Francisco Barrocas Lourido
francisco.barrocas.lourido@gmail.com
Arquiteto urbanista, doutorando em Arquitectura – Dinâmicas e Formas Urbanas na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP) e membro integrado do Centro de Estudos de Arquitectura e Urbanismo da mesma instituição (CEAU-FAUP)
Para citação: LOURIDO, Francisco Barrocas – Da atualidade e validade do conceito de subúrbio. Estudo Prévio 1. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2012, p. 17-34. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net].
Resumo
Que paisagem desenharíamos se acaso fossemos convidados a desenhar o subúrbio? Que pessoas, que casas, que ruas habitariam tal desenho? Como estariam dispostas no espaço? A que distância estariam… de que ponto de referência? É certo que, de alguma forma, “cada um sabe a que se refere quando fala, por exemplo do largo da praça, do mercado, do centro comercial, de um lugar público, etc.” (LEFÉBVRE, H., in GUERRA, 1987: 113). Mas, o que sabemos quando falamos de subúrbio?
A questão é extremamente relevante. Planear é conhecer, classificar, nomear e decidir em função de categorias – categorias operacionais. Pensar a história do subúrbio e da reflexão a ele associada convoca o problema das categorias encerrarem tanto a descrição do espaço como a sua classificação. Infelizmente, nem sempre as categorias correspondem às realidades que pretendem encerrar/representar. Será o caso do subúrbio? E de que forma isso pode afetar a investigação nesse domínio?
Palavras-chave: conceito operativo de subúrbio, suburbano, arquitetura de subúrbio
Da atualidade e validade do conceito de subúrbio
1. Introdução
O subúrbio não é um tema novo nem um neologismo. Ackroyd (in VAUGHAN et al, 2009: 2) afirma que os subúrbios de Londres são tão antigos como a própria cidade. Com efeito, os subúrbios não são um fenómeno exclusivo da era moderna pois as cidades antigas e medievais também possuíam subúrbios (assim conhecidos), situados logo após as muralhas das cidades (FISHER, 1976: 206).
Na sua origem, latina, a palavra suburbium é o resultado da conjugação entre o prefixo sub (que significa, por baixo, perto) e urbs (alusivo ao espaço edificado, a componente material da cidade por oposição a civitas, a parte imaterial). Considerava-se, em termos legais, que tudo o que estava no interior do pomerium (após o muro), para quem chegava à cidade, era urbs. Foi o facto de a urbs se encontrar, geralmente, a cotas mais elevadas que a sua área envolvente que fez surgir a palavra suburbium.Essa área, embora constituindo pertença legal de Roma, não era Roma (WITCHER, 2005: 121). Abrangendo um raio de 5 a 10 quilómetros, o subúrbio de Roma revestia-se, de uma natureza ambígua: era, simultaneamente, “cidade e não-cidade” (MARAZZI in WITCHER, 2005: 120).
De acordo com o dicionário Godefroy (GODEFROY, 1880 – 1895, vol.7: 585), o termo suburbe é adoptado pela língua francesa no final do séc. XIII e, através desta, no final do séc. XIV, pela língua inglesa – suburb (Oxford University Press, 2011). Ao analisar a Figura 1 (Google Books Ngram Viewr, 2012), verificamos que desde cerca de 1780 que o termo suburb – e posteriormente também suburban – é utilizado cada vez com maior frequência nas publicações literárias ao longo do tempo. Sendo interessante notar que, à medida que isso acontece, palavras como hamlet e outskirts vão aparentemente perdendo relevância em função inversa das anteriores.
Como vimos, quando ouvimos falar de subúrbio surge-nos uma imagem daquilo que, para cada um de nós, essa palavra significa. Podemos dizer que, com frequência, existem grandes semelhanças entre as imagens que individualmente produzimos e que é através dessas semelhanças que se produz a imagem coletiva que temos do fenómeno. É uma imagem, aparentemente, definida e com características próprias identificadas: uma categoria.
Geralmente, de imediato associamos a palavra a algo que está, para além da cidade; à distância, porém próximo. Dessa forma, a imagem que, regra geral, se tem do subúrbio, remete para algo que se distingue claramente da cidade-centro em termos espaciais, mas que mantém com ela uma relação de dependência unidireccional.
Nessa conceção colectiva da periferia da cidade – a categoria do subúrbio – o campo permeia cidade e respectivo subúrbio. Contudo, mais recentemente, também associamos a ideia de subúrbio à ideia de “não-cidade”, no sentido em que este se constitui como um espaço ambíguo que não é cidade nem campo, iniciando-se imediatamente após o limite da cidade.
2. Subúrbio – velho (des)conhecido
No entanto, analisando mais detalhadamente, essa imagem colectiva do subúrbio talvez não seja tão definida como pensamos. Ao observar territórios suburbanos concretos, emergem, com frequência, indefinições e desadequações relativamente ao senso-comum de subúrbio, que colocam em causa os pressupostos com que se parte para a análise. Assim, o termo subúrbio convoca um conjunto de memórias que, na história do pensamento sobre a organização do espaço (TÁVORA, 1999), estão frequentemente associadas a conotações negativas, de incompletude, imperfeição, etc.
Inicialmente, o subúrbio (particularmente no caso de Londres) era conotado com hábitos de vida inferiores, promíscuos e imorais como, por exemplo, se vê pela expressão inglesa “suburban sinner” (i. e. prostituta, mulher adúltera). No início do séc. XIX, e ainda na língua inglesa, a palavra subúrbio estava geralmente ligada a pessoas com maneiras inferiores e vistas curtas.[1]
O facto de alguns arquitectos privilegiarem a cidade-centro e, por essa via, considerarem o subúrbio como algo descaraterizado, desinteressante e contra-natura (no sentido de que não é favorável à cidade canónica), constitui uma barreira à compreensão e ao pensamento crítico e inovador acerca daquele. Nesta linha, Sieverts afirma: “Indeed, the one-sided love for the historical city is the main reason for our repression of the challenge presented by unloved suburbia.” (in VAUGHAN et al, 2009: 7)
Hoje, em termos gerais, o termo subúrbio tem ainda outra conotação. Subentende-se que se refere a algo cujas características não são suficientes para que se constitua como urbano. A sub-urbe, no sentido de inferioridade qualitativa, por oposição à urbe.
À semelhança de outros casos, no caso português, este ‘desamor’ pelo subúrbio nasce da sua desarticulação, da sua aparente irracionalidade e da ideia generalizada que esses territórios não passam de “meros amontoados de construções inestéticas, desprovidos de personalidade e de vida própria, verdadeiros dormitórios de massas populacionais muito importantes que diariamente afluem à Capital para exercer nela a sua actividade” (Proposta de Lei n.º 14/59 in NUNES, 2011: 147).
Para além disto, sabia-se que neles existe uma “intensa actividade de construção que, tão depressa destrói a expressão tradicional e a beleza particular das povoações arrebaldinas, como faz nascer múltiplos povoados amorfos e incaracterísticos que tendem a rodear a cidade por uma cintura asfixiante – cada vez mais profunda, à medida que aumentam as facilidades de transporte que eles próprios reclamam” (idem, ibidem).
Porém, não era sempre assim. Não é bom que se pense no subúrbio como sendo sempre descaraterizado, até porque muito dele foi desenhado de raiz e com grande qualidade arquitetónica e urbanística (NUNES, 2011: 48). As razões que, por vezes, levam o cidadão comum a pensar que o subúrbio é descaracterizado poderão ser outras. Nomeadamente, razões relacionadas com questões de manutenção dos espaços públicos ou de ordem estética. Ao contrário da cidade-centro – orgânica, única, emergente – o subúrbio foi construído, no caso português, num período relativamente curto, conferindo-lhe grande homogeneidade estética no que ao edificado diz respeito, tornando-o, porventura, enfadonho e amorfo como já vimos. Esta não é uma caraterística exclusiva do subúrbio português.
No entanto, para contrariar o sentimento generalizado, apoiado por extensa bibliografia, de que o subúrbio é feio, descaraterizado e unlovely (SIEVERTS in VAUGHAN et al, 2009: 7), encontramos igualmente extensa bibliografia no sentido oposto, defendendo a sua loveliness (VAUGHAN et al, 2009: 7).
Relativamente a Portugal, para além da herança passada já referida, talvez possamos estabelecer uma relação entre este facto e a publicação do Decreto 73/73, de 28 de Fevereiro. De facto, convém não esquecer que, de acordo com aquele diploma, os “projectos de loteamentos abrangidos por estudos de urbanização já aprovados ou os de loteamentos de reduzida dimensão em zonas rurais” poderiam “ser elaborados e subscritos, isoladamente, por arquitectos, engenheiros civis ou agentes técnicos de engenharia civil e de minas”, acontecendo o mesmo relativamente a aos “projectos de edifícios correntes e sem exigências especiais”. Neste último caso, desde que o edifício não ultrapassasse os quatro pisos e os 800 m2 de área de construção, chegava-se ao ponto de permitir que o seu projecto fosse elaborado e subscritos por “construtores civis diplomados”.
Por outro lado, talvez também devido ao facto anteriormente assinalado e a partir desse período, o cuidado com o desenho dos espaços públicos e com a sua qualificação, talvez não tenha sido, na grande maioria dos casos, o mais esmerado. Uma vez que, exceptuando os arquitectos, estes profissionais não possuem a formação adequada à prática da Arquitetura, a probabilidade de tal se verificar será, com certeza, maior.
Arquitetura do subúrbio
É necessário, e apenas justo, ter presente que trabalhar à volta da temática do subúrbio também é fazer Arquitetura. Felizmente, não são poucos nem recentes os casos de arquitectos que o têm feito ao longo dos tempos.
Destacamos, por exemplo, o caso de Raymond Unwyn e Barry Parker. Estes arquitectos, associados ao movimento da cidade-jardim, ficaram também conhecidos pela adaptação desse modelo ao desenho dos primeiros subúrbios-jardim, dos quais normalmente é destacado o de Hampstead, por ser um ponto de viragem. Embora Unwyn já tivesse sido responsável – durante a Primeira Grande Guerra e entre outros arquitectos – pelo desenho de vários subúrbios similares, foi o de Hampstead que lhes valeu – a ele e a Parker – o descrédito por parte de alguns adeptos daquele movimento (HALL; WARD, 2002: 41-42). De acordo com Hall e Ward:
“(…) Unwyn had already changed tack and offended the Garden City purists. When he left Letchworth in 1907, it was to design Hampstead Garden Suburb for Dame Henrietta Barnett. And this effectively split the infant movement ideologically, for though Hampstead Garden Suburb had the appearance of a Garden City and some of its community spirit, it was in every respect a pure commuter suburb; with no industry of its own, it was dependent on a newly opened underground station and was effectively separated from London only by Hampstead Heath”(HALL; WARD, 2002: 41).
Posteriormente, o governo de Sir Winston Churchill, incumbe Sir Patrick Abercrombie (também arquitecto), de desenhar o plano de 1944 para a Grande Londres. Nele Abercrombie identifica e quantifica um enorme problema de falta de espaço para expansão da cidade, no interior do green-belt que ele próprio define. Utilizando o modelo da cidade-jardim de Ebenezer Howard, o seu plano teria que prever a expansão da cidade para fora do green-belt em (sub)urbanizações “planeadas”, implantado cidades ex novo e expandindo as pré-existentes (HALL; WARD, 2002: 49-51).
Também em Portugal existem exemplos de (sub)urbanização programada. No caso de Lisboa, o grand ensemble de Nova Oeiras, projectado por Luís Cristino da Silva e Pedro Falcão e Cunha em 1955, foi o caso pioneiro, deste tipo de grandes conjuntos residenciais e constituiu um exemplo “modelar da arquitectura e do urbanismo do movimento moderno em Portugal” (NUNES, 2011: 48). Posteriormente, podemos ainda identificar, entre outros, os casos da Reboleira Norte (1960), de Miraflores (1962), de Alfragide (1963), de Nova Carnaxide (1964), de Santo António dos Cavaleiros, do Bairro Augusto de Castro e do Alto da Barra, em Oeiras (1965), da Reboleira Sul (1966) ou o do Plano de Telheiras (1971) como exemplos deste tipo de intervenção (NUNES, 2011: 47). Estes exemplos anunciavam “uma nova relação entre, de um lado, a forma urbana e as formas de crescimento urbano e, de outro lado, a emergência do automóvel como premissa urbanística” (idem, ibidem).
Subúrbio – um termo, múltiplas paisagens
A imagem conceptual (tipo-ideal) e pessoal de subúrbio é diferente consoante o indivíduo, o conhecimento que tem do território, a cultura em que está inserido e a época em que reflete acerca desse fenómeno. Vamos abordar alguns exemplos de tipo-ideal suburbano tentando, dessa forma, abarcar as várias realidades teóricas existentes.
Para Solà-Morales (in NUNES, 2011: 72) suburbanização é entendida, em termos gerais, como “o processo de expansão das cidades para o exterior dos seus limites através de formas de crescimento urbano (…) socialmente diferenciadas e diferenciadoras.”
Muitos anos antes, Ildefonso Cerdá (in Nunes, 2011: 150) identificava, na sua Teoria Geral da Urbanização, quatro formas de suburbanização:
- a que se dá pela atração exercida pela via de acesso à cidade, que tem que ver com as zonas de restauro (repouso e resguardo para homens e animais);
- a que se dá por razões industriais, associada à “rejeição por parte das autoridades urbanas da localização de indústrias perigosas ou insalubres nas cidades”;
- a que tem origem em causas administrativas relativas às taxas alfandegárias de entrada de mercadorias nas cidades, promovendo a instalação de edificado, dedicado à armazenagem e ao contrabando, junto às fronteiras das urbes e respectivas portas; e
- a que, simplesmente, constitui um meio de expansão da urbe, que se distingue como uma urbanização “ruralizada” apresentando um certo isolamento, “elegância e arranjo”, onde se localizavam as classes mais abastadas na procura de bem-estar, comodidade e ar puro, já escassos na cidade industrial que se instalava.[2]
Relativamente à mobilidade e forma urbana Cerdá encontra um denominador comum aos quatro tipos de subúrbio que identificou: todos se caracterizavam “por viverem da cidade para a cidade. Constituíam, cada qual com suas especificidades, lugares cuja ocupação e actividade dominante só era possível e se desenvolvia na relação com a cidade – relação que se fundava na mobilidade” (NUNES, 2011: 153).
Assim, não será de estranhar que, com o aparecimento do transporte de massas, de curta distância – o omnibus [carruagem colectiva puxada por cavalos], o tram (em português americano, quando puxado por cavalos e, posteriormente, elétrico), o commuter train (que por cá se viria a chamar comboio suburbano) e mais tarde, e especialmente, o automóvel – o processo de suburbanização foi drasticamente acelerado (FISCHER, 1976: 206). No entanto, este processo desenrolou-se de forma totalmente diferente consoante os contextos nacionais e históricos.
Reconhecendo isto mesmo, Fishman (in NUNES, 2011: 153) distingue dois modelos de suburbanização que se consolidaram na segunda metade do séc. XIX: o modelo continental e o anglo-saxónico.
Grosso modo e de acordo com Fishman (idem, ibidem), as cidades continentais e latino-americanas optaram por manter uma estrutura tradicional e assim a “oferta de edificado destinado à burguesia, bem como a uma emergente e embrionária classe média urbana, tendeu a estimular a sua concentração na zona central e nas suas mais recentes adjacências” (NUNES, 2011: 154). Por sua vez os avanços nos sistemas de transporte urbanos eram usados para deslocalizar a indústria e os seus trabalhadores para cada vez maiores distâncias do centro. Já no caso das cidades congéneres, britânicas e norte-americanas, a opção foi pela suburbanização da classe média.
“Como bem salienta Robert Fishman, o sistema de transporte suburbano par excellence, o comboio, serviu assim em dois contextos diferentes dois rumos e sentidos da suburbanização: uma organização continental associada à deslocação e fixação da indústria e do operariado nos subúrbios, uma organização anglo-saxónica associada à residência e à concentração residencial da burguesia e da embrionária classe média urbana nos arredores” (NUNES, 2011: 154)
Consequentemente, o
“modo dominante de ocupação dos arredores das cidades correspondente a cada modelo foi particularmente influente na forma como se impuseram diferenças de ocupação que vieram a contribuir para a formação de diferentes códigos de leitura da condição urbana e social dos territórios citadinos.” (idem, ibidem)
Um vasto interesse pela problemática do subúrbio construiu a imagem poderosa segundo a qual, por exemplo, o subúrbio norte-americano é composto por população branca, pertencente à classe média-alta. Este estereótipo acaba por ser apenas um entre as várias identidades que povoam aquele espaço, no qual encontramos também a classe média assalariada, imigrantes e população não-branca. (Harris, 1996; Nicolaides, 2002; Wiese, 2004 in VAUGHAN et al, 2009: 4) No final da década de 70 do séc. passado Fischer (1976: 207) escrevia que viviam mais norte-americanos nos subúrbios do que nas cidades centrais ou áreas não-metropolitanas e que as fábricas, o comércio e os serviços acompanhavam a população deslocando-se para lá. Isto, a prazo, significava que a cada ano menos suburbanitas necessitavam de visitar a cidade central para trabalhar, ir às compras ou para realizar actividades recreativas. (idem, ibidem)
Existe ainda outro tipo-ideal de subúrbio. Para Silverstone (in VAUGHAN, 2009: 4) por exemplo, o domínio cultural do subúrbio – o espaço cultural ou hipertexto(ASCHER, 2010: 46-49), se quisermos – arrisca-se a destacar-se da experiência quotidiana do próprio espaço físico suburbano. Segundo ele os processos de globalização (certamente associados aos desenvolvimentos tecnológicos) provocaram a marginalização do espaço público ordinário dos subúrbios. Para Silverstone (idem, ibidem) resta-nos aceitar a sua desmaterialização no discurso sócio-cultural no qual o subúrbio é um estado de espírito, ubíquo, insinuante e que se difunde; um espaço virtual ao invés de real.
Para além destas visões monocêntricas, existem alternativas não-monocêntricas ou policêntricas da relação entre cidade e subúrbio. Harris e Lewis (in VAUGHAN et al, 2009: 7) mostraram que, por exemplo, desde o séc. XIX existem na América do Norte, regiões multinucleadas com origem ligada à localização de emprego. Nesses locais verificou-se, a seguir à Primeira Grande Guerra, uma descentralização urbana precipitada pelos efeitos da generalização do automóvel, da desindustrialização e dos avanços nas tecnologias de comunicações nas economias das tradicionais concentrações urbanas (idem, ibidem). Castells referindo-se a este processo afirmou que «it relies on the formation of relatively dense business and commercial sub-centres, transforming the metropolitan areas into multinuclear, multifunctional spatial structures, organized around … new “urban villages”» (Castells in VAUGHAN et al, 2009: 7).
Reconhecendo esta transformação Marshall (in VAUGHAN et al, 2009: 7) apela à implementação de um perspectiva não hierárquica dos centros suburbanos uma vez que “the urban gravitational pull is more truly said to be from everywhere to everywhere else.”
Avançando ainda mais,
“Robert Fishman argumenta que a história dos subúrbios norte-americanos termina quando condições tecnológicas associadas à circulação e à comunicação refizeram territórios predominantemente residenciais em regiões com vocação e uso produtivo e lúdico. Para Fishman, a forma urbana que dos anos de 1970 em diante emergiu nos territórios suburbanos norte-americanos deve ser apreendida enquanto technoburb. Com a expansão e disseminação de tecnologias de informação e comunicação, a localização de actividades económicas adquire e desenvolve independência face às centralidades urbanas anteriormente estabelecidas. A inserção territorial da technoburb é a multi-centered region, um território estruturado ao longo de vias de circulação rodoviária e de corredores de expansão que pode atingir mais de uma centena de quilómetros de extensão. Technocity e technoburb são designações que remetem para o facto de as funções urbanas se encontrarem cada vez (mais) dispersas ao longo de paisagens que, como refere Fishman, não são nem urbanas, nem rurais, nem suburbanas.” (NUNES, 2011: 107)
Recentemente, autores como Castells, Ascher, Indovina e Bourdin, entre outros, têm vindo a propor os conceitos de metrópole e metropolização para dar conta destas e de outras transformações urbanas em curso nos últimos cinquenta anos.
“Os elementos motor da metropolização são económicos e tecnológicos e vão implicar a emergência de metrópoles – isto é, de vastos aglomerados urbanos, que perpassam várias unidades administrativas territoriais, com uma população superior a um milhão de habitantes e que se inscrevem numa rede de grandes aglomerados urbanos ao longo da qual estabelecem relações complementares e hierárquicas que em termos regionais e nacionais, quer em termos planetários” (BASSAND in NUNES, 2011: 77)
A este propósito, Indovina (2010: 18-19), define quatro fases no processo de metropolização (que podem ocorrer simultaneamente em localizações geográficas distintas), que por sua vez introduzem novas imagens concetuais dos espaços metropolitanos. Segundo este autor o processo inicia-se com a urbanização do campo na qual aí se instalam usos que não têm relação direta com a atividade agrícola. Em seguida, esses territórios passam à fase de urbanização difusa na qual se dá uma ampliação quantitativa da fase precedente sem alterar significativamente as qualidades desse espaço (mantendo-se o uso agrícola). A próxima fase é apelidada a da cidade difusa. Nesta fase altera-se o sentido do território uma vez que as implantações não-agrícolas continuam a aumentar de número e começam a localizar-se no território extra-urbano “serviços de qualidade urbana” (centros comerciais, equipamentos coletivos, etc.). É também uma “cidade dilatada” no sentido em que o território amplo do assentamento é usado como cidade. Por fim, a quarta e última fase é a da “metrópole territorial” referida acima.
3. A contemporânea renovação do interesse pelo subúrbio
É curioso notar a influência que ambas as Guerras Mundiais tiveram no debate sobre o subúrbio, notando-se ligeiros decréscimos na utilização das palavras suburb e suburban durante esses períodos e o oposto nos pós-guerras (Figura 1). Isto é claro no pós-Segunda Guerra Mundial, no pico de utilização dessas palavras (em particular o adjectivo suburban) que se inicia por volta de 1950 e que culmina perto de 1973, possivelmente, por via da crise petrolífera (Figura 2). Também o período ascendente na frequência de utilização da palavra suburban que se inicia em meados dos anos ‘80 (com queda do preço do petróleo) e termina cerca do ano 2000 (coincidindo com a existência de um pico no preço do petróleo) parece estar relacionado com questões energéticas. Ou seja, aparentemente, o debate sobre o subúrbio parece ter sido mais apelativo em alturas de abundância energética e esquecido durante as fases mais críticas nessa matéria. Será este um seu calcanhar de Aquiles?
Enquanto tema de reflexão, o subúrbio vem sendo sucessivamente revisitado, tanto como objecto de estudo como, não raras vezes, enquanto terreno ao qual se associa um diversificado conjunto de problemas sociais.
Será interessante, contudo, debruçarmo-nos sobre as razões possivelmente subjacentes àquilo que parece ser a contemporânea renovação do interesse pelo subúrbio, nomeadamente no campo da Arquitetura.
São três, as razões que passamos a destacar.
3.1 A diversificação da naturalidade e dos percursos residenciais dos arquitetos
Nos últimos anos, vimos assistindo a uma gradual alteração dos contextos de onde provêm os arquitetos. Defende-se que tal facto não é despiciendo para a discussão sobre os motivos que justificam a contemporânea renovação do interesse pelo subúrbio.
Note-se, é certo que a análise da realidade contemporânea da profissão de Arquitecto em Portugal revela a persistência de fenómenos de acentuada reprodução social. Expressivos testemunhos disso mesmo serão a “endogamia” verificada na escolha e no acesso à profissão (assim se designando “a elevada percentagem de arquitectos com familiares próximos na profissão”), ou a elitização e “excepcional fechamento da profissão (…) em termos sócio-culturais” (CABRAL; BORGES, 2006: 119, 34).
Contudo, alguma atenuação verificada nestas tendências, o próprio aumento do número de licenciaturas e alguma diversificação verificada, ainda que tenuemente, nas origens sociais dos alunos de Arquitectura, são elementos que – quando conjugados com a “drástica renovação geracional” operada no pós-25 de Abril (idem: 27, 34) – fazem supor como válida a hipótese da correlativa diversificação não apenas das origens sociais mas também das naturalidades e dos próprios percursos residenciais daqueles mais recentemente chegados à profissão.
Entre os dados produzidos no âmbito do interessante estudo que vimos referindo, promovido pela Ordem dos Arquitectos em 2006, vale a pena notar também a prevalência de uma notória “concentração dos profissionais nas duas grandes áreas metropolitanas do país”; de facto, “cerca de 61% dos arquitetos (tinham) nelas o seu local de trabalho” (idem: 29). Contudo, a maior parte dos locais de actividade dos arquitetos situavam-se em concelhos outros daquelas áreas metropolitanas, que não os de Lisboa e Porto[3].
Crê-se que a diversificação das origens sociais, das naturalidades bem como dos percursos residenciais e profissionais dos arquitectos são elementos que não podem deixar de (paulatinamente) influir na formulação dos valores, das normas e das representações que definem, em cada momento, a sua cultura profissional (COSTA, 1988)[4]. Neste sentido, e a propósito do interesse renovado pelo subúrbio talvez se possa dizer que os arquitectos estão mais sensíveis a terrenos que, no fundo, lhes são cada vez mais familiares.
3.2 Ante a crise de encomendas, a busca por novos objetos – ou o retorno a novos objetos
Afigura-se-nos verosímil, também, que a diminuição da encomenda pública e privada, normalmente localizada nos centros urbanos, levou os arquitetos a focar, com maior intensidade, a sua atenção em territórios e objectos não tradicionalmente tratados pela sua maioria.
Neste âmbito a cidade não canónica, a chamada cidade informal, as áreas de génese ilegal e a cidade feita sem arquitetos são temas que voltam a ganhar um lugar de destaque na agenda da investigação e da prática em Arquitetura. O que acontece, nalguns contextos pela primeira vez.
3.3 A crise do estado e a dignificação científica da cidade não canónica
Finalmente, e sobretudo, a renovação pelo interesse no subúrbio acontece num momento de profundas transformações operadas na escala do fenómeno urbano e nas condições da sua experiência. Mais especificamente, sucede quando o processo de metropolização em curso sobretudo nas grandes áreas metropolitanas do país (NUNES, 2007; NUNES, 2010) se conjuga com a expansão – e descoberta, na sua dignidade científica – de “estruturas urbanas que não seguem os princípios de continuidade e legibilidade que estiveram na base do desenho urbano canónico” (PORTAS; TRAVASSO, 2011).
Neste âmbito, a crise de encomendas combina-se com uma crise mais ampla, associada à inadequação de algumas ferramentas de planeamento às realidades territoriais e à incapacidade do Estado conseguir financiar, como vem acontecendo nas últimas décadas, a programação e respetiva infra-estruturação do território. Neste domínio, o da infra-estruturação, são apontados caminhos que passam por atribuição de níveis de serviço diferenciados territorialmente (CARVALHO, 2011) de forma a atingir uma maior racionalidade financeira e, também, ambiental.
Por outro lado, da temática ambiental, ligada à sustentabilidade, derivam uma série de questões que só por si têm servido de tema a milhares de artigos científicos. Falamos, obviamente, das questões relacionadas com as alterações climáticas e eficiência energética às várias escalas – nacional, regional, local e do edifício – mas, numa perspetiva de sustentabilidade mais alargada, falamos também das questões da equidade e coesão territorial.
3.4 O centro ainda o é?
Hoje parece não fazer sentido pensar que o subúrbio é menos relevante que o restante território urbano. Aliás, o chamado subúrbio suplanta a cidade nalgumas variáveis.
É sabido que, no caso português, é nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto que reside grande parte da população e se encontram grande parte do número de alojamentos e edifícios do País – 42%, 38% e 23% do total nacional, respectivamente (Instituto Nacional de Estatística, 2011). Tudo isto em apenas cerca de 5% da superfície do território nacional. Verifica-se que este facto tem tendência a consolidar-se, uma vez que as taxas de variação da população residente nessas áreas metropolitanas têm sido positivas nas duas últimas operações censitárias realizadas.
Por outro lado, é também aí que se concentra uma parte bastante considerável do emprego – 43% do total nacional – e a maior parte da produção – 52% do total nacional do PIB. Claro que, relativamente à última variável, é necessário ter em conta que as empresas que para ela mais contribuem têm, em grande parte dos casos, uma desproporcional expressão territorial, à escala nacional, em emprego e receita (é curioso notar que ambos os valores se mantêm estáveis desde 1995 até 2009) (idem, 2011b).
Contudo, e apesar disto, verifica-se que ambos os municípios que dão nome às respectivas áreas metropolitanas têm perdido população de forma consistente nas últimas duas décadas, embora com menor expressão na última (ver Figura 3, extraída dos resultados provisórios dos Censos 2011) (Instituto Nacional de Estatística, 2011a: 8; 2011; 2012: 6).
Relativamente ao parque habitacional das áreas metropolitanas, podemos verificar que o número de edifícios tem aumentado em todos os municípios, sendo que tal tem acontecido, em ambos os períodos inter-censitários, com maior intensidade nos concelhos limítrofes a Lisboa e Porto (ver Figura 4, extraída dos resultados provisórios dos Censos 2011).
Posto isto – e se pensarmos que, por um lado, grande parte daquilo a que muitos chamam subúrbio se encontra, maioritariamente, nestas áreas metropolitanas e, por outro, que isso não corresponde aos municípios centrais daquelas – somos forçados a concluir que o subúrbio está em pleno crescimento e que isso tem consequências com expressão a vários níveis: social, económico e ambiental.
4. Pensar no subúrbio
4.1 O temo subúrbio já fez sentido?
Compreende-se a utilização do termo em determinada altura da história, pois a cidade antiga – orgânica, canónica, não-planeada – expandia-se, com tempo, por processos de acreção de novas áreas com características iguais ou, sucessivamente, semelhantes à cidade pré-existente. A partir do momento em que a cidade passou também a expandir-se por processos de (sub)urbanização programada, passou a fazê-lo, na grande maioria das vezes, recorrendo a próteses que, isoladamente, não possuem, à partida e por definição projetual, todas as características da paisagem urbana canónica. Esse facto não é suficiente para que não se considerem essas próteses como áreas urbanas. Trata-se apenas de uma nova forma de expansão urbana; como diria Indovina (2010: 15): “la morfologia cambia mentre la condizione urbana persiste”. Sabemos hoje que, para muitos, essas continuam a ser áreas urbanas, embora possam ser deficitárias em determinadas características. Poderíamos dizer, então, que são áreas que constituem espaços urbanos mas não cidade, porém, como vimos, tão pouco esta questão é consensual.
4.2 Subúrbio, conceito vago
Sabemos que o subúrbio existe, claro que sim. Por exemplo, sabemos que, no ano 2000, 84% da população do Reino Unido e 50% da dos EUA (numa definição menos abrangente de subúrbio) habitava em áreas suburbanas, de acordo com dados oficiais. (ITC, 2004; PACIONE in VAUGHAN et al, 2009: 1) A questão não é, portanto, saber se o subúrbio existe; isso é uma evidência; é saber o que é o subúrbio; e ele é uma variedade enorme e complexa de ambientes, fenómenos socio-económicos, formas de ocupação territorial, morfologias e dinâmicas urbanas. Basta perceber que, em termos espaciais, o subúrbio é tudo aquilo que não é considerado cidade e campo, possuindo, como já vimos, caraterísticas de ambos.
Fischer (1976: 232), apesar de afirmar que não existe uma interpretação comum do termo, define subúrbio como sendo constituído pelos bairros que ficam a alguma distância do centro da concentração da população e nos quais a população aí residente escolhe sê-lo na base de critérios pessoais como, geralmente, a sua necessidade de espaço, o tempo de viagem para o trabalho e a sua capacidade financeira. Fisher refere-se, assim, à imagem genérica do subúrbio norte-americano – com habitação unifamiliar, espaço ao ar-livre, amenidades ambientais, tudo a um preço acessível – e caracteriza a sua população como estando de bem com a vida, a criar filhos e pertencendo ao grupo étnico dominante (idem, ibidem).
A maioria dos estudos britânicos sobre o subúrbio tendem a defini-lo de acordo com uma variedade de critérios de planeamento, socio-económicos ou culturais (VAUGHAN et al, 2009: 3; FISHER, 1976: 207). Enquanto estes sistemas de classificação avançam bastante na compreensão da variedade enorme de ambientes suburbanos e respectivo posicionamento cultural, eles são insatisfatórios no sentido em que a maioria dos subúrbios actuais, invariavelmente, contém elementos que tocam grande parte das categorias definidas. Tais sistemas parecem, consequentemente, ser bastante limitados ou redutores em relação às realidades que pretendem analisar (VAUGHAN et al, 2009: 3).
Já do ponto de vista do conteúdo conceptual, o termo subúrbio é, para uns, um “espaço geográfico”, para outros, uma “forma cultural” e, para outros ainda, um “estado de espírito”. (HINCHCLIFFE in VAUGHAN et al, 2009: 2) Por tudo isto, subúrbio é um conceito “elusivo” e “parcial” (CONNELL in idem, ibidem) e sobre o qual o consenso ainda demorará a ser atingido (NICOLAIDES; WIESE in idem, ibidem).
A maioria das análises contemporâneas ao fenómeno suburbano rejeita qualquer tentativa de definição autoritária e estanque. Aliás, autores como Bourne (idem: 4) e Harris e Larkham (idem, ibidem) apelam à aceitação do pluralismo na investigação do fenómeno suburbano, em reconhecimento da diversidade de perspetivas existentes e à multidisciplinaridade na abordagem do mesmo, como resposta à surpreendente complexidade do tópico.
“Porém, a rejeição da ortodoxia na definição não elimina a necessidade de uma noção teórica mais substantiva daquilo que constitui o subúrbio; pelo contrário aquilo a que (o próprio) Bourne se refere como “a complexidade crescente e inerentes contradições sugerem exactamente porque é que é necessário empenho teórico nesse sentido (Bourne, 1996, p.164). Na sua ausência, tentativas de aproximação ao subúrbio em geral como domínio de investigação são invariavelmente minadas por definições derivadas de características geográficas, sócio-económicas, tecnológicas ou culturais particulares que as recomendam em dado momento no tempo” (VAUGHAN et al, 2009: 4).
Ora, algo tão abrangente, que pode ser praticamente tudo, dificilmente pode ser alguma coisa de concreto. A este respeito Vaughan, et al. (idem, ibidem) afirmam que “Beyond the most perfunctory level of definition, it is far from clear as to what this term actually means or indeed, whether it can be thought to possess meaning at all.” É, portanto, necessário ter presente a enorme fragilidade epistemológica do termo subúrbio.
Posto isto, podemos concluir que o termo subúrbio constitui um conceito vago. Uma palavra-contentor que remete para realidades diversas dependendo dos interlocutores e, assim apresenta “a vantagem de deixar a cada um a possibilidade de produzir as suas próprias interpretações” (BOURDIN, 2011: 22). Por outro lado, a utilização de conceitos vagos na análise e compreensão dos fenómenos urbanos apresenta graves perigos.
“Em primeiro lugar porque eles veiculam convicções ou crenças e porque o seu sucesso reforça este carácter, antagónico a um processo de questionamento e de análise; de seguida, porque o carácter frequentemente muito abrangente das palavras vagas torna fácil a afirmação peremptória e difícil (…) a construção de um raciocínio circunstanciado; e finalmente porque eles dissimulam por vezes preconceitos cognitivos sobre os quais já ninguém se interroga” (BOURDIN, 2011: 23)[5].
De facto, em linha com Bourdin, Vaughan, et al. (2009: 10) afirmam que:
“The consequence of this fragility is that research in the field of suburban studies risks being undermined by an enduring legacy of widely-held assumptions regarding the ‘essential’ nature of the suburb. Yet such suburban imaginations tend to be derived from historically particular instances, rather than from a consideration of the type of generic problem that the suburb represents.”
Como tal, não sendo um conceito operativo, a sua utilidade prática para a compreensão e análise dos fenómenos urbanos é, no mínimo, reduzida.
4.3 Realidade complexa
Ao falar de subúrbio levanta-se, obviamente, a questão de definição do conceito e, neste caso, tratando-se de algo que se materializa territorialmente, da delimitação geográfica do mesmo. Se quanto à definição do conceito o debate não é conclusivo, quanto à sua delimitação muito menos consenso existirá.
A cidade é hoje um sistema extremamente complexo, geograficamente extenso e grande parte das vezes difusa. Como delimitar então o subúrbio? Por exclusão de partes, partindo do princípio que o subúrbio não pode ser a área central da cidade nem o campo? E o que é a área central da cidade? E o campo? Será que um centro urbano ao abandono é menos subúrbio do que uma área periférica com uma actividade económica e dinâmica urbana pujantes? Para além desta questão, onde é que se traça a linha? Esta questão também não é nova. Já relativamente à Roma Imperial Witcher (2005: 120) afirma que estando a cidade rodeada por subúrbios não seria fácil identificar onde esta acabava e se iniciava o campo.
Como dissemos, a cidade é hoje uma paisagem policêntrica, extensa, contínua e, por vezes difusa. Não é, por isso, fácil a sua delimitação. A cidade é um contínuo de variações de densidade, dinâmicas, fluxos, etc.. A paisagem urbana já não é caracterizada, como outrora foi, por descontinuidades evidentes, fáceis de identificar, que permitam traçar fronteiras entre cidade-centro e subúrbio, com algum suporte nas realidades territoriais. A este respeito Sieverts (2003 in VAUGHAN et al, 2009) e Marshall (in idem) afirmam que a transição geográfica do núcleo urbano para os padrões rurais de assentamento é relativa e variada ao invés de absoluta.
O que é então o subúrbio, como se materializa ou, por outro lado, será que o conceito ainda faz sentido? Será que não podemos (devemos?) chamar a tudo isto apenas cidade?
4.4 O que está então em causa?
Uma vez esbatidas (anuladas ou mesmo invertidas) as descontinuidades, territoriais, sociais e económicas, que permitiam diferenciar e estabelecer a dicotomia urbe/sub-urbe (cidade-centro/subúrbio), deixa também de fazer sentido analisar e operar com base nessa mesma dicotomia. Devido à carga negativa, à imprecisão e fragilidade do conceito de subúrbio, qualquer análise tenderá a iniciar-se viciada por preconceito ou, como se diz em castelhano, por prejuicio (parece mais adequado). Consequentemente, os resultados operativos poderão também ser ineficazes e até prejudiciais para a totalidade da paisagem urbana e incluindo as áreas centrais da cidade.
Para além disto, já de há muito se pretende que a paisagem urbana seja policêntrica (European Commission, 1999), com hierarquização de centros às várias escalas – nacional, regional e local. Esta ambição leva-nos a olhar para o território de forma diferente. Já não sob a perspectiva da dicotomia urbe/sub-urbe mas considerando a paisagem urbana como um todo funcional, estruturado, integrado, polinucleado, com áreas mais ou menos densas, com mais ou menos dinâmica, qualificadas ou a requalificar. Não se trata, portanto, de saber o que é ou diferenciar entre urbe e sub-urbe; cidade-centro e subúrbio: tudo isso é cidade. Trata-se de saber como operar na complexa e diversa paisagem urbana: como queremos estruturar a cidade; onde iremos potenciar a emergência de núcleos, com que qualidades, com que dimensão, a que escala, em que números, com que funções; quais as qualidades que deverão possuir e apresentar os espaços públicos urbanos em função da sua localização geográfica relativa e dos níveis de serviço (CARVALHO, 2011) que se estabeleçam para determinada área.
[1]Talvez não por acaso, à semelhança da expressão portuguesa “saloio” que, ao fim ao cabo, se referia às pessoas provenientes das áreas envolventes a Lisboa (do seu subúrbio?).
[2]É curioso notar que, para Witcher (2005: 120), nada disto se revela novo. Isto porque, partindo do princípio que as formas de suburbanização definidas por Cerdá não eram sempre mutuamente exclusivas, já na Roma antiga os subúrbios se caracterizavam pela presença de indústrias extrativas, manufaturas, armazenagem, atividades insalubres não permitidas no pomerium, e residências ostentosas da elite privilegiada que buscava no suburbium a salubritas (salubridade), o otium (ócio) e a amoenitas (amenidade). (CHAMPLIN in WITCHER, 2005: 122)
[3] Segundo estes dados, mais “de 40% dos arquitetos inscritos na Ordem (trabalhavam) na AML (Área Metropolitana de Lisboa) e mais de 25% na própria capital, o que (corresponderia) obviamente a uma concentração muito superior à da população em geral, mas que (poderia) corresponder ao volume de construções que (passava) pelos ateliês de arquitectura no conjunto do país. (…) Já na AMP (Área Metropolitana do Porto) (trabalhavam) exatamente metade da área de Lisboa, ou seja 20%, e um pouco mais de 10% na cidade do Porto” (CABRAL; BORGES, 2006: 29).
[4]A naturalidade e o percurso residencial são elementos não explorados no estudo referenciado. Atrever-nos-íamos a sugerir a importância da análise futura de tais temas no enriquecimento da reflexão produzida sobre o ethos da profissão. Para tal fundamentamo-nos nos frutuosos resultados observados no que respeita à exploração destas variáveis em sede de um conjunto de investigações associadas, por exemplo, ao campo problemático da sociologia e antropologia das profissões. Para um caso recente, poderá consultar-se, por exemplo, o trabalho de Susana Durão (2008), o qual, preconizando uma abordagem etnográfica à atividade dos Polícias em Lisboa, aborda a relação entre os seus percursos residenciais e as imagens que esses profissionais transportam sobre a grande cidade.
[5]Ainda sobre o poder de “devastação das palavras vagas” Bourdin afirma: “Eis dois exemplos de devastação das palavras vagas. Em primeiro lugar, o crescimento urbano em extensão (urban sprawl, desurbanização, etc., as palavras variam conforme as línguas, mas permanecem vagas). A urbanização ocupa cada vez mais área de solo, mas que alcance dar a esta afirmação incontestável? O universo de pequenas vilas e aldeias inscritas numa mesma região urbana que se encontra na Bélgica não tem nada que ver com as periferias uniformes de moradias no Texas. O consumo fundiário não tem o mesmo sentido conforme tem lugar num contexto de crescimento demográfico forte ou fraco. A dispersão da habitação não acarreta as mesmas consequências ao nível das deslocações e da vida social, de acordo com a localização dos equipamentos e das atividades, ou ainda de acordo com o tipo de forma urbana e de povoamento. A fraca densidade de habitação “percecionada” pode corresponder a uma concentração objetiva bastante forte. A própria densidade, conceito aparentemente científico e objetivo, pode medir-se de diferentes maneiras. Porquê privilegiar a relação entre superfície do solo e o número de habitantes? Poderíamos adotar outros critérios: o número de empregos, o acréscimo de valor produzido, a superfície da rede viária, intensidade das relações entre os habitantes e muitos outros indicadores. Descobriríamos então que, em todos os domínios, incluindo o que respeita às deslocações, o crescimento urbano extensivo, medido de acordo com os critérios mais usuais (distância até ao centro, densidade…), abrange situações muito diferentes. Seria preciso, portanto, construir uma verdadeira problemática da densidade e da dispersão diferenciando o que respeita à análise dos comportamentos (nomeadamente da mobilidade), da eficácia funcional e económica de um conjunto urbano, de questões de equipamento (nomeadamente das redes viárias e de saneamento), da utilização do solo e do ambiente, ou ainda das modalidades de construção ou do seu impacto sobre o consumo de energia. Conhecer-se-ia assim a extensão das nossas ignorâncias, o que permitiria colocar novas perguntas. Nada há de impossível em tudo isto, mas isso não se faz porque a questão do crescimento urbano em extensão se torna uma questão de convicções.” (BOURDIN, 2011: 23-24)
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