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António Marques Miguel

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A UTOPIA

Thomas More (1478-1535), Sir e São

A obra “Sobre o melhor estado de uma república e sobre a nova ilha Utopia”, conhecida  correntemente  por  A UTOPIA, elevou Thomas More a figura incontroversa da Renascença,  no duplo sentido de cultor das letras e defensor dos direitos civis.

A REPÚBLICA de Platão, apesar dos seus já dezanove séculos, foi decerto inspiradora do inglês, diplomata eChanceler do Reino de Henrique VIII, pelo tema de filosofia política, que denuncia a injustiça da polis, recuperando More ainda algum ideário daquela e os modos de diálogo.

 

More, convicto cristão e servidor, acima de tudo, do seu Deus, que de si disse ser “ De família honrada, sem ser célebre”, teceu a obra com três intervenientes; ele próprio, o seu amigo Peter Gilles, de Antuérpia, e o marinheiro “ nascido em Portugal “  Rafael Hitlodeu, por aquele apresentado, porquanto “ Não existe na terra nenhum outro capaz de dar tão completos e interessantes pormenores acerca dos homens e das regiões desconhecidas ”.

 

Na trama moriana, o personagem narrador é o seu alter ego (PINA MARTINS, 2006), um marinheiro que acompanhou o navegador florentino Amerigo Vespucci nas suas viagens ao Novo Mundo. Na óbvia ficção, a escolha de Rafael, nome bíblico e da segunda caravela na viagem de Vasco da Gama à Índia, acrescido do apelido Hitlodeu, traduzível por “tagarela ”, espelha, e qualifica, as opções de Thomas More que teria conhecido os Itinerarium Portugalensium que narravam, com pormenores, aventuras extraordinárias de viagens e descoberta de novos povos.

More  eivado pelo desencanto da sua Europa, imagina que só no Novo Mundo, existirá um lugar de uma felicidade entre homens, organizado, a ilha dos utopianos, em nenhures, fazendo da Outopia (não-lugar) uma Eutopia, lugar feliz.

 

Thomas More que sempre serviu o seu Rei, suportando algumas contradições, tinha como seu amigo, o grande humanista e pedagogo Erasmo de Roterdão (1466-1536), visitavam-se nas suas respetivas cidades, sabendo-se que o Elogio da Loucura(1509), a importante obra reformista, crítica da sociedade da época, incluindo a Igreja, foi escrita e discutida entre ambos, em Londres.

Foi porém Peter Gilles, o seu primeiro grande conhecimento em Antuérpia, que tinha nas suas relações intelectuais e artistas, Guillame Budé, Lefèvre d’Étapes, Thierry Martens, Albrecht Dürer, entre outros, que lhe apresentou Erasmo e publicou a edição princeps de A UTOPIA (1516) com a supervisão deste.

 

A obra estrutura-se nos Livro I eLivro II, aparecendo, nas traduções, acrescida por algumas cartas do autor e de seus contemporâneos, e ainda do Alfabeto Utopiano que inclui Versos Sobre a Ilha da Utopia.

O Livro II , que, na feitura, teria sido o primeiro, é “uma descrição dessa ilha maravilhosa. Não omiteis nenhum pormenor, peço-vos ”, assim More disse a Rafael, a que este respondeu “mas a narrativa é demorada.“ (…) “ Entrámos então em casa para jantar e voltámos depois ao jardim sentando-nos no mesmo banco. ” (…) ” Ele, ao ver a nossa curiosidade ávida e atenta, recolheu-se um instante em silenciosa meditação e começou nestes termos: (Livro II) – A ilha da Utopia tem dois mil passos na sua maior largura, …”.

Este Livro segundo, do modo de viver dos Utopianos, desenvolve-se em oito capítulos que vão da descrição física dos territórios, onde as suas cinquenta e quatro cidades são semelhantes (Amaurota é uma delas, sede do governo e do senado), ao último sobre as religiões praticadas; passando pelos magistrados/zelo pela justiça; o trabalho mínimo de seis horas, essencialmente na agricultura, que todos praticam; os deveres e direitos de família; da cidadania; das viagens que empreendem; da  distribuição de bens (não há propriedade privada) e da guerra.

 

Os mais aptos formam a elite culta, mas todos os cargos são eleitos. Escravos são os ladrões, ou os de comportamentos menores, mas não pelos seus progenitores, ou ainda inimigos de guerra apanhados com armas. Os casais conhecem-se obrigatoriamente nus e o adultério é reprovado com pesadas penas; aqui prevalece a moral cristã.

 

O Livro I desenvolve-se em diálogos, primeiro entre More e Pedro Gilles, depois com Rafael e ainda deste com um quarto personagem o “ eminentíssimo John Morton, cardeal-arcebispo da Cantuária e Chanceler de Inglaterra ”.

Este Livro, pela pena de More aborda dois polémicos temas: a conveniência ou não da participação do filósofo no conselho aos príncipes e a punição (pena de morte) aplicada a ladrões em Inglaterra.

More pensa que os filósofos tinham a responsabilidade e o deviam fazer, de proporcionar ensinamentos sólidos, conselhos preciosos e assistir aos reis. Quanto aos ladrões, se houvesse condições iguais para todos não haveria pretexto para roubos.

Em primeiro lugar os príncipes preocupam-se apenas com a guerra: arte que me é desconhecida e que não tenho desejo algum de praticar.

A morte é, neste caso, o castigo injusto e inútil: demasiado cruel para punir o roubo e demasiado forte para o impedir.

Estas são falas de Rafael, o marinheiro que lia grego e se “ dedicou predominantemente à filosofia ” e não de Thomas More, como autor.

Mas algumas das “ suas contradições ” não invalidam a firmeza de convicções de que o grande exemplo foi recusar prestar juramento, nos termos do “ Decreto da Sucessão ” e do “Ato de Supremacia ”  – decorrente da união de Henrique VIII com Ana Bolena – por fidelidade à sua própria consciência e fé, o que lhe valeu, “ por clemência “  do já “ cabeça da Igreja de Inglaterra ”  a pena de “ simples decapitação ” em vez de “ ser suspenso pelo pescoço ” e cair em terra ainda vivo para ser “ esquartejado e decapitado.”

Foi este facto que o levou como mártir, à canonização pela Igreja Católica, em 9 de maio de 1935. Erasmo elogiou-o como homem “ cuja alma era mais pura do que qualquer neve.” Sir  já o era pelos feitos à coroa inglesa.

 

A história regista ainda a coragem de Thomas More, a sua ironia e bom humor, quando a caminho do patíbulo disse ao tenente da guarda ”Ajuda-me a subir com cuidado, que eu para baixo amanho-me sozinho ” e lá, puxou as barbas para o lado porque nunca tinham ofendido o Rei.

Foi este humanista, inglês cristão, descrevendo o espaço de cidadania, a cidade com contornos físicos, que assumidamente escreveu hà quase 1700 anos, a primeira e das mais belas utopias humanas (seguiu-se A Nova Atlântida  de Francis Bacon em 1627), idealizando o Homem restituído à sua dignidade, criticando a razão de Estado em nome dessas exigências, e ficcionou Rafael.

A dignidade real não consiste em reinar sobre mendigos, mas sobre homens ricos e felizes. “

Mas Thomas More bem entendia o ser humano, por isso ainda escreveu  “ Além disso, não estava seguro que ele (Rafael)fosse capaz de sofrer pacientemente a contradição” , a sua Utopia a continha, por isso humana, também retrato dele próprio.

Louvou as instituições criadas por Utopus, fundador da ilha, mas concluiu assim a sua obra: “ Desejo-o mais do que espero”.

 

Óscar Wilde disse que a cada janela aberta outra se oferecia, referia-se à utopia e escrevia então “ A alma do homem sob o socialismo.“

As utopias, fonte de alternativas, não são criticáveis, os utopismos, simples irrealismos, sim.

 

Novembro de 2012

António Marques Miguel

 

Bibliografia

A UTOPIA, Tomás Morus, Lisboa, Guimarães Editores, 9ª edição, 1994

Tradução de José Marinho, Notas e Postfácio de Pinharanda Gomes

 

VTOPIA ou A melhor forma de governo, Thomas Morvs, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2ª edição revista, 2009

Tradução, com prefácio e notas de comentário de Aires A. Nascimento

Estudo introdutório de José V. de Pina Martins

Recuando ao ano letivo 2002-2003, e à disciplina “ Pensamento e Comunicação ”, quarto ano, eram então dezasseis alunos, propusemos a leitura desta obra para depois a “comunicarem ” entre texto e desenho. Com gosto, anexo “ uma seleção ” parcial de trabalhos, para memória futura dos alunos do Departamento de Arquitetura/UAL.

 

A Ilha desenhada com o Alfabeto Utopiano

Alexandra Vieira

(…) “Platão e Tomas Morus mostraram que o Homem vale por aquilo que consegue ser e fazer, independentemente das suas características exteriores. Mostraram a verdadeira procura da verdade, os Homens, na verdade, procuram a verdade, mas muitas vezes, não podem viver com ela.”

 

Carlos Lemos Sequeira

“DA INTRODUÇÃO DO ERRO NUM SISTEMA CÍCLICO, SURGE A EVOLUÇÃO”

 

 

João Caria Lopes

“Não sou de lugar nenhum, não tenho mãe nem pai, vivo na ilha da Utopia. Sou o João Pedro Utopos…”

 

Miguel Marcelino

“(…) nem sempre a Utopia foi uma ilha, Utopos apoderou-se dela e deu-lhe o seu nome”.

 

Ricardo Barbosa Vicente

O “Triunfo político” em que a liberdade se torna, faz perder de vista os verdadeiros termos em que ela se coloca”