Vítor Figueiredo (1929-2004)
Para citação: FIGUEIREDO, Vítor – Habitação em S. João do Estoril. Em guisa de memória descritiva e justificativa (CODA, ESBAP). Estudo Prévio 20. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2022, p. 24-28. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/20.4 (ed. original 1964). Publicado a partir de ARENGA, Nuno (ed.); FIGUEIREDO, Vítor; LOBO, Vasco; MELLO, Duarte Cabral de; BYRNE, Gonçalo; SPENCER, Jorge; COUCEIRO, Joana – Vítor Figueiredo: fragmentos de um discurso. Porto: Circo de Ideias, 2012, p. 19-23.
Habitação em S. João do Estoril. Em guisa de memória descritiva e justificativa
CONCURSO PARA A OBTENÇÃO DO DIPLOMA DE ARQUITECTO, ESCOLA SUPERIOR DE BELAS-ARTES DO PORTO, CODA, Escola Superior de Belas–Artes do Porto, 1959, 19 valores. FAUP/CDUA
I
No mês de Outubro de 1957 foi-me oferecida por um arquitecto, antigo colega, a possibilidade de a troco de remuneração horária executar o projecto de uma habitação para uma pessoa sua amiga; pedira-lhe um projecto “gracioso” e posteriormente concordara em pagar à hora a alguém que o fizesse.
Aceitei realizá-lo e fi-lo com toda a alegria de quem vê a possibilidade de saber construída uma obra sua e só sua; com a alegria que se poderá esperar encontrar em alguém que não sendo “filho de família” nem tendo “amigos de berço” ricos ou influentes sabe com funda certeza da total ausência de perspectivas que lhe oferece um presente e um futuro previsível.
É com esse projecto que prestarei provas para a obtenção do diploma de arquitecto.
Não vo-lo apresento como algo de bonito e talvez de boa qualidade que se estende numa bandeja de prata para mostrar como se é dotado; tão pouco como algo destinado apenas à obtenção de um diploma.
Apresento o meu primeiro trabalho profissional com a consciência de me ter entregue a ele totalmente, enquanto o construí no papel, e de o continuar a viver hoje como experiência já realizada.
II
Evidente ou não, toda a obra exigira conter em si a história da procura feita, do caminhar tacteando de seu criador, responsável porque ela seja a sua expressão total e actual (no sentido tempo existência) e não um repositório semi-automático do já percorrido.
Como toda a obra esta também tem referências próprias e especiais. Por essas referências ela se explica e por isso, de preferência a uma descrição exaustiva e incaracterística dos seus elementos proponho tentar situá-la dentro delas.
Acordei, senti e principiei a amar a arquitectura na controvérsia verificada pelo abandono de uma linguagem que, feito historicamente o seu papel, se mostrava cansada. Poderei dizer que nunca a vivi ou ensaiei conscientemente (obviamente falo no plano escolar) e só posteriormente resolvi da sua falência, não porque simplesmente a achasse desactualizada mas porque o purismo formal, a negação de toda a expressão vagamente romântica, a busca de princípios denunciadores de uma época abstractamente considerada colectivista, a preocupação de uma linguagem que para ser actual teria forçado validade internacional, se me apresentaram como contendo já em si os gérmenes da esterilidade.
Se estas razões são por demais empíricas direi, já no domínio da Razão, que a atitude racionalista me surgiu como traição ao destinatário da arquitectura — o homem de hoje; o homem total, situado e concreto, mas empenhado também. Revelação na arquitectura da caduca distinção aristocrática entre elites e “massa”, esquecidos todos de que a massa era constituída por homens; erigido em nome da razão e atendendo unicamente às necessidades objectivamente mensuráveis — a cubicagem x, a área y, a economia z, etc. — o racionalismo tinha forçosamente de trair o homem que é subjectividade para além do volume de ar que aspira e dos metros quadrados sem os quais se morre. Traição ao humano ainda quanto propõe um “critério de realidade” metafísico a um mundo que definitivamente tem de se negar a pretensão de os elaborar — sejam eles espiritualistas ou ateus, idealistas ou materialistas. Sabemos só que o homem é uma totalidade dinâmica imersa em outras totalidades dinâmicas. Só a uma e a outras temos de atender e às relações entre todas existentes — no seu passado, no seu presente e no seu futuro que nos cabe a nós construir; no seu devir em suma.
É nesta medida que forçosamente me procuro identificar com aqueles que, partindo da recusa da idealidade cínica ou esquecida do racionalismo, buscam firmar-se num “caminho para o concreto”, na troca do abstracto pelo real e na consequente negação de um critério que definisse de uma vez para sempre a realidade humana, que não com aqueles que temo empenhados na troca de um “ismo” por outro mais em voga, pois não será legítimo, desde já, perguntarmo-nos se, em nome destes princípios, se não está a partir bem na medida em que se recusa mas muitas vezes acabando por findar mal na medida em que se propõe?
Servir o real não é rejeitar totalmente as aportações inegáveis do racionalismo e a ascese real que ele significa para a arquitectura; é tomar uma posição corajosa de busca: inquietante no aceitar que cada tema tem o seu carácter, a sua problemática específica, a sua expressão própria; é considerar o homem na sua totalidade humana. Posição difícil, sem dúvida, mesmo terrível na exigência constante de humildade que implica, como na liberdade interior que pressupõe. E é muito difícil escapar à tentação do absoluto. Ele tanto se pode encontrar na recusa total de um passado em nome de aspirações abstractamente formuladas a partir de um real abstractamente compreendido, como na aceitação total desse passado pela aceitação incondicionada de um presente dado.
Que a primeira situação aconteceu podemos admiti-lo.
Hoje, com um pouco de lucidez, não será oportuno interrogarmo-nos sobre se, no campo da proposta, não se preparou em nome dessa recusa, por incapacidade de aceitar a situação do que se criou, uma dupla traição? Fala-se em integrar o homem num real, talvez apenas definido a partir do passado pela impotência de se lhe juntar uma perspectiva de homem futuro, que hoje não se pode conceber de uma maneira simplista.
Se se quer integrar é preciso saber o que se quer integrar; é preciso saber em quê, o quê, e para quê se vai integrar. É preciso pois antes de mais assentar numa tradição que terá de estar necessariamente inventariada e estudada, sob pena de se tornar a cair no vácuo do voluntarismo idealista; é preciso ainda saber, mas saber de facto, séria e profundamente, para quem se constroem casas e não as realizar para destinatários que se supõem ser transmontanos ou beirões sem que saibamos realmente o que seja isso de ser transmontano e beirão; é, finalmente e sobretudo, saber para que é que se integra: é que o homem não é apenas um ser situado; ainda e mais que tudo, [o homem é] um ser em projecto, um ser empenhado. Daí o requerer-se para uma arquitectura válida uma concepção do mundo que necessariamente a terá de explicar e justificar: outrossim retomaremos necessariamente um critério de realidade contra um critério de experiência (pois que o real nos surgirá de novo como estático, como realidade: a realidade transmontana, a realidade beiroa), um abstracto idealista contra um humanismo concreto. Com um vício de suplementar de que não informava o racionalismo; a inconsequência e a confusão.
Ao arquitecto de hoje só um “critério de experiência” é lícito; um critério que não recuse dado algum do real — que, esse sim, existe, mas só como matéria para ensaios, procuras mais ao menos orientadas e nunca para soluções apriorísticas e necessariamente abstractas — e busque servi-lo e orientá-lo, humildemente mas com a certeza não se ter enganado no trajecto.
III
Como todo o projecto também este teve os seus personagens: um técnico, um cliente e um terreno.
Parti para a execução deste projecto com todo um repositório de ténues desejos de ensaiar num determinado sentido, repositório adquirido na actividade escolar que, como exercício, me esforcei por viver. Parti também com a condicionante de o executar em mês e meio. Sei hoje, como então pressenti, que esse tempo era, e foi, menos que insuficiente: só me permitiu, e à custa duma vivência total do trabalho, elaborar, burilando, o que em mim havia já de intuído no sentido da directriz que me seduzia mais ou menos inconscientemente. Foi-me negado portanto o tempo necessário para reflectir recusando o elaborado, e fui forçado em última análise a aceitá-lo como experiência a realizar. Foi-me negado o tempo para, pelo menos, sofrer as dúvidas e incertezas de valer a pena ou não colocá-lo no campo da experiência objectiva e material.
Tive uma percepção de “fragilidade” no sentido em que os planos verticais eram meramente encastrados em todos os elementos horizontais; aceitei uma certa exuberância, admitindo a não viabilidade de um silêncio humilde por um cliente “exuberante” e uma urbanização “curiosa”.
Vivida hoje a obra admito ser evidente nela um sentido neoplástico patente nas plantas e cifrado num jogo de planos mais ou menos livres tendente à negação do volume pela sua redução a uma bidimensionalidade; mas, porque volumetricamente recusei um consequente encastramento, preferindo jogar com planos justapostos, indo buscar todo o sentido de volume às varandas e coberturas, notavelmente reforçadas, e em última instância negando à cobertura a possibilidade de se apresentar como um elemento capaz de imprimir uma maior realidade construtiva e um sentido de finitude, porquanto não permiti que nela se encastrassem os elementos verticais significativos, creio que nesta divergência ou na ausência de uma real proposta que substituísse as recusas aceites, reside a razão de ser da “fragilidade” antes referida. Notarei também que todo esse compromisso, no seu jogo de planos livres, permitindo uma divisão “que não criação” de espaço, me obrigava a uma consequente fluidez na transição espacial externo-interno para a qual eu não tinha um mínimo de dimensão no espaço externo. Quando na fase de projecto, tive já disto a percepção, ao tentar materializar os panos de vidro recorrendo a uma malha apertada de caixilharia.
Enumerarei as condicionantes específicas do problema principiando e acabando por um cliente engenheiro civil com uma atitude magnífica para com a arquitectura e os arquitectos, mas apenas exterior, resultante de contactos profissionais. Atitude que contudo não o fez ascender à qualidade de cliente capaz de estabelecer relações com o arquitecto de forma a permitir-lhe uma tentativa de proposta de conteúdo humano apta a um mínimo de poética.
Ofereceu-me sim o desejo de uma vivenda “abstracta”, isto é, uma vivenda que só é vivenda por estar em S. João do Estoril, numa migalha de terreno: tem um salão de festas para a mundanidade da sua existência; uma grande arrecadação para os móveis do estilo que a Esposa gosta — embora ele seja um admirador conspícuo da arquitectura japonesa — um apartamento para um guarda prevendo a hipótese de viagens civilizantes e outras para o estrangeiro; uma sala de 4,50 por 5 (medidas dadas) para uma mobília Renascença — onde só come quando as suas relações sociais a isso obrigam porquanto normalmente se refeiciona com a Esposa na copa; tem no 1º andar um arrumo “sem janelas” para 2 armários já existentes e também um escritório que está lá para ser quarto numa futura transacção comercial já prevista (se for suficientemente lucrativa).
Foi também o construtor da obra mantendo nela em perpétuo estado de embriaguez um encarregado com o qual pouco nos entendíamos. Fez alterações várias ao projecto, não só por saudável espírito de economia, mas também por (sic) pretender passear nu em casa (Vidé vãos do alçado norte), e alterou o escritório porquanto a Esposa o obrigou a encerrar com uma porta os livros que possui. É esta a história do trabalho. Só me fica agora por dizer das saudades e do reconhecimento que levo ao partir desta Escola.
Lisboa, 30 de Maio de 1959.