Manuel Graça Dias (1953-2019)
Para citação: DIAS, Manuel Graça – Escolher. Estudo Prévio 20. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2022, p. 110-111. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/20.15 (ed. original O Independente, n. º35, 13 de janeiro de 1989). Publicado a partir de DIAS, Manuel Graça – Vida Moderna. Mirandela: João Azevedo Editor, 1991, p. 114-117.
Escolher
PROJECTAR é escolher; a arte é uma escolha.
Entre o que há, o que existe, o que foi feito, dito, experimentado, entre o que se exibe, se mostra, se vê, entre as formas, as famílias de formas, os derivados das formas, o arquitecto escolhe, seleciona, elege.
Escolho a porta certa para esta minha casa; a que me dá esta luz, mas também a que me vem ao espírito e já vi (guardei) em qualquer parte; como essa porta (que elaborei na lembrança), mas ligeiramente diferente, talvez mais adaptada; eu exerço a escolha, eu estabeleço o uso.
Vi em arquitecturas populares todo o vão interior de uma janela pintado de vermelho e também a madeira dos seus caixilhos; à volta, o branco da parede segurava aqueles quadros que se repetiam. Usá-los-ei, um dia.
Imaginar existe; mas imaginar é recombinar o real, reintroduzi-lo, seleccioná-lo, interceptá-lo da surpresa de novos arranjos. É isso que se faz com os materiais: escolho o mármore, não o invento; ao inventar-lhes os desenhos estou a escolher o desenho que lhe vou dar.
Escolho a betonilha, a cor dela, o esquadriado que irá fazer. Escolho os mosaicos, os azulejos, os quadradinhos cerâmicos; escolho as combinações entre eles, o padrão da sua colagem, da sua alternância, da sua ausência.
Escolho o rimo das cores, as cores a usar, os contrastes que fazem (não se inventam cores).
Escolho onde se esconde a macieza do estuque, onde o troco por madeira, o desenho dessa madeira, o recorte, as alhetas que a frisa lhes abrirá.
Escolher é julgar melhor: o desenho da casa, do monumento, do largo, da pérgula.
Quando escrevo, escolho a cadência, o vocábulo, o adjectivo; recorro a estruturas já usadas, pensadas, ditas e que me repousam dentro da memória; reescrevo-as, um pouco baralhadas. Lentamente se descola o lugar comum para tentar deixar só o lugar, o espaço da palavra ou da frase à espera de ter tocado essa significação impossível, de a ter raspado.
O fotógrafo é bem o exemplo do escolhedor-artista: da realidade selecciona (enquadra) corta e recorta, sobrepõe e desfoca, aproxima e queima ou endurece o dia, o palácio, a voz, o fumo de um cigarro contra a toalha de linho.
À procura da palavra para o Universo estava Borges, a escolher entre todos os códigos da Biblioteca aquele que lha trouxesse.
A mulher escolhe as madeixas para o seu cabelo; o operário, entre duas camisas iguais, escolhe pela cor, pelo significado das riscas, pelo que a cultura acumulada lhe faz pensar mais própria a sua camisa.
Escolher é inventar a cada momento o tipo de momento, o jogo das escolhas. “(…) um artista (…) manipula os signos como se tratasse de um logro consciente que saboreia e que quer dar a saborear e a compreender a fascinação” [1]
Ninguém o terá dito tão bem como Barthes.
[1]. BARTHES, Roland – Lição. Lisboa: Edições70, 1979.