Entrevista
Ricardo Carvalho
rcarvalho@autonoma.pt
CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, Portugal
Rodrigo Lino Gaspar
rodrigolinogaspar@gmail.com
Doutorando no Departamento de Arquitetura da Universidade Autónoma de Lisboa (Da/UAL), Portugal. CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, Portugal
Para citação: CARVALHO, Ricardo; GASPAR, Rodrigo Lino – Entrevista ao arquiteto Gonçalo Byrne. Estudo Prévio 22. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2022, p. 2-15. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/22.1
Gonçalo, é uma honra e um gosto tê-lo aqui, como nosso entrevistado. Eu não poderia deixar de começar esta conversa com uma constatação, que tem um pouco a ver com o momento que estamos a viver. O Gonçalo Byrne é um dos grandes arquitetos portugueses que começa o seu percurso exatamente a enfrentar o tema de emergência da habitação coletiva. Ou seja, quando sai da faculdade e começa a sua experiência profissional, procurou colaborar com pessoas que estavam diretamente a tratar deste problema – estou a pensar no Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), mas também no atelier da Rua da Alegria – e, já em nome próprio, faz duas das obras de referência de habitação que procuraram dar uma resposta a de dignidade, a uma certa escala urbana. Como é que o Gonçalo vê o momento dramático que estamos a atravessar?
O momento é de tal maneira dramático que ultrapassa claramente o mundo da arquitetura. Na sociedade, na cultura, para não falar, obviamente, na geopolítica, estamos a atravessar um momento em que estamos quase no fio da navalha, um movimento de âmbito universal, planetário. E é claro que isso sobra para a arquitetura, como sempre. Embora a arquitetura, curiosamente, seja uma forma de conhecimento que está habituada a lidar com a transformação e, portanto, eu diria que a transformação é uma condição tão profunda da arquitetura que os arquitetos têm alguma vantagem neste momento. Eu costumo dizer que, se tudo não acabar mal, poderá ser uma crise profunda, mas, como todas as crises, traz mudança. E tenho sempre a perspetiva de que as crises são de crescimento – e espero que esta também seja.
De qualquer maneira, agora no plano nacional, falando da habitação, do direito à habitação, estamos a atravessar um momento muito complexo. Acabaram agora mesmo de sair as medidas “Mais Habitação”, que vieram ainda dramatizar mais esse momento. Eu acho que é uma iniciativa absolutamente extraordinária, já estávamos desabituados de medidas deste tipo, mas tem um problema: não sei até que ponto o seu ar tão transformador – em teoria, pelo menos – não é uma explosão que resulta de um adiamento de uma situação. A noção que eu tenho é que parece que, finalmente, o governo acordou.
©Gonçalo Henriques + Estudo Prévio
Quando o Gonçalo Byrne começa a trabalhar, existia no horizonte de expectativa dos jovens arquitetos dos anos setenta e início dos anos oitenta a capacidade de fixar tipologias habitacionais, ou mesmo formas urbanas, capazes de reinventar (ou terem a ambição de tentar) a cidade. O que me parece estar a acontecer hoje é que, de facto, o governo português reagiu de uma forma até inesperada, concordo, mas, do ponto de vista da nossa disciplina, todos os concursos que são lançados parecem ter uma fraca ambição de experimentação tipológica, ou mesmo de resposta aos problemas da cidade contemporânea. Ou seja, a pergunta parece-me estar mal elaborada.
Era isso que eu ia dizer. Finalmente acordou, mas acordou tarde e muito estremunhado. Porque os problemas de fundo continuam e isso é lamentável, é pena, porque – e agora falo também pela situação temos vivido na Ordem [dos Arquitetos] – tenho dificuldade em entender como é que (e não falo só neste governo) neste país, culturalmente, se vai silenciosamente, discretamente, passivamente, lateralizando e ignorando a dimensão fundamental, essencial, da cidadania. Há um cruzamento entre cidadania e arquitetura, entre polis e arquitetura, que é estranhamente cultivado, eu diria até de uma maneira intensa, no período do PREC. Foi um momento na arquitetura que vivi intensamente, porque precisamente trazia essa experiência ainda do anterior regime que, um pouco à margem do regime, conseguiu criar nichos, diria, de uma visão de cidade, de bem comum, onde a arquitetura tinha, de facto, um papel. Eu bem sei que era lateral, era a Federação das Caixas de Previdência, a Câmara de Lisboa, com o Gabinete Técnico da Habitação, o Porto, com alguns programas também de reabilitação, mas havia.
A seguir ao 25 de Abril, naquela convulsão, é muito curioso ver o que se passa em termos de transformação cultural, porque é de uma complexidade brutal. As pessoas hoje não têm noção disso, embora eu às vezes encontre algum paralelismo com o que se está a passar. O que se passou no 25 de Abril, entre muitas outras coisas, foi uma transformação brutal de um país que vivia de um sonho imperial, ainda, embora já completamente decrépito e em decadência (o último fenómeno, na arquitetura, que é um estertor desse sonho, é a Exposição do Mundo Português), e que, de repente, percebe que esse sonho era uma miragem que não tinha qualquer sustentação possível. Às vezes, faço um pouco um paralelo com o se está a passar hoje, os últimos acontecimentos são preocupantes. Não sei se vocês assistiram ao discurso de Putin, em dois dias diferentes. O primeiro é o Putin com o establishment todo, com um ar hiperconcentrado e preocupados, a reação dos rostos das pessoas que assistem ao discurso é muito preocupante, porque é uma plateia que está ali e não consegui ver um sorriso durante todo aquele momento. Depois, no dia seguinte, uma festa ensaiada, num estádio. Isto fez-me lembrar muitas coisas, quando começa a Guerra Colonial, em ‘61…
O Gonçalo Byrne assistiu a muitos episódios que consideramos históricos, começando pela Guerra Colonial. Existe uma primeira vaga de esperança com a Primavera Marcelista e a constituição do Fundo de Fomento da Habitação. Posteriormente, o Gonçalo trabalha nesses programas do Fundo de Fomento da Habitação, trabalha também no Programa SAAL, nas cooperativas de habitação pós 25 de Abril, inclusive na habitação de iniciativa privada. Com este percurso, qual é a sua opinião sobre qual é o verdadeiro problema da habitação? Como é que podemos tentar resolver o problema da habitação?
Aquilo que se vê hoje, quando se fala de habitação é um pouco chocante. Quando se vai dialogar nos ministérios (com algumas exceções, por exemplo, o Ministério do Ambiente está envolvido em questões ambientais, tem outro tipo de abertura), é sobretudo uma numerização, uma quantificação do fenómeno da arquitetura. É uma redução ao competitivo numa perspetiva, eu diria quase angustiante, de urgência, que eu acho que é limitadora, porque essa urgência e o quantitativo são um cocktail pouco aconselhável para quem fala de cidades, que são organismos de tempos médios e longos. Começar este programa “Mais Habitação” quando estamos a três anos do final dos fundos do PRR é angustiante, é terrível, porque é preciso não ter a noção de que a habitação tem o outro lado, que é o qualitativo. E ignorar esse lado do qualitativo é ignorar a grande realidade. A habitação não se faz para ganhar um campeonato, ou para ganhar uma taça, faz-se porque há problemas reais, porque a cidade atravessa uma crise fortíssima, que se tem vindo a insinuar lentamente e que, com estas transformações últimas (a crise climática, a pandemia e, agora, com a questão da guerra que fez disparar a inflação), cada vez se agrava mais. E o que se nota hoje é esta inação da iniciativa pública de habitação. Eu acho que o privado tem um papel importante a desempenhar, mas a coordenação entre o privado e o público tem estado “a dormir” há muitos anos, eu diria desde o final dos anos oitenta. É curioso ver como a seguir ao 25 de Abril há aquele período do PREC, que, obviamente, é um período de grande convulsão, mas em que há uma série de sementes que são muito importantes para repensar a cidade, o espaço público – para pensar aquilo que faz a cidade o espaço da cidadania. A partir dos anos oitenta, começa a ausência da mediação do Estado, que passa a delegar, com grande conforto, na banca e na tecnocracia.
©Gonçalo Henriques + Estudo Prévio
Penso que há uma outra diferença dos dois tempos que o Gonçalo experienciou. Havia, nas decisões políticas, nos anos setenta, pelo menos no sul da Europa, a influência dos arquitetos pensadores, onde eu incluo o Gonçalo. Estou a pensar nos grandes pensadores como Aldo Rossi, Giorgio Grassi, ou a Escola Catalã, todos eles foram capazes de produzir conhecimento que foi poroso, em relação à política. O Gonçalo trouxe para o seu trabalho, evidentemente, esse nível de cultura arquitetónica e de erudição. O que eu sinto hoje, como arquiteto que também sou, é que a política está completamente alienada de um pensamento disciplinar. Mas não sei se os arquitetos também não têm uma enorme responsabilidade nisto, porque a nossa disciplina se demitiu de lançar o pensamento para a primeira linha.
A perspetiva hoje, em termos de habitação, está muito longe de entrar no mundo na qualidade. Tenho notado isso dentro da própria Ordem, nós temos insistido na questão da qualidade arquitetónica – agora vai estar outra vez na berlinda no 16o Congresso da Ordem dos Arquitetos. Mas sinto reações de colegas que dizem que o que é preciso neste momento é quantidade. Claro que este dilema sempre existiu, mas é preciso ter algum cuidado, porque o problema é o “ou”. É claro que o Estado diz que isto é tão emergente que o que é preciso é ter números, é preciso urgência. E o que eu digo é: sim, mas sem descurar a qualidade. E não são incompatíveis. O problema é que, hoje em dia, a própria máquina do Estado está completamente desapetrechada desse staff, desse mundo que existia. Tive uma conversa já há dois anos e meio, logo no início do meu mandato como presidente da Ordem, com o presidente do Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), em que eu perguntava: “Mas como é que o IHRU que está, e bem, encarregue de gerir a questão da bazuca habitacional, vai reagir a isto, com os prazos, urgências, que tem?”. E tem estado a fazer um esforço incrível, porque não abdicou do concurso de conceção, que é já um reduto mínimo da discussão sobre a qualidade… Mas eu perguntava-lhe: “Como é que é, com tudo o que é preciso fazer sobre as novas tipologias, as novas formas de habitar? Tivemos uma pandemia, que revelou tanta coisa, e, agora, com toda a questão da ecologia, da sustentabilidade, que é preciso repensar tudo isso, onde é que está o staff que elabora sobre isso?”. E a advogada disse “arquiteto, desses já cá não resta nenhum”. Eu dei o exemplo do staff que havia no Gabinete Técnico da Habitação, tinha sociólogos, arquitetos, engenheiros, fazia-se continuamente uma reavaliação – do que se fez em Olivais Norte, antes de passar para Olivais Sul e para Chelas – havia uma elaboração contínua. E uma das questões é pensar que a habitação, se é pensada como um contexto isolado, não faz sentido nenhum. A habitação só faz sentido porque é uma das matérias essenciais da cidade. Talvez a mais importante de todas. E aprendeu-se muito nessa altura, do ponto de vista da proposição, mas também da revisão crítica.
O Bernard Huet, que foi o diretor da L’Architecture d’Aujourd’hui durante muito tempo, veio a Portugal fazer o famoso número sobre o 25 de Abril. E o Bernard Huet, que eu conheci depois (foi professor em Lausanne, e colaborámos) escreveu na altura uma série de artigos muito críticos em relação à visão sistemática da habitação, dizendo que havia ali uma espécie de vertente, eu diria pós-moderna, da cidade máquina, da machine à habiter. Repetição sim, mas temos que ver que isso também é uma consequência de uma necessidade de uma resposta absolutamente desmesurada, porque duas guerras mundiais, mas sobretudo a segunda, obrigam uma resposta, o Plano Marshall, que é de tal maneira absorvida pelo quantitativo, que implicou medidas pesadas de fazer, uma atitude repetitiva.
Eu apanhei um pouco esse movimento crítico, que me parece também importante, porque acho que, no ataque que se faz à arquitetura moderna, os arquitetos e arquitetura são injustamente vitimizados, na medida em que se diz que a arquitetura moderna matou a cidade histórica, que a reconstrução pós-guerra na Itália foi desastrosa para o património, os “esventramentos mussolinianos”, etc. Não é bem assim. Nós sabemos que, mesmo no período mussoliniano, há coisas muito bem feitas. Mas a verdade é que a grande vítima da cidade moderna, e da sua reconstrução, não são os arquitetos, é a guerra. Eu tenho falado nisso agora, porque o vemos em direto na televisão dia e noite – a guerra é claramente a suspensão da arquitetura, e a antítese da arquitetura, e tem consequências brutais. E nós estamos a voltar a esse tempo novamente.
Mas o que está a acontecer em Portugal, neste momento, e os arquitetos têm que estar do lado proativo, bem ou mal, é que tem que se construir, tem que se criar uma maneira de não deitar fora o dinheiro que existe, porque são vinte e seis mil casas. Agora, com o reforço, com a possibilidade da reabilitação, já se fala em trinta e cinco mil casas. Estamos a falar de um setor que está a crescer desesperadamente e que não vai lá com a casa vendida, tem que ir com o arrendamento. Porque a política do final dos anos oitenta teve várias consequências danosas. Eliminou o arrendamento porque todos passaram a ser proprietários. Isso não é mau em si, era um problema de conjuntura financeira, mas gerou duas cidades muito más – uma foi a periferização da cidade descontrolada, a custos baixos, mas, mesmo assim, com algum poder atrativo, para ser comprado barato, sem pensar o que se ia pagar depois nas deslocações e na periferização da cidade. É uma das consequências. E a outra foi que acelerou a desertificação do centro histórico. E nós estamos a viver isso.
Curiosamente, há um turning point desta perspetiva da cidade, que passou despercebido, mas que é muito importante, que é a Expo ‘98. É um turning point porque, a partir de um evento efémero, que é uma Expo (em Sevilha correu mal, mas em Barcelona, com as Olimpíadas, correu muito bem, no sentido de relançar todo o movimento de reabilitação urbana – e de alguma expansão também, mas já se falava muito de reabilitação). É um cluster onde se volta a pensar cidade, com a habitação como byproduct, ou seja, o produto lateral, com uma engenharia financeira curiosíssima; e tem tudo, partindo de um brownfield, que estava altamente poluído, que é reabilitado para fazer um pedaço de cidade, que hoje é provavelmente o pedaço da cidade de Lisboa mais vivo, em termos de vivência. Foi ainda continuado com os programas Polis, por exemplo, que voltam a colocar a reflexão da cidade a partir do espaço público, o que é muito importante. Há uns programas que os governos vão implementando, como o Rehabita, mas que têm consequências mínimas, do ponto de vista da habitação. E hoje temos apenas 2% do parque habitacional público, um dos mais baixos de toda a Europa, incluindo a Europa ultraliberal, como a Holanda, que anda nos 12%.
©Gonçalo Henriques + Estudo Prévio
Falando também de habitação, no passado, o Gonçalo fez uma série de viagens, às diversas new town inglesas e aos siedlungs alemães. Porque é que em Portugal este tipo de programas não aconteceu em simultâneo com o resto da Europa?
Eu diria que por razões económicas, porque efetivamente em Portugal há sempre um problema crónico, é uma economia frágil que, até aos anos cinquenta, está muito apoiada num colonialismo que estava a decair. Quando acaba a Segunda Guerra Mundial, Portugal tem um problema grave que o Salazar tentou gerir com a criação das províncias ultramarinas (uma ideia um pouco peregrina de encobrir a colonização), mas tem dificuldade em perceber que quem venceu a guerra foram os regimes democráticos. Apesar de haver uma série de reformas, o período do Duarte Pacheco é importante, mas há muita pobreza, há um problema económico real e há um problema cultural também. Portugal continua a ser economicamente rural, mas, sobretudo, culturalmente rural. Há um desfasamento, claramente, em relação à Europa, embora haja os tais nichos – ainda antes do Fundo de Fomento da Habitação e do Gabinete Técnico de Habitação, houve um pequeno núcleo no LNEC, com o Nuno Portas, que fazia a ponte com o Nuno Teotónio Pereira, no atelier, que tinha ligação também à Federação das Caixas de Previdência, que fez um esforço desesperado – organiza dois colóquios importantíssimos, vem o Chombart de Lauwe, toda a nata europeia da altura -, mas que tem consequências, do ponto de vista cultural, mesmo entre os arquitetos, relativamente reduzidas.
Eu tive uma sorte muito grande de ter estado muito próximo do Nuno Portas e do Nuno Teotónio Pereira. O pai do Nuno Portas tinha sido colega de curso do meu pai, eram os dois engenheiros de minas. Mas eu conheço é sobretudo o Nuno Portas e o Nuno Teotónio arquitetos e esta sensibilidade que havia neles, sobretudo na temática da habitação. Houve um repensamento sobre a arquitetura moderna, que tem a ver com os últimos CIAM – e isto vem um pouco através do Fernando Távora e de todos os arquitetos do norte que estão ligados àquela geração – Viana Lima, Octávio Filgueiras, Carlos Loureiro. Depois, no sul, o Nuno Teotónio, o Nuno Portas, o João Braula Reis, e uma série de outros arquitetos, introduzem autores e experiências europeias. O Távora vai muito pela revisão dos CIAM e, por isso, aproxima-se um pouco da Holanda, também da Finlândia, e também do Aldo Rossi.
O Portas e o LNEC introduzem fundamentalmente os italianos e os ingleses – nos italianos, não é ainda o Rossi, é o Ludovico Quaroni e o INA-casa, o grande instituto de habitação Italiano pós Mussolini, que faz todo o desenvolvimento da habitação e que tem uma produção arquitetónica e teórica muito importante. Também do lado inglês, introduziram toda a cultura das sucessivas new towns.
Eu lembro-me de ter visitado, ainda como aluno de arquitetura, o gabinete técnico da habitação londrino, o Great London Council (GLC), que estudava a Grande Londres. Fui ao gabinete, apresentei-me, disse que tinha muita curiosidade no trabalho que o GLC estava a fazer, que tinha um plano de visitas e que gostava de saber mais informação sobre a primeira geração das new towns. Fui recebido na receção e, a certa altura, desce um fulano (mais tarde, vim a saber que era um dos diretores do gabinete), que passou uma manhã inteira com um puto, a explicar o que estava a passar, com uma paciência de santo. Encheu-me de literatura, deu-me uma série de pistas para ir visitar, na altura Stevenage, Harlow, as primeiras, ainda estávamos a entrar na segunda leva das new towns – depois vem a terceira, que já que se aproxima um pouco da cidade-jardim novamente. E visitei uma série de outras, menos conhecidas. Mais tarde voltei, já como arquiteto.
©Gonçalo Henriques + Estudo Prévio
Parte desses conjuntos foram classificados como Património Mundial da Humanidade. Estamos a falar de coisas que, a posteriori, as pessoas reconheceram como memória coletiva. Se isso aconteceu, significa que o esforço de todos aqueles arquitetos, políticos e pensadores valeu a pena. Fazendo a ponte para o momento que estamos a viver, a ambição não deveria ser menor, ou seja, aqueles arquitetos sabiam que estavam a dialogar com o tempo, mesmo fazendo o mais corrente dos programas – tipologias de pequena dimensão – algumas casas tinham trinta e nove metros quadrados – processos construtivos sofríveis, porque muitas vezes estavam à frente da tecnologia. Hoje, em face da urgência de que já falámos, parece inevitável que a ambição seja um diálogo com o tempo para fazer uma coisa que seja capaz de o enfrentar – e há uma paralisia.
É fundamental esta dimensão. Hoje, o grande problema é que o tempo da política é o tempo do imediato – e eu acho que isso se vai pagar muito caro, vai ter um preço muito, muito alto em termos sociais, em termos de cidade, de cidadania, de habitação, de vivência. Porque a cidadania, que é o conceito central que está em cima da mesa, é fundamental. E é muito importante na questão dos direitos e dos deveres, e da participação num modelo que está muito em questão neste momento. Mas cidadania implica viver em espaço partilhado. E é aí que entra a arquitetura. E não entra sozinha, há mais gente envolvida, paisagistas, engenheiros. Hoje é muito importante saber que a arquitetura não só tem de se repensar um pouco a si própria, como tem que repensar que não está sozinha a fazer cidade. Também há políticos, vizinhos e comissões de residentes, há um movimento social e político que é essencial – mas que se esfrangalhou completamente.
Eu diria que é preciso também haver esses palcos onde se discute cidade, nos quais os arquitetos estão bastante ausentes. Será o meio académico o primeiro espaço onde se devia provocar alguma alteração?
A resposta a essa pergunta, para mim, é muito simples. À semelhança do que está a acontecer com esta iniciativa do governo – “Mais Habitação” – que é bem-intencionada, mas é tardia, a academia também está atrasadíssima, na minha opinião. Ainda no final dos anos noventa, princípio dos anos dois mil, estava no departamento de Coimbra e, curiosamente, começaram a aparecer estudantes que queriam fazer o trabalho de fim de curso sobre sustentabilidade. E o Conselho Científico achava que, se queriam fazer sobre sustentabilidade, era comigo. E fiquei com o anátema de ser o “chato de serviço”, embora eu dissesse que achava o tema muito importante, mas que não era especialista. Mas o que é curioso é que a pressão veio dos alunos. Claro que é nas universidades que nasce tudo.
©Gonçalo Henriques + Estudo Prévio
A Beatriz Colomina lançou agora há alguns meses um livro muito interessante, chamado Radical Pedagogies, uma história do ensino da arquitetura à volta do mundo, desde os anos sessenta até os anos oitenta. As escolas de arquitetura à volta do mundo – Europa, América do Norte, América Latina e, pontualmente, algumas escolas em África e na Ásia – estavam a reagir a todos os problemas da hegemonia de poder, hierarquia, diferença de género. O livro acaba com o Porto e com o facto de o programa SAAL ter tido a sua semente dentro da escola de arquitetura. É outra constatação que podemos fazer hoje, que as próprias escolas perderam um pouco que este lado da radicalidade, entendida como coisa necessária para a transformação. E, se calhar, isso tem de ser ganho, novamente.
Concordo totalmente, no sentido em que eu acho que esta transformação tem que passar claramente por uma radicalidade de atitudes. A questão começa nas escolas, mas não só. A questão da radicalidade é inerente à própria transformação que se está a passar. Creio que as pessoas não se deram conta que esta machadada última da guerra, que nós vemos neste momento da televisão, é o obsceno estertor da civilização carbónica. Tudo o que se vê na televisão são edifícios carbonizados, toda a energia bélica é carbónica. Esta guerra é iniciada com uma invasão cujo grande trunfo é totalmente carbónico. Toda a guerra moderna assenta na energia carbónica, exceto a nuclear – mas a nuclear é bullying, porque se não for bullying até a guerra acaba, acaba tudo.
Já começa a haver estatísticas da evolução da pegada carbónica do planeta desde que a guerra começou, e está a aumentar outra vez, estava a reduzi mas já se inverteu. E isto resulta da guerra, não sei por que é que não é dito. Talvez se diga em Davos, mas não chega cá fora e, portanto, nós estamos a viver um período em que a alternativa – provavelmente “lixada”, mas é o grande desafio, aquilo a que eu chamo um eventual novo Renascimento – a mudança de paradigmas, só lá vai com uma atitude radical.
©Gonçalo Henriques + Estudo Prévio
O Gonçalo estudou também durante uma outra guerra, a Guerra Colonial, e participou numa série de lutas estudantis, que foram bastante importantes para tentar reverter o regime autoritário em que vivíamos. Não existe um paralelo entre estes dois cenários?
Completamente. Eu acho que sim. Hoje em dia, o fenómeno da jovem Greta Thunberg, com toda a manipulação que possa ter, é um sinal muito claro de que quem está no olho do furacão são os meus netos, não sou eu – são vocês, são os vossos filhos. Sâo os estudantes, os alunos (mais do que os professores, que normalmente são mais velhos do que os alunos). Há aqui tantas leituras intergeracionais no nosso país, que está cada vez mais velho…. Mas eu estou totalmente de acordo, e cada vez mais encontro paralelismos entre o que se está a passar na geoestratégia mundial e aquilo que se viveu em Portugal, com o estertor do imperialismo, que está muito patente hoje.
É possível haver uma futura reação, como existiu na altura? Seja uma reação política ou respostas de ação?
Sabem o que eu acho que está a acontecer aqui? Não sei se vocês leram um filósofo americano de Harvard, Michael J. Sandel, ele tem vários livros, mas tem sobretudo um, “A tirania do mérito”, que vale a pena. O que está a acontecer é que há uma constante, a economia tem vindo a concentrar-se em dez por cento da população, tendencialmente num por cento da população. E esta evolução, que tem por trás toda esta problemática que estamos a discutir, tem duas soluções: uma perspetiva capitalista ou uma perspetiva marxista. A perspetiva marxista tem estado a reagir, de uma certa maneira, mas tem alguma dificuldade, porque é muito ortodoxa. O proletariado hoje em dia é outra história, é muito mais vasto do que o proletariado que conhecíamos. O problema é que o capitalismo é um grande camaleão e consegue adaptar-se a tudo isto. E a questão que se põe, para responder à questão das reações e dos movimentos mais ou menos populares, é que, se não se faz nada para intervir, corrigir ou inverter esta movimentação, esta revolução está a aparecer em epifenómenos localizados, a todos os níveis, como por exemplo com os professores. E a reação dos professores já não é a reação sindical ortodoxa, é outro tipo de reação sindical, porque os processos de luta também estão a sofrer evoluções. De outra maneira, os ressurgimentos das guerras religiosas, que são extremamente complexos, mas que estão em cima da mesa, o Putin não é o Putin, é o Kirill, e só agora é que se começa a dar importância a isso, é o sonho de uma Euroásia…
De uma nova Guerra Fria?
A Guerra Fria, em princípio, precisa de uma bipartidarização. Estava a haver uma tripartição, mas está agora a repor-se outra vez a bipartidarização. A Rússia não estava a impor-se, era a dualidade da China e os Estados Unidos – um movimento pós- marxista, mas que se traduz num regime musculado, e um regime democrático de raiz liberal. Agora, há um terceiro elemento que aparece e que se está a tentar chegar à China, o que vai reforçar a bipartidarização outra vez. Só que eu acho que o projeto ideológico da Rússia não é exatamente o da China. Assenta em várias ambiguidades, é uma oligarquia tremenda – a China também, mas há diferenças. Não sei como é que vai ser. E depois há um grande sonho russo, que é claramente pré-imperial, são os fantasmas da história.
©Gonçalo Henriques + Estudo Prévio
Para acabarmos com um sinal luminoso, imagine que estava agora a acabar o curso de arquitetura. O que gostaria de fazer? Qual era a frente de trabalho que iria abraçar?
É uma boa pergunta, para a qual eu não tenho uma resposta imediata, mas devo dizer que tenho pensado muito nisso. Tenho pensado e tenho falado, inclusivamente nas cerimónias de receção dos novos membros da Ordem, porque eu costumo dizer – e já dizia nas teses de mestrado em Coimbra: “Vocês estão a recomeçar. Vão entrar no mundo em que, de repente, as coisas deixam de ser «a feijões». Agora é a sério”. Até nisso o mundo académico às vezes gera algumas ilusões que eu acho que são chatas, são graves, não facilitam a vida à malta, como esta endogamia, ou endogenia – que não é uma coisa só da arquitetura, também deve muito à civilização do niilismo, do edifício icónico de arquitetura, da arquitetura da opulência, que se foi construindo, a até num pouco, quanto a mim, ao exagero do arquiteto star, que está muito ligado a esta arquitetura que hoje está completamente posta em causa, porque é, de facto, também um fenómeno de mercado.
Não era sobre a necessidade?
Não é sobre a necessidade. É claramente um fenómeno de produção do mercado linear, ainda por cima, não é do circular. Eu acho que há um mundo paralelo, onde a arquitetura já está a tentar singrar, mas que é um mundo muito em construção, que está muito consciente desta questão do “Reduce, reuse and recycle” e que tem a ver com um renascer da arquitetura, que eu acho que é fundamental. Porque estamos de facto a falar, eu diria, de um renascimento. Não é o Renascimento do século XV e XVI, que era um fenómeno europeu, hoje o renascimento é global, é planetário. E é com todos ou não é com nenhum. A maneira como é composta a questão da sustentabilidade, a questão do ecos, da casa de todos nós, da ecologia, é bastante exigente, muito radical, mas eu creio que isso vai implicar um renascimento da arquitetura. Há alguns documentos, como a carta (claramente utópica) da New European Bauhaus, que, como todas as utopias, são importantes. O problema é como é que se constroem as utopias e como é que a arquitetura as vai construir. Isso, para mim, é o grande desafio, para não dizer um grande sonho – a que já não vou assistir -, que eu gostaria de algum modo que as escolas de arquitetura construíssem; e percebessem que são parte da solução e não parte do problema. Como as Ordens, e, neste caso, a Ordem dos Arquitetos, que eu acho que tem que abdicar de muita coisa. Tem que perceber que tem vivido um mundo de ilusão – para não dizer de grande insignificância. Porque não vamos a lado nenhum com a Ordem que temos tido… Mas é também perceber que essa mudança implica grandes mudanças internas e uma delas é perceber que as endogenias provavelmente têm os dias contados. E isso, para a arquitetura, é um grande desafio.
©Gonçalo Henriques + Estudo Prévio
Renascimento é um final fabuloso, porque abre para muitas frentes, desde a orgânica até à absolutamente conceptual.
A primeira vez que publiquei uma pequena monografia na revista Casabella foi com um texto do Manuel Mendes, que pegou numa frase que eu dizia na altura: “na arquitetura era importante ir aos sítios com o nascer do sol”. Quando se tem um projeto de arquitetura, há uma vontade de transformar o sítio. Há uma ilusão, há uma utopia – e o projeto nasce. O Siza tem aquela frase lindíssima “Quando o projeto começa, é como um pássaro que agarro na mão. Se aperto muito, ele morre, se relaxo muito, ele voa e vai-se embora”. E eu dizia que o sítio onde nasce o projeto, é importante percebê-lo com o nascer do sol, porque as características ao nascer do sol são incríveis, porque é a revelação do reinício, do renascer. A arquitetura das igrejas, e não só, dos templos, está muito baseada nisto, o altar a nascente não é porque está virado para Jerusalém, é porque tem o nascer do sol. E a noite é tudo o que é mau e o dia é tudo o que é bom.
Será renascimento ou será reação?
Eu percebo perfeitamente o que diz, só que eu, quando ouço a palavra reação, tenho um calafrio. Nasci na cultura de que a reação era prender os pés no chão, era voltar para trás. Mas eu estou de acordo, no fundo. Eu acho que mais do que uma reação, mais do que uma resistência, é resiliência. A resistência era o grande termo da arquitetura. A arquitetura resiste a todas estas tentações do mundo alienado. Neste momento, a resiliência tem a ver com a fénix que renasce das cinzas. Ou, se quiser, é a capacidade de reagir à catástrofe. E não é resistência. Há um livro muito interessante, “The Resilient Cities”, com dezassete case studies, e um deles é Lisboa. Lisboa é um dos casos de resiliência urbana, com o terramoto. É muito interessante ver como Lisboa renasce das cinzas – há uma lógica, há o iluminismo, mas há um pensamento. Eu acho que agora vivemos claramente um desafio a tudo isso: o de reagir, resistir e renascer.