Alexandre Marques Pereira
Arquitecto. Professor Auxiliar na Faculdade de Arquitectura e Artes da Universidade Lusíada de Lisboa e Investigador no CITAD
Para citação: PEREIRA, Alexandre Marques – Do Norte e do Sul, da Viagem e do Retorno. Estudo Prévio 9. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2015. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]
Resumo
Asplund não foi o último nem foi o primeiro arquiteto nórdico a viajar para Sul. Na realidade, os territórios e as diferentes culturas que aconteceram no Mediterrâneo – seja na península de Itália, ou da Grécia, passando pelo norte de África -, esse Sul com mais de mil anos de história, foi o “destino” para grande parte dos homens (e mulheres) de cultura, arquitetos ou não, do Norte e do Centro da Europa. Esta viagem, conhecida como a Grand Tour, era vista, desde finais do século XVIII, como um tempo único de passagem, entre o tempo de formação e o tempo da vida que se lhe seguirá. Era o momento de passar da escolástica e da condição restrita de jovem aprendiz e estudante, para entender que só “ir” e ver o mundo com alguma maturidade seria o caminho de perceber o outro, o significado da sua Cultura, dos seus lugares, ou dos seus costumes, para então chegar à condição de “cidadão do mundo”.
Palavras-chave:Asplund, Grand Tour, contaminação, Norte, Sul.
Fig.1 – Asplund na Vila Adriana, em 1914.
Erik Gunnar Asplund, a Grand Tour e a contaminação a Norte pelo Sul.
“…Que formoso é ver um templo erguido imóvel entre o verde, com árvores ao redor e com uma praça de arena livre frente ao mesmo, não demasiado grande! Um dia maravilhoso…” (Peláez; Mansill, 2002, p. 295)
E.G. Asplund, Agrigento, 15 de fevereiro de 1914
Asplund não foi o último nem foi o primeiro arquiteto nórdico a viajar para Sul. Na realidade, os territórios e as diferentes culturas que aconteceram no Mediterrâneo – seja na península de Itália, ou da Grécia, passando pelo norte de África -, esse Sul com mais de mil anos de história, foi o “destino” para grande parte dos homens (e mulheres) de cultura, arquitetos ou não, do Norte e do Centro da Europa. Esta viagem, conhecida como a Grand Tour, era vista, desde finais do século XVIII, como um tempo único de passagem, entre o tempo de formação e o tempo da vida que se lhe seguirá. Era o momento de passar da escolástica e da condição restrita de jovem aprendiz e estudante, para entender que só “ir” e ver o mundo com alguma maturidade seria o caminho de perceber o outro, o significado da sua Cultura, dos seus lugares, ou dos seus costumes, para então chegar à condição de “cidadão do mundo”.
Assim, a ênfase na trajetória e contaminação Norte-Sul, não é feita à margem da consciência da cultura globalizante, onde Asplund se formou, na cidade de Estocolmo. Ou não fosse o Mediterrâneo o teatro perfeito para diversas das mais importantes culturas globalizantes ao longo da História, da Grécia Antiga, passando por Roma, até ao Renascimento. Para Asplund, que fez muitas outras viagens, esta foi de facto a sua Grand Tour, para poder deixar de ser apenas um arquiteto do Norte – como aliás podemos constatar nos seus registos de viagem, sejam escritos, fotografados ou desenhados, bem assim como nas constantes referências, mais ou menos diretas, que mais tarde encontraremos nos diversos projetos e obras que Asplund elaborou e construiu, ao longo da sua curta vida como arquiteto. Obras que bem cedo ganharam um significado, muito para além da cultura nórdica.
É, pois, neste senso que o caso da Grand Tour de Asplund é exemplar, pois terá sido porventura um dos últimos arquitetos da prática e do ofício a fazer essa longa viagem num tempo único e contínuo, na tradição do Romantismo Neoclássico oitocentista. Visitando, de uma forma sistemática, a maioria dos locais, paisagens e obras de referência do passado e do presente à época – seja no registo clássico e erudito ou no registo vernacular, seja da arquitetura, da pintura, da escultura, ou dos outros possíveis universos culturais, assim como da vida e do quotidiano de boa parte desse Sul Mediterrânico por onde passou.
Asplund deixou todo esse notável testemunho num único caderno, ou diário de viagem. Lá encontramos os sítios que tantos arquitetos, e outros, visitaram antes ou depois, sítios como Roma, a Villa Adriana, Florença, Siena, Veneza, Nápoles, o Vesúvio e Pompeia, os Templos Gregos de Paestum não muito longe de Nápoles, ou em Agrigento na Sicília. Assim como o deslumbramento das cidades árabes do norte de Africa.
Sítios por onde também passaram, Sigurd Lewerentz, Arne Jacobsen, Alvar Aalto, Jorn Utzon, estes arquitetos modernos, igualmente vindos também do Norte, ou John Soane, Viollet-le-Duc, Le Corbusier, Louis Kahn, entre tantos outros, vindos de outras culturas, outros tempos e latitudes, para já não falar das célebres viagens de Byron, ou de Goethe com a sua “Viagem a Itália”.
É assim que, em novembro de 1913, Asplund, então um jovem arquiteto com 28 anos, depois de um ano de trabalho árduo, após ter completado a sua formação em 1912, parte então para a sua “Grand Tour”, acompanhado do seu amigo e colega de formação Bensov.
A viagem começa por França, onde a meio de dezembro, numa carta a um amigo conterrâneo sueco, Asplund expressa o seu desagrado pelo que viu até aí, referindo-se a França como “um perdido país camponês” (Peláez; Mansill, 2002, p. 20). Assim, rapidamente se dirige para Itália, embarcando em Marselha num barco com passagem por Génova e Livorno, desembarcando em Civitavechia, chegando a Roma no final de dezembro.
E é aqui em Roma, que de facto começa a sua apaixonada viagem de “redescoberta” do Sul e da vivência desse “Outro Mundo” e da sua Cultura, dos seus factos e artefactos. De Roma segue para Nápoles, onde embarca rumo à Sicília e a Palermo, onde visita Agrigento, Siracusa, Taormina, Messina, atravessando de seguida o Mediterrâneo até Tunes, Regressando a Palermo a 12 de março, subindo depois para norte e voltando a Nápoles, para visitar Pompeia. Seguindo para Roma de novo, sendo que pelo caminho visita Paestum e a Villa Adriana. Daqui segue para Assis, Perugia, Siena, São Geminiano, Florença, Bolonha, Ravena, Veneza, Vicenza e Verona, onde em finais de maio regressa de avião a Estocolmo.
Desta viagem de cerca de seis meses, Asplund, nos seus cadernos de viagem, vai registando, em jeito de diário, com belas e inspiradas notas e divagações escritas, assim como com expressivos desenhos e fotografias, as suas diversas impressões sobre a paisagem, a arquitetura erudita e vernácula dessas diversas terras por onde vai passando. Seja dos exemplos das obras mais notáveis, das ruínas das cidades e Templos da antiguidade, seja dos costumes das populações, seja da luz, da cor, etc.
É evidente o seu crescente entusiasmo, isto à medida que vai seguindo cada vez mais para Sul, sendo bem claro que o interesse de Asplund é igualmente e intensamente direcionado, seja qual for a natureza do objeto ou assunto: seja um interior duma qualquer igreja ou palácio renascentista, a análise da composição arquitetónica, a simplicidade, requinte e eficácia duma qualquer estratégia conceptual, a desilusão com aquela outra obra, ou a beleza duma paisagem, a utilização da cor e dos materiais, a surpreendente qualidade da luz, o esplendor da natureza, ou a jovialidade e peculiaridade da vida e dos costumes, destes lugares cheios de sol e sombra.
Fig.2 – Desenhos de Viagem [E.G. Asplund- Arkitekturmuseet, Estocolmo.]
Asplund permanece cerca de um mês em Roma, onde se destacam, dos seus registos de viagem, três momentos em particular. O primeiro é a visita à Basílica de Santa Maria in Aracoeli, ficando especialmente tocado pela imponente escadaria de acesso, fazendo-nos reportar para a escadaria que projetou anos mais tarde, para o ingresso da Biblioteca de Estocolmo (1920-1928), ficando aqui também sensibilizado com o requinte e a qualidade da luz do interior da Basílica. O segundo momento é no Castelo de S. Ângelo, na imponência do grande volume cilíndrico sobre um embasamento horizontal, e a relação do ingresso e o enfiamento com a delicada ponte sobre o rio Tibre, que nos lembra ainda o seu projeto da Biblioteca de Estocolmo.
Fig.3 – Restaurante em Aventino [E.G. Asplund- Arkitekturmuseet, Estocolmo.]
O terceiro momento é a calorosa descrição do já desaparecido Restaurante no Castelo dos Césares em Aventino, à época reconhecido por muitos como o melhor restaurante de Roma.
Asplund descreve-nos, quer graficamente quer por palavras, ou através das suas belas fotografias, a delicadeza da estrutura e dos envidraçados da grande sala, com a sua panorâmica vista sobre as outras seis colinas de Roma.
Do caminho de Roma para Nápoles, as palavras de Asplund são claras na particular sensibilidade em relação ao tema da paisagem, como mais tarde podemos observar nas suas obras, em especial no Cemitério do Bosque em Estocolmo (1915-1940), projetado em parceria com o seu colega e amigo Sigurd Lewerentz, o qual também fez a sua viagem pelo Sul, visitando em Itália quase os mesmos lugares.
Em Nápoles, fica encantado com a sua vida, a relação da cidade com o porto, o mar e a presença do Vesúvio. Ao chegar à Sicília, a Palermo, encontra um lugar particularmente rico e diferente, como espaço de encontro e miscigenação de diversas culturas, desde a presença Normanda à presença do Oriente e à cultura Árabe, assim como com as fortes marcas do Barroco, passando pelos magníficos testemunhos do Classicismo Grego, em Taormina e Agrigento.
Mas Asplund, ao longo da sua viagem, apesar de se ir rendendo em crescendo aos encantos do Sul, vai fazendo uma observação crítica, seletiva, preferindo sempre os exemplos das arquiteturas mais assertivas, mais claras e mais simples, distinguindo bem quando as misturas das diversas intervenções ao longo do tempo não se atropelavam toscamente umas às outras.
Em Agrigento, Asplund visita, observa, estuda e deleita-se, pela primeira vez, com um Templo Grego em todo o seu esplendor, como mais tarde aconteceu próximo de Nápoles, em Paestum.
A passagem de Asplund pela Tunísia, a meio da sua longa viagem, terá sido, pelas suas descrições, um momento particularmente sensível, não tanto pela existência de qualquer obra singularmente notável, mas pela experiência única de estar num local com uma luz, uma vivência, um ambiente e uma cultura completamente opostos às suas origens nórdicas. Nomeadamente, quando se refere ao céu de um azul que nunca tinha visto antes, como uma belíssima abóboda pintada à escala do mundo.
Em relação à arquitetura árabe, Asplund realça o contraste entre o dentro e o fora, entre a simplicidade e a continuidade formal dos espaços exteriores, na delicada proporção das ruas e ruelas da Medina, na força da luz, e o surpreendente conforto dos espaços interiores, nomeadamente no controlo preciso da luz e da sombra para a qualificação desses mesmos espaços interiores, ou, ainda, nos espaços de fronteira e transição entre o dentro e o fora, como aqueles que encontrou no Kasbah de Tunes.
Fig.4 – Tunes [E.G. Asplund- Arkitekturmuseet, Estocolmo.]
No dia 12 de março, Asplund parte da Tunísia, passa por Palermo e regressa a Nápoles, onde permanece até ao dia 21 de março, quando parte para Roma.
Asplund, nesta segunda passagem por Nápoles, de cerca de dez dias, agora com tempo, visita a cidade com mais cuidado, mas desta vez não fica particularmente agradado, com a exceção do museu local, pois então descreve Nápoles como uma cidade suja e ruidosa. Durante este tempo em Nápoles, a sua atenção e interesse focam-se então nas visitas ao Vesúvio, nas ruínas de Pompeia e nos Templos Gregos de Paestum.
Asplund, como alguém oriundo de uma cultura com especial sensibilidade aos factos da natureza e da paisagem, fica obviamente convertido e impressionado com a força da natureza, quando, depois duma longa caminhada, chega finalmente à cratera do vulcão, com a sua única e particular atividade adormecida, onde o respeito pelos factos da natureza é o senso que fica.
Em Pompeia, Asplund emociona-se com os sinais do trágico fim da cidade, e dos seus habitantes, admira e imagina, com especial enlevo, o antigo esplendor que terá sido, em tempos, a vida naquela cidade: como um outro testemunho dum classicismo singular, de caráter próprio e com óbvias ligações ao classicismo grego, não só em termos urbanísticos, com nas suas ruas e espaços públicos, mas também à escala da arquitetura doméstica, com o requinte e delicadeza das suas casas, dos seus pátios, dos seus espaços privados com os seus delicados frescos.
Na sua descrição de Pompeia, Asplund abre-nos muitas pistas do muito que poderemos encontrar mais tarde nas suas obras, além, claro, do seu testemunho emocionado, sobre a memória do terrível fim dos cidadãos, daquela antiga cidade romana. Mas, fundamentalmente, na descrição que Asplund nos deixa da arquitetura romana de Pompeia, podemos ler a sua leitura de uma génese grega na composição e no formulário arquitetónico que ali encontrou, tanto construtivamente como conceptualmente. No entanto, Asplund encontra aqui uma dimensão humana e estética, bem diferente da dos Templos gregos, uma outra dimensão mais à escala do homem, na sua procura do conforto doméstico e na delicadeza dos elementos construtivos e decorativos. Asplund descreve-nos um ambiente arquitetónico vivo, que só uma verdadeira arquitetura culta pode tornar possível, uma arquitetura que também é cidade e, mais que isso, descreve-nos um conteúdo humanístico enraizado no seu modus vivendi, que encontra reciprocidade nas suas formas arquitetónicas.
Fig.5 – Paestum [E.G. Asplund- Arkitekturmuseet, Estocolmo.]
Em Paestum, ao observar um dos antigos Templos Gregos, Asplund experimenta emoções próximas das que sentiu em Agrigento, ao ver então pela primeira vez o Templo da Concórdia. A descrição de Asplund ao visitar Paestum durante uma tempestuosa tarde primaveril, faz-nos lembrar, curiosamente, uma síntese da estética do pitoresco e do sublime, não tão distantes no tempo, síntese essa também próxima do próprio Neoclassicismo da primeira metade do século XIX – onde a magnitude dos fenómenos naturais e da história se tornam tangíveis ao homem, enquanto ser sensível, quer pela consciência dessa magnitude, quer pela sua presença. Isto quando finalmente se toca numa pedra milenar, trabalhada por aquele “Outro” construtor, vindo algures de Atenas ou Creta; tudo enquanto se está a sentir as gotas de água da chuva refrescante, no meio de uma breve tempestade com mil anos de memórias, tudo ali, naquela formosa ilha entre o Sul da Europa e o Norte de África, e naquela específica paisagem idílica.
De volta a Roma, onde se separa do seu amigo Bensov, Asplund segue para norte, passando pela região da Umbria, por Assis e Perugia. Em Assis, regista em particular as relações de composição, da escala, da luz e da atmosfera da Basílica e de outras diversas igrejas, como Sta. Chiara e S. Francisco. Aqui descreve-nos a relação de contraste entre o ambiente e a penumbra circunspecta da cripta, com a luminosidade gótica da nave central, assim como a beleza e delicadeza dos frescos de Giotto na Basílica superior, iluminados pelas grandes janelas góticas das naves laterais.
Em Perugia, além da constante observação e estudo da composição, e das proporções das casas e dos palácios renascentistas, Asplund realça a relação de harmonia entre a vida nas ruas e praças, com as arquiteturas que as enquadram.
É neste mesmo registo, que a viagem segue para norte, para a região da Toscânia, para Siena e Florença, seguindo até ao Vêneto, para Veneza, Vicenza e Verona. No seu diário, Asplund continua a registar os pormenores construtivos e decorativos, a elegância dos arcos e das colunas, das janelas, dos baldaquinos e das loggias, assim como as observações de agrado e desagrado, com a composição desta ou daquela fachada, dos palácios e das igrejas, o ambiente duma qualquer rua, ou das formosas praças das várias cidades que vai visitando – culminando o seu esplendor pelo Sul nos canais, nas pontes, nas ruelas e nos becos de Veneza, assim como nos seus delicados palácios e, claro, na única Praça de São Marcos, com a sua geometria em planta, a sua escala justíssima, rodeada pela colunata das Procuradorias – indo então depois para Vicenza e, finalmente, Verona.
Fig.6 – Veneza [E.G. Asplund- Arkitekturmuseet, Estocolmo.]
Daqui do Vêneto de Palladio, Asplund, então com 29 anos de idade, retorna de avião à sua Estocolmo natal. Para, depois, nos seus próximos e restantes escassos anos de vida, duas décadas e meia, então projetar e construir um conjunto de obras notáveis, onde para sempre estarão presentes as suas memórias desta viagem e o seu imenso respeito pela Cultura do Sul.
No ano de 1940, depois de acabar o projeto e obra do Crematório do Cemitério do Bosque, em Estocolmo, a sua última obra (sem dúvida, a mais depurada releitura moderna de um qualquer Templo, e de um Pórtico sobre a Paisagem), Asplund morre em Estocolmo, com 55 anos, depois de não resistir a um último ataque de coração, estando sepultado neste mesmo cemitério, nessa obra, máximo exemplo arquitetónico da contaminação entre a cultura do Norte e do Sul, no universo da Cultura Ocidental e da História da Arquitetura. Obra que neste caso era simultaneamente Moderna e Clássica, de hoje, de ontem e de amanha, numa palavra: Perene.
Bibliografia
PELÁEZ, José Manuel López; MANSILLA, Luis Moreno (2002) – Erik Gunnar escritos 1906/1940, caderno de viaje 1913. Madrid: El Croquis Editorial.