno, cidade projetada e artificial, porém com um clima austero e seco que carece indispensavelmente de resposta.” (BAK GORDON, 2020: 141)
Figura 27 – Esquissos conceituais para a segunda versão do projeto. 2003 (Fonte: Acervo © Bak Gordon Arquitectos).
Figura 28 – Esquissos conceituais para a segunda versão do projeto. 2003 (Fonte: Acervo © Bak Gordon Arquitectos).
Figura 29 – Esquissos conceituais para a segunda versão do projeto. 2003 (Fonte: Acervo © Bak Gordon Arquitectos).
Figura 30 – Esquissos conceituais para a segunda versão do projeto. 2003 (Fonte: Acervo © Bak Gordon Arquitectos).
Figura 31 – Esquissos conceituais para a segunda versão do projeto. 2003 (Fonte: Acervo © Bak Gordon Arquitectos).
A resposta encontrou-se, novamente, no desejo de geometrizar a paisagem construída. O edifício se materializa numa construção cartesiana que parece levitar por sobre um chão infinito, uma influência direta da arquitetura moderna brasileira. A massa construída, uma alternância de cheios e vazios, foi separada nos quatro limites, através de dois volumes principais justapostos, um abrigando a residência familiar e outro, os espaços auxiliares à representação diplomática, e dois volumes laminares, levantados do chão, destinados para os acessos e as circulações. No meio, uma massa verde se desenvolve através da figura de um pátio-claustro, uma espécie de hortus conclusus que, além de conferir a privacidade necessária ao programa, contrapõe a questão climática:
“uma paisagem artificial, intensamente plantada e umidificada por uma série de espelhos e tanques de água, assegura um microclima capaz de trazer o conforto necessário ao longo de todo o ano.” (BAK GORDON, 2020: 141)
Figura 32 – Planta de situação, Bak Gordon Arquitectos (Fonte: Revista América: revista da pós-graduação da Escola da Cidade, nº 2, 2020: p. 142).
Figura 33 – Esquisso conceitual para a segunda versão do projeto. 2003 (Fonte: Acervo © Bak Gordon Arquitectos).
Figura 34 – Plantas do primeiro e segundo pavimento, segunda versão do projeto. 2003 (Fonte: Acervo © Bak Gordon Arquitectos).
Figura 35 – Plantas do primeiro e segundo pavimento, segunda versão do projeto. 2003 (Fonte: Acervo © Bak Gordon Arquitectos).
A permeabilidade dos corpos construídos, ora visual, ora física, integra o edifício com essa nova paisagem desenhada, agora exposta a céu aberto, mas também cria uma relação mais próxima com o edifício da Chancelaria existente. Em relação à Residência não construída de Chorão Ramalho, percebemos, nesta segunda proposta, uma referência mais próxima na posição, na escala, na distância. O edifício deixa de almejar dimensões palacianas e, sem confrontar a Chancelaria, toma uma forma mais doméstica, mais arejada. Enquanto o primeiro projeto era uma proposta radical, o segundo chega a se identificar mais com o entorno, ao mesmo tempo que utiliza materiais mais duradouros, sem necessidade de manutenção a longo prazo. Assim como Bak Gordon expõe na entrevista, a segunda solução não apresentou alívios significativos do ponto de vista do investimento, não sendo este o motivo para a não construção, mas sim uma distopia entre a consciência política e a consciência da representação e construção de lugares públicos.
Figura 36 – Esquissos conceituais. 2003 (Fonte: Acervo © Bak Gordon Arquitectos).
Figura 37 – Esquissos conceituais. 2003 (Fonte: Acervo © Bak Gordon Arquitectos).
Figura 38 – Foto de maquete em escala ampliada (Fonte: Acervo © Bak Gordon Arquitectos).
Figura 39 – Corte construtivo, Bak Gordon Arquitectos (Fonte: Revista América. Revista da pós-graduação da Escola da Cidade, nº 2, 2020: 149).
Figura 40 – Secções A e B, Bak Gordon Arquitectos (Fonte: Revista América. Revista da pós-graduação da Escola da Cidade, nº 2, 2020: 144-145).
Figura 41 – Secções A e B, Bak Gordon Arquitectos (Fonte: Revista América. Revista da pós-graduação da Escola da Cidade, nº 2, 2020: 144-145).
Figura 42 – Colagem realizada pela autora a partir de fotos da maquete (Fonte: Acervo © Bak Gordon Arquitectos).
6. Continuidade: a terceira margem do rio
O que é, afinal, a terceira margem do rio? Mesmo que o conto de Guimarães Rosa ofereça, com uma imensa versatilidade, uma base muito rica de significados e interpretações amplamente analisados e categorizados pelos críticos literários, ele termina de maneira aberta, sem um desfecho aparente. A narrativa roseana mostra que aquilo que permanece são as dúvidas, e não as certezas de possíveis soluções. Bárbara Del-Rio Araújo explora, na sua tese, uma visão nova sobre o conto, partindo das definições de modernidade e modernismo, contradizendo as leituras transcendentais ou místicas recorrentes. Segundo Bárbara Del-Rio Araújo, a narrativa de Guimarães Rosa
“segue mesmo é a lógica do mundo que resiste a qualquer classificação e acaba por na impossibilidade de escolher entre isso e aquilo, de chegar a uma resposta decisiva, única e final. Tudo ali é duplo, antagônico, é divisível e é ambíguo, tendo como marca a dilaceração do mundo e do sujeito moderno.” (ARAÚJO, 2016: 19)
O âmbito da literatura e o da arquitetura se encontram nessa corrente comum, a cultura do mundo moderno, com todas suas complexidades e contradições. Por um lado, podemos entender a terceira margem como esse lugar de suspensão entre dois países, com histórias e culturas diferentes que se entrelaçam. O projeto da Residência para a Embaixada de Portugal em Brasília, de Bak Gordon e Vilela Lúcio, nas suas duas versões, procura revelar o exercício de representação in vitro, da cultura de um país dentro de outro país, criando assim um lugar novo, na confluência de Portugal com Brasil: um abrigo para as pessoas, sejam cidadãos de um país ou outro, ou de um dentro de outro.
Por outro lado, podemos entender a terceira margem como um lugar interno, suspenso entre as duas margens, em constante movimento. Na natureza, sabemos que os rios transportam grandes quantidades de sedimentos em suspensão sobre o fundo, cuja carga depende da velocidade da corrente e do diâmetro das partículas. Se trata de uma relação de causa e efeito: quanto maior o peso, mais intensa a corrente. Da mesma maneira nós, que percorremos o mundo, vamos colecionando lugares, experiências e memórias nesse lugar interno, extremamente subjetivo e de grande sensibilidade. Na abertura do seu terceiro livro monográfico, Ricardo Bak Gordon menciona “essa nossa condição de estarmos a meia distância entre todos os lugares por onde já andamos, e aqueles que ainda estão para vir” (BAK GORDON, 2021), como uma mina de ouro interior onde colecionamos todas as virtudes dos lugares que nos impactam, mina de inquietações pessoais que está sempre em movimento. Para Bak Gordon, “a condição da nossa vida tem a ver com os lugares, tem a ver com o tempo, tem a ver com múltiplas circunstâncias” (Entrevista a BAK GORDON, 2024), e a parte mais rica dessa condição é a imprevisibilidade, perante a liberdade – nascida de uma curiosidade – de se deixar expor a ela. É no lugar desta terceira margem que o arquiteto diz situar a sua atuação. (BAK GORDON, 2023)
Para Paulo Mendes da Rocha, o objetivo da arquitetura é amparar a imprevisibilidade da vida. A sua visão poética e universal vem de uma grande capacidade de síntese, que foi afinando cada vez mais, ao longo da vida do arquiteto. Em uma entrevista de 2018 para El País, ele diz:
“No fundo, a arquitetura somos nós, e uma cidade é feita mais dos comportamentos dos homens do que das construções. A arquitetura ampara essa imprevisibilidade da vida.” (TEIXEIRA, 2018).
Figura 43 – Paulo Mendes da Rocha e Ricardo Bak Gordon. (Fonte: Acervo © Bak Gordon Arquitectos).
O encontro e a relação profissional que se tornou pessoal, de Ricardo Bak Gordon com Paulo Mendes da Rocha, começa com esse concurso. Mas se é verdade que a imprevisibilidade da vida juntou os caminhos dos dois, também é verdade que um tanto do modo de Mendes da Rocha olhar para o mundo já existia dentro de Bak Gordon. O atravessar é, também, se deixar atravessado. O atual estudo, assim como o conto da “Terceira Margem do Rio”, não busca fechar com conclusões, mas sim abrir a conversa, para que outros possam continuar. Uma das falas mais inspiradoras de Paulo Mendes da Rocha, parafraseando Hannah Arendt, diz que “nós todos sabemos que vamos morrer, entretanto sabemos que não nascemos para morrer, nascemos para continuar” (TEIXEIRA, 2018). Ele acreditava que a essência da existência humana é passar o que sabemos para os outros. Um pouco, ou muito dele permanece hoje, após sua morte, em várias pessoas que continuam fazendo seu trabalho, guiados pela curiosidade e otimismo específicos do Paulo.
No final da entrevista com Ricardo Bak Gordon, ao perguntar o que ele acha que permaneceu e permanecerá, como um DNA que permeia o seu trabalho desde aquele momento inicial dos anos 1990, o arquiteto confessa não ter pensado muito sobre isso. Fala sobre uma certa humildade e dedicação ao trabalho, acreditando que arquitetura é mais para ser vivida do que mostrada, vivendo e cuidando dos trabalhos de maneira intensa em todas as fases. Também fala sobre uma certa delicadeza, um modo de acrescentar valor à experiência da arquitetura:
“Se você chegar a casa e põe a chave à porta e tem uma luzinha que ilumina a sua chave e a sua mão, é mais agradável do que se não tiver. Primeiro porque vê a fechadura. Segundo porque há um símbolo que a acolhe à chegada. Pode ser uma simples luz, mas é, ao mesmo tempo, uma certa delicadeza.” (Entrevista a BAK GORDON, 2024)
Uma outra característica, também marca do Paulo Mendes da Rocha, trata sobre a liberdade vinda de um certo distanciamento, de começar cada projeto como uma folha em branco: a liberdade de começar de novo, uma liberdade de cada vez. Mesmo se o arquiteto confessou se apoiar no fato de ter pouca memória das coisas, o esquecimento nada mais é do que a chave para poder aceder a mina de ouro interna e fazer ressurgir, sob uma lente própria, os valores ali guardados.
Figura 44 – Fotografia do atelier Bak Gordon Arquitectos, realizado durante a entrevista para a investigação. 2024 (Fonte: Fotografia da autora).
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