Miguel Judas
m@migueljudas.com
Arquiteto, Doutorando no Departamento de Arquitetura da Universidade Autónoma de Lisboa (DA/UAL), Portugal
Para citação: JUDAS, Miguel – Arquitectura Popular em Portugal. Estudo Prévio 20. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2021, p. 134-138. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/20.02
Recensão recebida a 29 de junho de 2022 e aceite para publicação a 1 de julho de 2022.
Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
Arquitectura Popular em Portugal [1]
“Condicionamentos e soluções são aspectos inseparáveis na arquitectura regional (…). O fenómeno é comum, de resto, a todas as regiões diferenciadas do País e do Mundo. Nem doutro modo teria sentido a restrição imposta ao substantivo “Arquitectura” com o adjectivo “Regional”, restrição que envolve limites territoriais, mas ao mesmo tempo uma relação intima com os factores naturais e os de intervenção humana que concretizaram uma região e a distinguem de outras.” [2]
Se nos cingirmos a olhar com ligeireza os seis capítulos de “Arquitectura Popular em Portugal”, hoje, 61 anos após a sua edição original, tenderemos a não encontrar neles mais do que imagens de um pais desaparecido, o que eventualmente não nos despertará mais do que nostalgia. Um outro olhar, um pouco mais atento, levar-nos-á a, ao menos, reter as formas do construído registadas nas suas fotografias a preto e branco. Mas é possível ainda um outro, necessariamente mais demorado porque imerso na leitura, que nos permite redescobrir a arquitetura enquanto síntese de uma realidade concreta, fruto do acomodar do território pelo homem. Ou mesmo, (re)encontrar na arquitetura, enquanto disciplina, a capacidade de lançar um olhar singular sobre a realidade, de a dar a ver e de a transformar.
As cerca de 700 páginas em que se sintetizou o “Inquérito à Arquitectura Regional em Portugal”, realizado entre 1955 e 1960, são um inventário, ou um dos inventários possíveis, que resultou de um trabalho de campo que envolveu “…três meses de deambulações (…) cerca de 50.000 quilómetros, de automóvel, de «scooter», a cavalo e a pé (…) em centenas e centenas de povoados, (…) cerca de 10.000 fotografias, centenas de desenhos e de levantamentos, e (…) milhares de notas escritas.” (Arquitectura Popular em Portugal. 2004, p.XX). O registo é dividido em seis capítulos que correspondem à subdivisão de Portugal continental em Zonas: Minho, Trás-os-Montes, Beiras, Estremadura, Alentejo e Algarve. As designações, ainda que fazendo eco da nomenclatura das províncias de Portugal continental estabelecidas pelo Estado Novo, decorreram da demarcação da esfera de trabalho de campo de cada uma das equipas envolvidas no inquérito. A opção, explicada na Introdução, terá decorrido de uma busca de equidade no esforço exigido a cada das equipas “…adentro de uma certa unidade regional” (p.XXIV), em detrimento de uma delimitação geográfica rigorosa. A aparente cedência ao pragmatismo que impôs o “…número um tanto arbitrário…” de Zonas, sem limites precisos, procurou todavia ser compensada em favor da unidade do conjunto por “…um trabalho prévio de suma importância: a definição de diretrizes para assegurar a unidade de elementos de estudo”. E será ainda o mesmo pragmatismo que perante o manancial de informação recolhido terá levado a que “…cada grupo tratasse a sua Zona sem uma absoluta rigidez de ordenação comum”. O que explica a simultânea transversalidade dos temas com que se informa a pertinência das arquiteturas, do povoamento e do edificado — como a geologia, o clima, a economia… — e a heterogeneidade na forma de os valorizar e apresentar. Uma heterogeneidade que terá resultado do cruzamento da idiossincrasia de cada uma das equipas e da paisagem com que se confrontaram. Mas se a construção das narrativas é diversa entre si, o conjunto é unido pelos textos “…sem excessos de erudição, nem exageros de pormenor.” (p.XXIV-XXV), Assim como pela normalização dos elementos gráficos que os acompanham, tematicamente similares, de entre os quais se destaca pela sua estrita homogeneidade a apresentação em duas páginas, a par, das tipologias do edificado identificadas em cada zona e o respetivo mapeamento. O cuidado em mais do que registar, informar e dar a ver, é constante. O que resulta não num livro de arquitetos para arquitetos, mas de arquitetos para quem se interesse por arquitetura.
Se os seis capítulos do miolo são, em si e no seu conjunto, um registo notável pela capacidade de dar a ver a arquitetura como resultado do ancestral processo de antropização do território, aquilo que o antecede não deixa de ser relevante por aquilo que, sucessivamente, nos vai revelando, particularmente se lido em sequência inversa.
Desde logo, a notável Introdução, que citámos acima de forma livre e difusa, e que extravasa uma mera exposição de objetivos, conteúdos, métodos e contingências da investigação, para afirmar o olhar crítico de quem a empreendeu sobre o seu tempo. Se o objeto da investigação é a arquitetura, não é tão só sobre ela que o seu olhar se lança. Os autores cuidaram mesmo de o assinalar ao apontar o facto de da obra resultar “…um falseamento do aspecto real e das condições de vida dos povoados, em que nem tudo é exemplar. Da pobreza, do abandono e da insalubridade, tão característicos de muitas das nossas aldeias e lugares, não há indícios neste livro; e podiam assacar-nos culpas por termos falsificado uma realidade inegável.” (p.XXV)
Depois, a curiosa transcrição do Decreto-Lei n.º 40 349, que viabiliza a realização do Inquérito ao assegurar o seu financiamento pelo governo, por aquilo que nos possibilita saber sobre as circunstâncias em que se realiza e a relação entre o Estado Novo e aqueles que o propõem e realizam. Atente-se, por exemplo e por um lado, ao financiamento com recurso a verbas do Fundo de Desemprego e a disciplina de validação das despesas que é imposta; por outro, à curiosa transcrição do diploma em página par.
Ou, ainda, os sucessivos Prefácios, onde se revela a transformação às mãos do tempo do olhar sobre a obra daqueles que tomam a iniciativa de a reeditar. Assim como sobre o papel de alguns dos que a empreenderam, com destaque para Keil do Amaral.
A realização do “Inquérito à Arquitectura Regional em Portugal”, e sua posterior publicação, é à sua data um sinal do já então longo debate em torno da arquitetura enquanto manifestação identitária, enquanto expressão na nação. As interrogações e discussões tinham ganho particular expressão durante o século XIX, impelidas pelas tensões geradas por um mundo em mudança e as suas repercussões no país – entre o entusiasmo e ceticismo pelo surgimento desse mundo novo, movido a carvão, que se ilumina primeiro a gás e mais tarde eletricidade. Emergindo seja do ímpeto de criar um novo Portugal, seja da contraposta renitência em abrir mão do velho, ou ainda da tomada de consciência das elites, eminentemente urbanas, de que o país rural permanecia por descobrir. O questionamento era amplo em espectro: politico, cultural e artístico. Um contexto em que o interesse pela arte popular cresce, porque vista como intimamente ligada à “terra-mãe” e, assim, como o repositório mais genuíno da nacionalidade ou “portugalidade”. Alimentando as explorações etnológicas com o fim de conhecer e registar o “viver português”. O fenómeno alinha-se de resto com a generalidade do panorama europeu.
A arquitetura faria eco destas interrogações, enquanto se debatia com o repto dos novos programas (como os novos equipamentos públicos ou o prédio de rendimento), expressando-se primeiro na recuperação de formulações revivalistas de raiz erudita, como o neomanuelino ou o neorromânico, de que é exemplo a fachada da Estação do Rossio, de José Luís Monteiro, para depois se aproximar progressivamente de modelos da ruralidade local, como a Casa de Ricardo Severo, no Porto. O percurso faz-se como que num movimento centrípeto, da celebração do pais imperial do Manuelino em direção à mitificada raiz rural da nacionalidade. Afinal, sendo o manuelino um gótico tardio era, como o românico, uma reprodução de modelos europeus, exteriores à especificidade da nação e ao ideário da identidade nacional.
À chegada ao século XX clarificam-se duas visões, ou caminhos, de que são principais protagonistas o então já estabelecido Miguel Ventura Terra (1866-1919) e o jovem Raúl Lino (1879-1974). O primeiro, de formação parisiense, Beaux-Arts, propondo uma atitude progressista, uma arquitetura alinhada com a possibilidades das novidades técnicas e explorações formais e tipológicas daquele tempo, cosmopolita e urbana; o segundo, de educação britânica e germânica, adotando uma posição culturalista, explorando a reinvenção da arquitetura a partir do retomar das suas especificidades locais, da tradição, preferencialmente de caracter rural. A diversidade das propostas confrontar-se-á diretamente, em 1900, no concurso para o pavilhão de Portugal na Exposição Internacional de Paris. E se Ventura Terra vence o concurso, a proposta de Raul Lino merece o apreço de muitos e assegura-lhe o reconhecimento público que lhe permitirá aumentar a sua influência. Assegurando a persistência do debate e a divergência.
Se a expressão “Casa Portuguesa”, começa por localizar e sintetizar este questionamento identitário, acabará desvirtuada pela apropriação indevida da reflexão que Raul Lino empreenderá e publicará em torno do tema durante primeiro terço do século, explorando a mesma designação: “A casa portuguesa” (1929), “Casas Portuguesas: Alguns apontamentos sobre o arquitectar das casas simples” (1933). A leitura simplista das obras pelo público, qual catalogo formal, e a coincidência no tempo com o agudizar do pendor nacionalista do regime durante a década de trinta, desempenhariam importante papel no cessar da sua abertura às experiencias modernistas, alinhadas com o funcionalismo e racionalismo que chegava da Europa. Uma mudança de rumo em que Raul Lino não se furtaria de resto a desempenhar papel ativo.
O ensimesmar do regime colidirá na década seguinte com o final da Segunda Guerra Mundial e as suas consequências no campo político, económico, social e cultural. Se politicamente o regime sobrevive, altera-se porém a sua relação com o tecido social. Neste, emerge um clima de agitação cultural que se traduzirá na afirmação do neorrealismo e no surgimento de movimentos organizados. No campo da arquitetura, em 1946 surge o ICAT (Iniciativas Culturais Arte e Técnica), em Lisboa, que se empenhará na renovação da revista “Arquitectura”, fazendo dela uma plataforma para a divulgação da obra de jovens arquitetos e da obra de autores fundamentais do Movimento Moderno. A que se seguirá em 1947 a ODAM (Organização dos Arquitetos Modernos), no Porto, e que assumirá de forma clara o seu alinhamento com o Movimento Moderno e se empenhará a reflexão em torno da sua doutrina. A convergência entre ambos expressar-se-á no congresso dos arquitetos de 1948, e virá a sustentar a renovação do Sindicato dos Arquitetos pela eleição de Francisco Keil do Amaral (1910-1975) como seu presidente.
É neste contexto que o jovem Fernando Távora (1923-2005) publicará em 1947 a versão final de “O problema da casa portuguesa”, um texto em que se debruça de forma incisiva sobre o status quo e em que retoma a questão identitária, clamando por um “…estudo da Arquitetura portuguesa, ou da construção em Portugal…”[3], insurgindo-se contra a mera exploração do pitoresco e o isolacionismo: “Não é justo nem razoável que nos fechemos, numa ignorância procurada, às obras dos grandes mestres de hoje, aos novos processos de construção, a toda uma Arquitetura que surge plena de vitalidade e de força”.[4]
No mesmo ano, Keil do Amaral, lançará um repto semelhante, apelando à realização de “Uma iniciativa necessária” nas páginas da revista “Arquitectura”:
“…recolha e classificação de elementos peculiares à arquitetura portuguesa nas diferentes regiões do País, com vista à publicação de um livro, larga e criteriosamente documentado, onde os estudantes e técnicos da construção pudessem vir a encontrar as bases para o regionalismo honesto, vivo e saudável. Exactamente assim: — honesto, vivo e saudável.” [5]
Acentuando, no seu estilo vivo e singular, o tom da crítica:
“…será que nós não possuímos, realmente, fontes mais puras e coerentes para a formação de uma arquitetura moderna portuguesa, do que pretendem fazer crer os nossos regionalistas… de fachada?” [6]
Será o mesmo Keil do Amaral que, à frente do Sindicato, se baterá quase uma década até conseguir viabilizar, nos finais em 1955, o que se viria designar como inquérito e a publicação do livro sobre que nos debruçamos. Nesse intervalo, operar-se-á contudo uma alteração do contexto, onde passam a coexistir o conservadorismo que impõe uma “arquitectura nacional” [7] e a derivação simplista do Movimento Moderno vulgarizada enquanto “Estilo Internacional”. O que fará somar ao propósito de superar o embaraço criado pela mitologia da “Casa portuguesa”, a possibilidade de reequacionar os caminhos do Movimento Moderno a partir de uma abordagem culturalista de raiz local.
Como Nuno Teotónio Pereira haveria de sintetizar décadas mais tarde no Jornal Arquitectos[8], a realização do inquérito, e a sua publicação, serviria quatro propósitos: “Um registo do Portugal Desaparecido”; “A Prova Real contra a Arquitetura dita Portuguesa”; “A Revisão Crítica do Dogmática do Movimento Moderno”; e “O alargamento do Conceito de Património” — para lá do “…monumento erudito, singular…”.
“Arquitectura Popular em Portugal”, tenderá hoje a ser olhada enquanto monumento, seja pelo tempo que nos afasta do país perdido que registou, seja pela sua associação aos caminhos que a arquitetura portuguesa havia de trilhar após a sua publicação. Todavia, no momento presente, em que somos impelidos a reaprender a trabalhar com a natureza, oferece-nos materiais para entender como o fazer e é testemunho “…da necessidade do combate a ideias feitas e conceitos acanhados” — como escreveu Nuno Teotónio Pereira.[9]
[1] A edição da obra utilizada nesta recensão é a seguinte: Arquitectura Popular em Portugal. 4.ª edição. Lisboa: Ordem dos Arquitectos, 2004.
[2] op. cit. p.261
[3] TÁVORA, Fernando – O problema da casa portuguesa. Teória e critica de arquitectura – Século XX, Lisboa: Ordem dos Arquitectos, 2010, p. 327.
[4] Idem, p. 328.
[5] KEIL DO AMARAL, Francisco – Uma iniciativa necessária. Teória e critica de arquitectura – Século XX, Lisboa: Ordem dos Arquitectos, 2010, p. 329.
[6] Idem, p. 328.
[7] Como lhe chama Nuno Teotónio Pereira, em A Arquitectura do Regime, 1938-1948. Portugal: Arquitectura do Século XX, Munique, New York: Prestel, 1997, p. 34.
[8] PEREIRA, Nuno Teotónio – Reflexos Culturais do Inquérito à Arquitectura Regional. Jornal dos Arquitectos, n.º 195, 2000, p. 69-71.
[9] Idem, p. 71.