Cristina Pratas Cruzeiro
O livro The situationist city, de Simon Sadler, publicado pela MIT Press em 1999, reflete sobre a Internacional Situacionista (IS) a partir do seu posicionamento sobre as experiências na cidade. Centrado nas suas teorias urbanísticas e arquitetónicas, o livro procura fazer uma integração da IS na história (p.3), nomeadamente no contexto artístico dos anos 50 do século XX. A proposta passa por fazer uma “autópsia” (p.3) da ação em contexto da Internacional Situacionista, que contribua para a libertar de um certo misticismo (p.3), identificado pelo autor em anteriores estudos. Para tal, propõe “extrair a teoria da arquitetura situacionista de um programa revolucionário que tentou confrontar a totalidade ideológica do mundo ocidental.” (p.3). Não obstante, este não é um estudo isento de uma visão dirigida sobre a IS. Embora Sadler declare pretender apresentar uma visão objetiva do coletivo, o recurso a uma adjetivação pejorativa ou a utilização constante do termo ‘situacionismo’ – pese embora os membros do coletivo o tivessem rejeitado – denuncia existir aqui uma visão que se diria tão apaixonada como a que o autor critica, embora neste caso utilizada no sentido inverso ao do encantamento pela Internacional Situacionista.
Em boa medida, a relevância da obra em análise reside na abordagem contextualizada que faz à IS e na profundidade com que trata o facto dos membros da Internacional Situacionista terem criado um pensamento sobre a construção, a organização e a vivência na cidade – que incluiu propostas concretas como percursos, mapas ou estruturas urbanísticas e arquitetónicas – mesmo sem recorrerem a arquitetos e urbanistas. É que, como Simon Sadler reitera, embora em tom de crítica, é precisamente nesta questão que o coletivo se destaca e distingue de outras propostas artísticas e estéticas suas contemporâneas.
As criações realizadas no contexto da Internacional Situacionista têm uma particularidade que o autor de The situationist cityexplora de forma conveniente. Os mapas, os textos e publicações, os filmes, as maquetas de estruturas urbanísticas, etc., comportam uma aceção poética e estética e, em simultâneo, uma aceção documental e prática. Embora estas dimensões coexistam e caracterizem a identidade dessas criações, Sadler recorre a elas essencialmente pela sua utilidade documental e, em certos casos, até ilustrativa. Assim, embora seja de interesse inquestionável o recurso a uma grande multiplicidade e quantidade de obras saídas do coletivo, falta a este volume a clarificação e exploração mais aprofundada dessa característica identitária.
O livro encontra-se organizado em três capítulos. O primeiro, “The Naked City: Realities of design and space laid bare”, centra-se na análise crítica que a IS produziu ao ambiente urbano. O segundo, “Formulary for a New Urbanism: Rethinking the city”, identifica e aborda os princípios situacionistas relativos à vida na cidade e o terceiro capítulo, “A New Babylon: the city redesign”, analisa as propostas, conceptuais e práticas, para uma cidade de fundamento situacionista.
No final dos anos 50 do século XX surgiram várias tendências e coletivos interessados na reflexão sobre as noções de espaço, de quotidiano e de experiência vivida. Estas noções foram sendo trabalhadas a partir de diferentes abordagens e posicionamentos, sendo o esbatimento das fronteiras entre a arte e a vida um aspeto agregador em muitas destas propostas. Existem por isso paralelismos entre alguns aspetos da atuação da Internacional Situacionista e os de outros grupos ou movimentos seus contemporâneos, como os associados à arte de ação, nomeadamente no que respeita aos discursos sobre arte e vida. Por seu turno, é também possível traçar similitudes entre a IS e o Independent Group e o Nouveau Réalisme, no que se refere à atenção dada ao contexto económico e social do momento. Os três abordaram os efeitos do capitalismo na sociedade, o crescimento da influência dos média e do consumismo. Ainda assim, como refere Sadler neste livro, a influência do pensamento sociológico na prática da Internacional Situacionista – em particular de Henry Lefebvre, Michel de Certeau ou Paul-Henri Chombart de Lauwe – “conduziu a uma maior consciencialização da real estruturação social da cidade” (p.20). Para além disso, destaca Sadler, os situacionistas nunca abandonaram a leitura marxista da sociedade a partir da luta de classes – ao contrário, por exemplo, do Independent Group – fazendo com que desenvolvessem uma mentalidade de guerrilha (p.43) que se refletiu nos seus comportamentos e escolhas.
Estes aspetos, abordados no primeiro capítulo, são refletidos a partir do entendimento que a Internacional Situacionista tinha da arquitetura e do urbanismo exercido no momento, em particular em Paris. Para os seus membros, era clara a relação com o capitalismo, no sentido do desenvolvimento e manutenção de uma sociedade do espetáculo que, estrategicamente, exercia controlo sobre os cidadãos a partir da organização da vida de cada um, isolando-o socialmente. A reorganização do espaço, proposta por arquitetos como Le Corbusier ou, de forma mais abrangente, pelos CIAM (Congrès Internationaux d’Architecture Moderne) prolongavam, no entender da IS, uma estética modernista (p.49) baseada numa reorganização burguesa do espaço (p.50). Para Simon Sadler, os situacionistas, conscientes de que “havia pouca hipótese de alterar os interesses arraigados naqueles arquitetos e urbanistas racionalistas (…) centraram-se em identificar as fracas fundações teóricas dessa reestruturação (…)” (p.22).
A convicção situacionista em possibilitar a criação de uma esfera cultural fora do espetáculo do capital (p.43) conduziu então a uma proposta de reorganização da circulação na cidade e das suas infraestruturas, questões refletidas nos dois últimos capítulos. É também nestes capítulos que, de forma mais desenvolvida, Sadler analisa os conceitos de dérive, situation, detournement, psychogéographie e urbanisme unitaire. Mais do que conceitos, os três primeiros são mecanismos de reconhecimento espacial da cidade e de descoberta do lugar de cada um nela. Por seu turno, a psicogeografia e o urbanismo unitário introduziram uma dimensão psicológica ao nível da reflexão sobre o espaço urbano, que tinha sido pouco explorada até então no território artístico. Os mapas que Debord produziu em 1957 – Guide Pschychogéographique de Paris e The Naked city, que o autor do livro menciona – materializam precisamente essa dimensão.
A noção de psicogeografia – que Sadler considera oferecer um sentido de violenta possessão emotiva sobre as ruas (p.81) – estava intimamente associada à teoria do urbanismo unitário, que emergiu como atividade situacionista centrada na prática integral do ambiente urbano. Centrava-se na utilização de técnicas distintas e várias artes, no sentido de assumir o controlo sobre todos os aspetos do ambiente da cidade. A razão desse controlo alargado estava na convicção situacionista de que existiria uma equivalência entre os elementos físicos – relacionados com as estruturas arquiteturais e o planeamento urbanístico – e os elementos comportamentais e afetivos, como as relações entre indivíduos, a valorização do quotidiano, o comportamento político, afetivo e emocional, etc.. Era por isso que a Internacional Situacionista considerava que a arquitetura e o urbanismo, mais do que se centrarem em formas poéticas e livres, deveriam equacionar a atmosfera existente, ou seja, o ambiente de cada zona da cidade.
Se Guy Debord foi o responsável, em primeira instância, pela teorização do urbanismo unitário, foi Constant, artista multidisciplinar, quem projetou um modelo urbanístico que tivesse em conta a relação que se estabelecia entre o ambiente e a vida. O projeto da New Babylon, desenvolvido sensivelmente entre 1956 e 1974, aplicava as noções de urbanismo unitário e de psicogeografia à arquitetura e é a ele que este livro dedica boa parte do último capítulo.
Constant projetou um vasto sistema habitável constituído por estruturas urbanas móveis que tinham a intenção de fomentar o lazer, o convívio e a construção espacial individualizada, assim como um modo de vida nómada. No fundo, o contrário da prática onde se reconheciam os paradigmas urbanos que ganhavam terreno na altura, como o incentivo à habitação própria, a frequência aos lugares e percursos habituais, etc.. Era assim um projeto pensado para uma outra sociedade, para um ambiente idealizado de acordo com o pensamento político e ideológico dos membros da IS. E este é um dos aspetos mais veementemente criticados por Simon Sadler, que afirma que a arquitetura situacionista acabou contida apenas no plano das ideias, à espera da ativação de modos revolucionários de produção para que pudesse ser posta em prática (p.69).
A conclusão de The situationist city reforça de forma inequívoca o tom de crítica utilizada ao longo do livro. Simon Sadler afirma que no centro do projeto situacionista estava um vazio metodológico que, independentemente das ferramentas e mecanismos criados, não permitiu o desenvolvimento de um programa coerente (p.157). Para além de questionar a aplicação do urbanisme unitaire ou os propósitos da situation (p.157), Sadler considera que a Internacional Situacionista não soube priorizar os vários elementos do seu programa, particularmente no que dizia respeito “à arte versus política, tecnologia versus expressionismo versus conceptual, colaboração versus especialização” (p.158). Pese embora a leitura de Sadler – tanto a este respeito como na postura crítica que adota ao longo do livro – tenha sido e continue a ser criticada por vários autores, há aqui a identificação de uma questão essencial, resumida na frase com que Sadler conclui, a de que a “(…) arquitetura mapeou o desejo revolucionário” da Internacional Situacionista. Para os estudos das artes visuais, The situationist city, completando quase vinte anos desde a sua publicação, continua a ser um estudo relevante pela clarividência com que situa a IS no contexto artístico do momento, em particular pelo confronto com outras propostas que procuravam ter consequências efetivas no plano social.