Manuel Tainha (1922-2012)
Para citação: TAINHA, Manuel – Aquilo que vale a pena saber. Estudo Prévio 20. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2022, p. 118-122. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/20.17 (ed. original 1999). Publicado a partir de TAINHA, Manuel – Manuel Tainha, Textos de Arquitectura. Casal de Cambra: Caleidoscópio, 2006, p. 55-60.
Aquilo que vale a pena saber
Os intelectuais são uma classe queixosa. Uma classe que, segundo W. Lepenis, “não conhece outros estados que não sejam a melancolia e a utopia”. Estado a que quase sempre está associado um sentimento de culpa pelo estado do mundo.
Ora, no que diz respeito ao ensino da Arquitetura, eu acho que antes de mais nada temos de nos libertar desse irritante sentimento de culpa. Culpa por não praticarmos aquele ensino acima de toda a suspeita – que ninguém sabe ao certo o que é. Culpa por não produzirmos aquelas estrelas que iludam o nosso descontentamento. Culpa, enfim, porque a relva do jardim do Vizinho é sempre mais verde do que a nossa. O velho síndrome lusitano.
Este, o retrato que com muito zelo pintamos na parede, para que conste. Ora eu acho que se não temos que provar que somos os melhores, também não temos que provar que somos os piores. (“Que coisa é essa amigo que te põe de bem com os outros e mal contigo”) Basta que nos habituemos a viver com lucidez as contradições e incertezas inerentes ao ensino da Arquitectura – e que muitas são. Teremos que viver com elas sem nostalgia nem mortificação; e filosoficamente dizer como Leonardo: se não consegues fazer o que pensas, ao menos pensa o que fazes. Os filósofos sempre foram gente amarga. A este propósito, e para desdramatizar a pintura, gostaria de recordar duas ou três coisas.
1. Que o caminho da aprendizagem não é a rota do Sol, um progresso em linha recta, do menos para o mais. Pelo contrário, ele tem altos e baixos avanços e recuos, tempos rápidos e tempos lentos de progressão.
Acontece até que por vezes o período de maior receptividade e motivação do aluno não coincide com o seu ciclo académico. Como disse aquela que do amor tudo sabia: “o importante para uma boa relação amorosa entre um homem e uma mulher não é que eles se amem muito, mas que eles se amem muito ao mesmo tempo.
2. Que a mente do aluno não é uma caixa vazia que mecanicamente se vai ocupando à medida que ele avança nos estudos. Pelo contrário, a mente vai-se-lhe formando, estruturando e qualificando a passo das suas experiências e dos conhecimentos adquiridos. Até chegar àquele momento luminoso em que ele, o aluno, é capaz de formular um pensamento arquitectónico… O que, a não ser um dom natural, é a coisa mais difícil de alcançar, como bem sabemos. Então, e só então, ele está pronto a seguir caminho pelo seu próprio pé.
Além de que o próprio aluno traz consigo, dentro de si como qualquer ser humano, uma vastíssima experiência do espaço, vivida a todas as escalas (do quarto, à casa, do bairro à cidade, da Natureza…). Experiência essa que importa elevar ao nível da consciência que ele depois projecta nos seus actos de aprendizagem; interiorizando a ideia de que a arquitetura é coisa nossa, de todos.
3. Que nem todos os indivíduos têm o mesmo tempo e o mesmo ritmo de apreensão dos factos e conhecimentos quando tidos e havidos numa mesma situação de aprendizagem. Todos temos narizes diferentes; e temos o direito de os ter. Condição esta insuperável nas actuais condições do ensino de massas; agravada pelo facto de que a população escolar já há muito deixou de ser um corpo uno e homogéneo, pois dele fazem parte indivíduos de diferentes estruturas culturais.
4. Que o ensino é uma coisa admirável, desde que se tenha bem presente que aquilo que vale a pena saber não se ensina; aprende-se.
A ser isto verdade, como julgo que é, a função maior da Universidade será então a de ensinar o aluno a aprender. Aprender não só aqui, na Universidade, mas também depois pela vida fora, no exercício da profissão.
O autodidatismo – com ou sem mestre à vista – não é um pecado, um estigma, ou o produto de um défice de ensino. Ele é, pelo contrário, uma via superior de aprendizagem, na condição única do aluno possuir uma forte motivação para o fazer. É essa motivação que a cada passo deve ser estimulada.
Toda a filosofia do ensino da Arquitetura está para mim contida nestas simples palavras de Wittgenstein: “É como se eu me tivesse perdido e perguntasse a alguém o caminho para casa. Ele diz que mo vai mostrar e acompanha-me ao longo de um caminho agradável e tranquilo. Este finda de repente. E então o meu amigo diz-me: agora tudo o que tens a fazer é procurar o caminho para tua casa a partir daqui”.
5. Em todas as situações de aprendizagem em que nós, docentes, envolvemos o aluno, este deve reconhecer sempre aquilo que lhe está a ser ensinado. Melhor, o aluno deve ser levado à descoberta daquilo que se lhe está a ensinar. Este simples enunciado de princípio configura para mim o verdadeiro valor e sentido do método heurístico, o exacto contrário do método dogmático. Por isso ser-me-à lícito afirmar que o valor do método não pode ser entendido apenas em termos finalísticos de realização, mas sobretudo em termos formativos e cognitivos. Saber em cada momento o que é que se está a fazer.
Agora.
Gostaria de passar-lhes uma ideia que entretanto se me foi formando não só como docente mas também como arquitecto. E esta ideia é a de que por mais voltas que se dêem a Arquitetura aprende-se fazendo-a. E isto pela razão simples de que a Arquitetura não é uma Disciplina, na acepção comum do termo, isto é, um “corpus” de leis, conceitos e teorias formativas de um saber institucionalizado pela prática. E daí as dificuldades que todos encontramos no fazer o ensino; e no seu entranhado experimentalismo.
Mas fazê-lo como, se nós não podemos reproduzir neste lugar as condições reais da prática profissional?
Ora, a não ser viável nas actuais condições reproduzir aqui uma versão contemporânea da Casa do Risco pombalina, que haveremos nós de fazer senão pôr o nariz ao vento e os olhos no horizonte e procurar racionalizar o nosso aparelho didáctico, assumindo corajosamente a sua lógica própria, as suas contradições e aporias.
Essa via passa, a meu ver, pela criação dos três tipos de situações de aprendizagem que, sendo já hoje praticadas, carecem no entanto de ser restitutdas à sua própria lógica interna.
– Uma, é o ESTUDO DE CASOS REAIS (do passado remoto ou recente, ou actuais). Este estudo terá por fundamento a ideia central de que os conteúdos disciplinares (geografia, filosofia, gostos, tecnologias, sociologia, economia, história, etc.) estão sedimentados na própria forma arquitectónica e nela perduram enquanto essa forma durar. É por isso mesmo que a arquitetura é um livro aberto à leitura da sociologia, da história, da economia, etc., de um tempo e de um lugar.
Será pois à percepção e à descoberta deste processo de formação – mais do que à forma em si mesma – que o aluno deve ser conduzido:
esse excitante exercício de descodificação ou decifração de sinais. Mas para que isso dê certo é condição número um que a todo o momento lhe seja inculcada a irrevogável integridade do facto arquitectónico.
Com efeito em todas as démarches de aproximação aos factos arquitectónicos – prática, teórica, histórica – deve observar-se sempre a sua integridade.
Este será talvez o melhor antídoto contra a prática da decomposição das ciências ancilares da arquitetura em que ele (o aluno) se vê enredado, e que são abordadas separadamente e, quem sabe, se necessariamente?
Para analisar uma noz é preciso quebrá-la. Porém, a ser necessário, este preceito científico da análise deve sempre confrontar-se com o seu contrário: a síntese, corporizada na forma arquitectónica. E nada melhor para este efeito do que os estudos de casos reais.
• Outra modalidade ou situação de aprendizagem reside nas ações de curto prazo e de meta curta ou de “meio-caminho-andado”.
• Estas ações não pretendem simular coisa nenhuma: são FICÇÕES na verdadeira (científica) acepção do termo, uma vez que, para serem aceites e julgados, os seus produtos apenas têm de ser justificados, nunca comprovados (este o verdadeiro “y” do problema da aprendizagem da nossa profissão por via académica);
• Fazem apelo à invenção, ao despacho, à ingenuidade, fantasia, imaginação, e senso prático do aluno: à sua experiência de vida;
• Giram em torno de problemas intencionalmente fechados e muito cingidos ao saber (presumível) do aluno, mas de cuja resolução pode resultar a abertura a novas interrogações, e por aí a novos saberes:
• Fortalecer o pensamento discursivo do aluno em termos lógicos e conceptuais: a arte de discorrer com o desenho, ou de ritualizar o acto de pensar, fazendo; onde antes a analise era a regra;
• Proporcionar situações que induzam o aluno a problematizar o espaço arquitectónico e a construir ideias e novas experiências sobre a sua própria consciência desse espaço.
Com estas accões/ensaios não se pretende macaquear o mundo real da profissão. Trata-se, em vez disso, de criar situações de aprendizagem em torno de “minimal problems”, ou fragmentos de problemas, descarregados da ênfase programática, logística e interdisciplinar da prática profissional, que pela sua própria natureza não se pode reproduzir na prática académica.
Uma outra situação de aprendizagem, consuetudinária porque insubstituível, consiste na prática de actos simulados de Projecto: o FAZ-DE-CONTA. Porém o acto projectual simulado só terá valor didáctico desde que à partida fique bem clara a distinção entre aquilo que por escolha se retém do “acto real” que se simula e aquilo que por imperativo se rejeita.
E se esta escolha é arbitrária, variável e convencional, como não pode deixar de o ser, então pode afirmar-se que cada caso gera a sua própria teoria.
Esta, a fina e delgada margem de realismo onde é lícito praticar o jogo do “faz-de-conta” na aprendizagem académica.
De igual modo o seu produto só pode ser observado e avaliado caso a caso, de acordo com as regras do “jogo” previamente negociadas, e nunca por analogia ou semelhança com o produto da prática profissional… mas nem por isso o seu produto será menos autêntico, menos sério do que este.
Caso contrário, da prática continuada do “faz-de-conta”, do “como se… falacioso é o próprio sentido do real que sai distorcido, atrofiado; ao ponto de se apresentar ao espírito do aluno como o modelo acabado do exercício da profissão: o ofício de arquitecto reduzido às proporções de um fazedor de desenhos e que nisso se esgota. Ao mesmo tempo que se ilude e omite o sentido de responsabilidade inerente ao próprio projecto, e que em todas as instâncias do ensino deve ser exercitado. O acto simulado, o “faz de conta”, quando não racionalizado infunde um estado nocivo de irresponsabilidade que se não é contrariado, pode vir a reproduzir-se na vida profissional visto que o seu resultado nunca será submetido à prova de fogo que é a construção…
Imagine-se o que será um aluno de Belas Artes passar o seu tempo escolar a fazer esbocetos de pintura ou maquetas de escultura; ou um jovem cientista a formular teorias sem nunca delas deduzir uma hipótese ou conceber experiências sem jamais as levar à prática. Também ao estudante de arquitectura apenas assistirá o “meio-caminho-andado” da actividade criativa.
Não fosse o contacto ocasional e fortuito do aluno com a vida real da profissão, e à saída do curso ele vê-la-ia em imagem invertida. Tarde ou nunca a imagem de si próprio, como arquitecto, se refará deste choque. A lendária insatisfação do jovem arquitecto saído das escolas deve-se menos à sua insatisfação pelo presente (como se julga ser próprio da juventude do que ao eterno desajustamento entre a ideia de profissão construída por via académica e o real. Deve dizer-se também que a habilidade, a destreza demonstrada pelo aluno nos actos simulados de projecto sendo um indicativo de progresso, não é por si só suficiente para o aluno ganhar consciência do sentido da responsabilidade cívica do acto profissional.
Por fim, mas não menos importante, proponho ainda uma quarta situação de aprendizagem: a INVESTIGAÇÃO. Esta formula hipóteses e tem recurso à verificação. A diferença do faz-de-conta que supõe, as mais das vezes, uma intervenção imaginária mesmo quando sobre um problema real, a investigação deva situar-se sempre no plano do real.
Sem prejuízo da abertura aos problemas reais e concretos da comunidade, o campo maior da investigação deverá situar-se nas áreas de charneira da Arquitetura com as ciências e técnicas, tendo em vista que é nessa franja ou teia de cruzamentos que ocorreu as grandes inovações que fazem andar a Arquitectura.