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Joana Vilhena

arquiteta | Da/Ual

 

Para citação: VILHENA, Joana; Pesquisa em projeto ou projeto em pesquisa? O espaço e o tempo na construção de um projeto. Estudo Prévio 8. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2015. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]

Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

Resumo

Este artigo fala sobre programas de arquitetura que questionam lugares instigados pela investigação em projeto. O objetivo consiste em pensar os processos projetuais subjacentes à prática do arquiteto onde esta se associa à investigação, procurando evidenciar a sua contribuição para a problematização e para a formulação de novas hipóteses de trabalho. O reconhecimento desta importância estabelece uma relação dialética entre investigação teórica e prática, entre tempo e espaço, a qual é potenciada pelo facto de ambas se inscreverem no mesmo campo disciplinar. Este processo projetual, ao implicar a aliança entre investigação e projeto, promove novas abordagens, novas experiências, adicionando um corpo de conhecimento inerente ao ato de projetar.

Palavras-Chave: pesquisa, projeto, espaço, tempo, investigação, processo, prática.

 

Introdução

A estrutura deste artigo orienta os conteúdos para a problemática da pesquisa e análise na prática projetual em arquitetura, onde o espaço de experimentação incentiva ao investimento no tempo de investigação. O binómio espaço / tempo cria um campo de trabalho onde as vertentes prática e teórica se tornam dependentes e aliadas no ato de projetar, estabelecendo o projeto de arquitetura simultaneamente como agente e objeto de pesquisa.

Na pesquisa em projeto – Research by Design – o processo de elaboração da intervenção projetual estabelece um percurso através do qual novas ideias, conhecimentos e práticas passam a existir quando esse percurso se estabelece a par com a pesquisa. “It’s most important aim was to elucidate, develop and operationalize design research as a method os scientific research at the Faculty. Both the practice and theory of design fields are in constant flux an teaching and research must reflect their dynamics.” (VAN OUWERKERK, 2001)

A pesquisa constitui-se como parte essencial no processo de investigação; como base na recolha de informação, observação, experimentação e formulação, e a conceção de um projeto testaria as hipóteses.

A proposta de intervenção de projeto representa a fase inicial de uma investigação. Essa investigação pode diferenciar-se quando passa de um estudo necessário para estabelecer os dados de projeto para um estudo que não só elabora os conceitos que sustentam um projeto como lhe confere um maior valor no seu desenvolvimento. Assim se opera a relação entre espaço e tempo, entre campo prático e campo científico.

São campos de pesquisa comuns no sentido em que o exercício teórico e prático em projeto procura abordar novas problematizações. Esta abordagem permite uma dimensão crítica, aliando a prática da execução à prática da investigação, resultando no processo de elaboração do projeto: o binómio espaço / tempo. Ambos incitam a experimentação necessária à arquitetura e despertam a pesquisa em projeto ou o projeto em pesquisa. Ambos contêm tema, problema, objetivo, hipótese, fundamentação, metodologia e referências.

O espaço para a prática projetual, aliado ao tempo de investigação, encontra diferentes dinâmicas quando referimos um conjunto de pensamentos disciplinares que se relacionam e desenvolvem temas comuns a um mesmo universo, à mesma disciplina.

As intervenções, textos e manifestos, relacionadas com o ato de reutilização ou apropriação, que desde meados do século XX se têm vindo a multiplicar, conferiram à disciplina da arquitetura uma nova visão crítica, visão essa que permitiu a experiência de utilização de novos espaços pensados para a transmissão de novas perceções daqueles conteúdos e que estabeleceu novas ações de apropriação que se traduzem na ocupação de novos espaços, materializadas em projetos de arquitetura, projetos artísticos, estudos monográficos e biográficos, na forma de projetar e na forma de pensar, e que contribuem para a leitura e entendimento de processos inerentes à prática de projeto. Essa visão crítica comporta novas dinâmicas que anunciam hipóteses de projetos menos convencionais, ou mais informais, onde o tema da revitalização dos lugares se associa a novos programas. Exemplo disso é o livro que reúne os nove catálogos das nove exposições Rehabitar organizada pelo grupo de investigação Habitar: “Rehabitar representa, sobre todo, la voluntad de volver a utilizar, de dar un nuevo uso; implica la curiosidad de probar otros usos en un edificio. Pensar cómo podría usarse de outro modo. Representa una valoración de la novedad al margen da la forma. No se trata de un nuevo objeto, no es una novedad más; la novedad radica en la forma de usarlo.” (MONTEYS, 2012)

Olhando para os lugares – lugares de ação / lugares de investigação – na tentativa de perceber o seu potencial, o seu valor inerente – passado, presente, desabitado, vazio, história, memória – questionam-se as possibilidades de estudo e de ação, possibilidades essas que enunciam programas, conceitos e lugares, criando novos territórios.

 

A possibilidade programática dos espaços

A capacidade de avaliar o potencial dos espaços produz a possibilidade programática dos mesmos. Ou seja, a reflexão sobre a relação espacial, a vertente histórica, a organização do meio ambiente e os problemas na ocupação, entre outros, definem o conjunto dos recursos à disposição que capacitam e definem o campo de produção e ação: a intervenção.

A propósito da revitalização e da sua capacidade de transformar o olhar e a curiosidade como mote de novas intervenções, demonstrado na exposição Edifícios & Vestígios realizada no âmbito da Capital da Cultura Guimarães 2012: “É costume pensar as coisas ao contrário, encarar o fim como desfecho. A história ensinou-nos sempre a desconfiar do presente porque confia mais no passado. Mas o passado nada é sem um presente que lhe dê futuro.” (VAZ-PINHEIRO, 2013). Aqui é revelado um novo campo de pesquisa quando se cria um corpo teórico que sustenta uma ideia não convencional – mais baseada na informalidade – subjacente ao ato de projetar.

O projeto que se revela de seguida tem implícito um campo de pesquisa, que não se rege apenas pelo levantamento da informação necessária para a realização do projeto de arquitetura, mas mostra um método de trabalho onde a observação testa, ou experimenta, aquela hipótese de trabalho (projeto de arquitetura).

O projeto The High Line [1], em Nova Iorque, EUA, é um exemplo do que pode ser um espaço experimental: na afirmação da importância da estratégia projetual que fixa o conceito de reutilização, na pesquisa para a idealização do objeto e na realização de novas propostas programáticas. Este exemplo é um modelo de reinvenção de uma estrutura de caminho-de-ferro, elevada, existente no centro da cidade. O seu primeiro destino era a demolição, que acabou por não acontecer, por força de ter sido um espaço reclamado pela comunidade para uso público. Esta exigência resultou então na transformação daquela estrutura industrial (revelando o seu interesse patrimonial).

O projeto The High Line propõe pensar a prática projetual para além do campo de ação definido pela arquitetura, associando teoria e prática relacionadas com situações, movimentos, objetos, ambientes e pessoas: um cruzamento de elementos que traduz uma mudança de pensamento, entendendo a intervenção arquitetónica como um sistema. Este é um projeto que explora o potencial do lugar e torna essa pesquisa visível e presente na sua elaboração.

 

Figura 1- High Line, Nova Iorque, EUA

 

The High Linetem início com uma encomenda realizada pela associação Friends of High Line [2], fundada pelos moradores Joshua David e Robert Hammond, em 1999, para a preservação e reutilização daquele vestígio industrial, reivindicando a sua reconversão para uso da comunidade. Em 2002 é iniciado um processo de concurso para escolher a equipa projetista, tendo sido finalizado em 2004, ano em que são publicados os resultados e é encontrada a equipa vencedora [3].

O projecto idealiza a criação de um jardim suspenso sobre a linha férrea, inspirado na apropriação daquela estrutura pelas ervas indisciplinadas durante o tempo em que esteve desativada. Ele traduz a biodiversidade que ali se enraizou, propiciada pela condição de estado de abandono e pela sucessão de microclimas urbanos específicos ao longo da linha férrea: solarengo, sombrio, húmido, ventoso, mais ou menos abrigado, etc. Essa biodiversidade coexiste com o novo projeto de paisagismo e com a estratégia de plantação do novo jardim. Os pavimentos (pranchas de betão e madeira) são pensados e organizados de forma a permitirem que estes e as plantas pertençam ao mesmo sistema orgânico – onde os pavimentos, através das juntas, permitem que a vegetação os atravesse e lhes pertença, incentivando o crescimento emergente, cujas plantações naturalizadas crescem nos carris.

Os pontos de acesso – desde a cota de pavimento de rua até à superfície elevada do jardim suspenso – iniciam a experiência de prolongamento do tempo; ou seja, a prática de transição do ritmo intenso da cidade (a nível baixo) para o ritmo lento do jardim (a nível alto).

A repercussão que este projeto teve a nível nacional pode ser entendida através das ações que decorreram de situações semelhantes: a preservação do Património Industrial aliada a novos programas de reutilização para uso público das comunidades. É um projeto que resgata o potencial do lugar convertendo-o num ícone da cidade.

A repercussão deste projeto pode aludir à Nova Iorque dos anos 1960, onde o fenómeno de contracultura [4] reflete o descontentamento, no mundo artístico, com os principais museus e galerias pela falta de diversidade, ao ignorar as questões sociais, políticas e culturais da década. Em resposta, alguns artistas criaram / ocuparam novos espaços desafiando os espaços instituídos para exibição de arte (AULT, 1996). High Line, pode ser comparado ao fenómeno de contracultura, quando a cidade de Nova Iorque – tendo como motor não os artistas mas a comunidade local, reunindo um grupo diversificado de artistas, arquitetos, sociólogos, entre outros – se reposiciona no centro da discussão sobre revitalização patrimonial optando por recuperar aquela estrutura industrial, objeto que explora o conceito de reabilitação, dando-lhe um contexto histórico, político e social mais amplo.

O efeito High Line tem implícita a prática da reflexão e da investigação. O novo programa para novos utilizadores revela a importância de reestruturação dos lugares vazios e de repensar estratégias de projeto, abrindo e potenciando a investigação e o debate para a questão do lugar, do programa e de como se fixam programas nos lugares.

“Mayor Michael R. Bloomberg and Friends of the High Line (FHL) Co-Founders Robert Hammond and Joshua David today hosted a unique groundbreaking ceremony on top of the High Line elevated rail structure, heralding the start of construction of the first phase of New York City’s eagerly anticipated park. To mark the occasion, the City’s contractors lifted one of the few remaining railroad tracks in the first section of the 1.5-mile-long High Line to be converted to park use. This first section of the park will run from Gansevoort Street to West 20th Street, and is projected to open in Spring 2008. During the ceremony, the Mayor also announced a $5 million gift to the High Line project from the Diller – von Furstenberg Family Foundation; the gift marks the start of a major fundraising effort by Friends of the High Line (FHL), in cooperation with the City of New York, to attract private funds to the construction of the park and establish an endowment for future programming and operations.

“It’s a great day when we can begin construction on a new park that will serve New Yorkers for years to come,” said Mayor Bloomberg. “I’m especially pleased to see the Diller – von Furstenberg family’s leadership in bringing private support to this historic public project, which will turn an abandoned remnant of our past into a prized possession for future generations. The High Line serves as a powerful example of the extraordinary things that can be accomplished when New Yorkers work together to build something important for our future. When it’s complete, it will be a one-of-a-kind elevated open space uniting the Gansevoort Historic District, West Chelsea and the Hudson Yards, enhancing the value and the quality of living in these West Side neighborhoods, and creating a unique destination for New Yorkers and visitors to our City.” [5]

Compreende-se assim a importância da função e da sua execução nos lugares que se projetam com novos programas. Esta realidade só se tornou possível devido ao alargamento do respetivo conceito de revitalização, que permitiu a introdução de projetos de matriz mais informal (não traduzindo os formalismos associados à conservação histórica dos edifícios), como ato de preservação de um artefacto e assim mostrando a sua história e cultura.

High Linereferencia-se, assim, noutros objetos exploratórios que se representam no pensamento subjacente ao ato de projetar. A Fábrica da Cultura, SESC Pompeia [6] é um modelo representativo de como um ato de preservação pode iniciar um processo de investigação e originar um novo campo na prática da arquitetura. Sem a existência desta obra certamente não existiria High Line nem muitos outros projetos que lhe sucederam. Permite que se estabeleça um diálogo e uma sustentação do modelo que se verifica, através da sua existência, como modelo arquitetónico (BO BARDI, 2014).

O valor deste património não se justifica apenas pela condição de objeto nostálgico, contentor de acontecimentos passados e por isso associado a um requisito emocional. O seu valor é necessário à sociedade contemporânea, por revelar nas suas memórias os acontecimentos que contam a sua/nossa história e a perpetuam. O valor tecnológico do património industrial abrange o campo da investigação tanto nos processos de produção como nos processos construtivos, e é a causa de vinculação territorial que estas estruturas exercem na paisagem. São estes objetos com novos programas que geram novos territórios.

 

Novos programas,  novos territórios

Pelas suas potencialidades intrínsecas, o património industrial abarca uma infinidade de novos usos e novos programas. Para além dos programas mais convencionais, de musealização dos conteúdos encontrados nestas estruturas, o ato de reutilizar projeta nestes espaços funções programáticas mais relacionadas com as culturas urbanas – isto pela razão direta função/apropriação. Estes espaços – novos espaços – revelam a diversidade intrínseca à mestiçagem criativa, permitida pelas aptidões dos espaços industriais – volumetria, escala e robustez – possibilitando a concretização de projetos culturais variados. Contrariamente aos programas museológicos convencionais, estas apropriações que criam novos espaços concretizam, simultaneamente à ocupação funcional, uma dinâmica que estabelece um ponto de encontro entre a nostalgia que estes lugares transportam e a revelação das memórias transmitidas na reutilização, conferindo-lhe uma identidade única (DAVIDSON, 1995).

No final do século XX, um grande número de estruturas de referência – ocupação militar, comercial ou industrial – foram abandonadas ficando vazias, em desuso. Não estando agora limitadas a um uso ou conteúdo específico, estas estruturas “disponíveis” poderiam ser adaptadas para abrigar outros programas. A natureza modular dos edifícios, que lhes permitiu ser transformada e utilizada para a experimentação, criação artística e a mistura de habitantes permitiu também a instalação de programas culturais. A grande variedade de usos mostram que a arquitetura tem um papel importante a desempenhar na vida urbana (BORAGE, 2002).

O exemplo do matadouro de Testaccio, em Roma, Itália, na época de 1980 – modelo de apropriação informal sem qualquer regra no que diz respeito à ocupação programática – demonstra o que de extraordinário pode advir deste tipo de ações, onde da necessidade se fez o lugar.

Depois do seu encerramento, em 1975, o matadouro recebe inúmeras e variadas ocupações, temporárias. Essas ocupações demonstraram uma vitalidade que transformou este objeto num polo gerador de oportunidades. Desde 1992 até hoje, vários programas de índole cultural e social se têm instalado no antigo matadouro, hoje conhecido como Ex mattatoio [7].

Esta estrutura, objeto singular de um plano de reconversão daquele bairro operário com o objetivo de reativar a estrutura industrial através da indústria cultural, foi o motor do processo de gentrificação da zona. Hoje, esta já se reconhece na ocupação de novos habitantes, não só no Ex mattatoio mas também na preferência pelo bairro para habitar e trabalhar.

 

Figura 2 – Ex Mattatoio, nova ala da Facoltà di Architettura di Roma Tre, Roma, Itália

 

O antigo matadouro vai sendo parcialmente recuperado, albergando hoje o MACRO Future [8], sucursal do Museu de Arte Contemporânea de Roma, uma dependência do Departamento Facoltà di Architettura di Roma Tre, entre outros espaços culturais.

Este tipo de intervenção informal, que apresenta uma reutilização mais informada pela liberdade e pela conservação do património, é também uma intervenção sobre pensamento, estratégia e metodologia de projeto, revelando um processo onde a prática anda de par com a investigação. Elementos como a escala, proporção, qualidades construtivas e localização permitem que esta estrutura seja espaço de laboratório, de experimentação, funcionando como contributo, lido como um caso de estudo, essencial não só à prática arquitetónica como à investigação sobre o seu reconhecimento e repetição no modelo.

Revelando a mesma dimensão estratégica para a revitalização urbana, é importante também referir a obra do antigo Matadouro Municipal de Madrid, Espanha, o Matadero, Centro de Criação Contemporânea [9]. A estratégia desta intervenção é relevante não só na aposta informal de ocupação mas também no reconhecimento de uma intenção de revitalização que inclui a construção do aterro de parte da M30 (circular automóvel de Madrid). A forma encontrada para intervir neste objeto, conservando-o, favoreceu a vivência de uma urbanidade antes inexistente, propondo uma abertura dos edifícios ao rio, estabelecendo uma nova relação com o espaço urbano envolvente.

 

Figura 3 – Matadero, nave 16.3, Madrid, Espanha.

 

Ambas as propostas de ocupação não questionam somente programas de revitalização dos objetos – destes antigos matadouros – mas também programas que permitam uma ocupação capaz de gerar a transformação daqueles territórios através da revitalização desses objetos. Estes dois exemplos remetem-nos para um pensamento mais abrangente onde se incluem os constrangimentos do lugar. Trabalhar com os constrangimentos abre um campo de ação e de investigação, na compreensão da prática arquitetónica enquanto fenómeno cultural, onde os espaços abandonados podem dar lugar a espaços de oportunidades, conduzindo a novas e transformadas geografias.

 

Geografias transformadas

A relevância da informalidade na ocupação dos lugares enuncia pensamentos importantes, no exercício da arquitetura, na cultura contemporânea.

Lembrando o fenómeno contracultura, confrontando o modo de produção de modelos arquitetónicos que assentam na construção do vazio, são sobretudo os artistas que revelam entusiasmo por estes espaços, apropriando-se deles através da preservação e registo da memória, encontrando e definindo a noção de pertença. Esses espaços ao serem apropriados passam não só a definir um novo lugar – normalmente como lugar de encontro do mundo artístico – como também serve de inspiração para a realização de trabalhos e obras. O lugar serve de contentor e conteúdo.

A construção do vazio ou a ocupação dos espaços urbanos marginais, expectantes, na sua resistência a pressões políticas ou imobiliárias, entre outras, revela estratégias que sustentam a sua viabilidade. A construção destes vazios transporta, através das ações e programas de quem os ocupa, aquilo que sugere um espaço comunitário de todos e para todos, participando na transformação da cidade como um lugar público (SOLÁ-MORALES, 2002).

Um exemplo existente desde 1973 que corrobora a ideia acima descrita é o Liz Christy Garden [10].

“The Liz Christy Garden Community Garden belongs to everyone. Whether you visit once a week or once a year, the garden will be richer for your participation. There are lots of ways you can help the garden flourish: Tell your friends about the garden and encourage them to come by. Roll up your sleeves and join us as a Volunteer on Open days. If you own a business in the neighborhood, consider making a donation. Most of all, remember to stop by often and refresh your spirits.” [11]

 

Figura 4 – Liz Christy, Liz Christy Garden, Bowery and Houston Streets, Nova Iorque, EUA

 

Este Jardim começou com a ocupação de um lote abandonado na esquina do Bowery e Houston Streets, em Nova Iorque, sendo o primeiro jardim a utilizar a técnica “Green Guerrilla” [12]. A técnica permitia, através de lançamento de “bombas sementes” [13] que germinavam na terra onde caiam, que toda a comunidade que aderisse a este movimento usufruísse dos frutos obtidos. Liz Christy’s Garden, que pediu o nome de empréstimo à fundadora do movimento, foi legalizado pelo Município de Nova Iorque em 1985, sendo hoje administrado pela “Green guerrilla”, associação formada na comunidade.

Este é talvez um exemplo extremo do que pode ser a liberdade de ocupar um lugar. Mostrando que através da persistência de atos pouco comuns – como atirar sementes através de um gradeamento, para mais tarde mostrar e colher os proveitos que aquele lugar pode produzir – se pode tornar de todos um lugar de impasse e vazio na espera (futura), um bem partilhado por todos.

Atualmente, em Berlim, existe um mercado de venda de produtos exclusivamente provenientes de hortas informais que ocupam espaços alternativos Green garden. Este é um dos exemplos que transmite a disseminação deste fenómeno que se vai afirmando cada vez mais como movimento alternativo, comunitário e de partilha, na revitalização de lugares através da sua ocupação.

O fenómeno de Guerrilla apresenta diversas ferramentas que permitem, de acordo com a realidade encontrada, ir ao encontro das intenções das propostas. É uma estratégia que utiliza meios de propaganda e parasitários (no sentido em que se apropria de um lugar durante um tempo) com o objetivo de alcançar resultados numa estratégia de reivindicação, também utilizada quando se fala de reutilização de espaços, lugares, territórios, etc. Esta estratégia existe para reclamar os lugares que fazem parte das identidades e das comunidades (LEVINSON, 2010).

Os espaços marginais, em estado transitório, expectantes, contêm neles caraterísticas que permitem determinar elos de ligação e de continuidade entre os vários tempos de transformação, criando novas geografias, geografias transformadas. Aqui, o termo geografia transformada pretende enunciar e demonstrar mudanças na criação de novos lugares, não só físicos mas também de encontro e de passagem de conhecimento. Novos lugares com novos habitantes, que promovem as mudanças culturais, capazes de difundir novos valores humanos, sociais, políticos, económicos, ambientais e artísticos. Capazes de definir novos percursos no âmbito da prática da arquitetura.

Em 1980 é publicado o resultado do projeto Street Life realizado por William H. Whyte. O projeto estuda do comportamento humano em ambiente urbano em espaços públicos, na cidade de Nova Iorque. Através deste projeto permitiu-se entender as realidades e dinâmicas do comportamento dos habitantes pedestres e marcar a diferença no planeamento da cidade relativamente à existência e ocupação de espaços públicos (WHYTE, 2001). Desde a publicação do projeto Street Life que se fala sobre a importância de incluir a sociologia, o ambiente e a arquitetura em estudos de planeamento urbano.

Na passagem para o século XXI, a intervenção dos arquitetos – inspirados por obras de referência, algumas acima enunciadas, cuja abordagem conceptual não se limita meramente ao desenho mas inclui uma consciência cívica e uma reflexão ao longo do processo de transformação – passa a ser motivada pela valorização e manutenção do território, dos lugares.

 

Conclusão

O projeto deve instruir uma componente de investigação sobre a apropriação dos lugares e sobre os programas conceptuais subjacentes ao ato de projetar. Com esta ideia não se espera, em relação aos arquitetos, a falta de consciência e preparação histórica, crítica e social, ou que não questionem os conteúdos programáticos associados à encomenda, mas sim que cooperem, numa abordagem conceptual e teórica, aliada a um empirismo intuitivo (na observação de estudos de caso) associado ao ato de projetar, como contributo à investigação em projeto.

Tal como observado nos estudos de caso, o empirismo serviu de guia seguro no sucesso que relevaram esses projetos, estudos, obras, pesquisas, para o campo da experimentação, onde a prática do arquiteto alarga o seu campo de ação e conhecimento permitindo a abertura da execução do projeto a um campo exploratório: laboratório.

Os processos das práticas projetuais declaram conceitos associados a ideias e a sínteses. Conceitos que, por vezes, têm a capacidade de proliferar e de se globalizarem como ideias que criam transformações no território. E as ideias que transformam são ideias que experimentam.

A viragem para o século XXI fica marcada por dois fenómenos que, embora aparentemente antagónicos, têm em comum o facto de ambos terem sido moldados no campo da experimentação e de se terem disseminado: o “efeito Bilbao” [14], e o “efeito High Line” [15]. São projetos de pesquisa que se transformaram em casos de estudo.

Perceber o lugar para depois o converter é ter consciência do que ele foi, do que ele é e do que poderá vir a ser, bem como do poder  transformador de um projeto de arquitetura.

Desenvolver uma abordagem teórica e entender os enunciados de projeto permitem ao arquiteto a liberdade e diversidade das intervenções nos lugares, assim como a perceção de constrangimentos inerentes. Ou seja, permitem que a forma de olhar determine as potencialidades e os constrangimentos. Permitem que a forma de questionar – ou a pergunta – estabeleça os programas.

A pertinência do desenvolvimento continuado da investigação no ato de projetar prende-se com a necessidade de indagação sobre a relação entre pensamento e ação. Esse desenvolvimento deve refletir-se na prática da arquitetura, na realização de projetos ou em hipóteses projetuais, para que o ensaio de modelos se materialize em experiências.

Os exemplos aqui enunciados em estudos de caso formulam modelos que concretizam hipóteses projetuais;, práticas e teóricas. São modelos experimentais por serem pioneiros na demonstração do modelo e por esse modelo informar o pensamento do arquiteto.

Um projeto de arquitetura pode ser considerado como um conjunto de processos que representa a formulação de enunciados. Projetar é organizar o espaço segundo um conjunto de princípios de natureza teórica onde a proposta projetual constitui a passagem de ideias para intenções. Representa a organização de um conhecimento.

A importância da pesquisa em projeto reside na experimentação de conceitos que se revelem modelos de investigação que foquem o ato de repensar, revelando processos de projeto que procurem demonstrar como a associação entre programas e lugares é fundamental na reativação e valorização de territórios.

Para além dos casos onde estruturas existentes representam um valor inquestionável, existem aqueles cuja valorização subsiste aliada à sustentabilidade económica. Este fator é fundamental para a estratégia de intervenção e preservação. Nos vários estudos de caso apresentados, as intervenções acontecem em estruturas, numa primeira análise não qualificadas, mas cuja requalificação funcional, espacial e programática desenvolveu a importância para o sucesso das mesmas, onde os lugares desenvolvem a qualidade e a capacidade que acompanham o desejos de uma sociedade, em constante mudança e cada vez mais exigente.

Estas intervenções – estudos de caso – devem constituir-se como modelos, na medida em que traduzem soluções cuja transformação origina espaços qualificados e reutilizados pelas sociedades contemporâneas, os seus novos utilizadores. É importante fazer emergir novos conceitos de intervenção para que as respostas possam corresponder aos constrangimentos do tempo presente.

No ato de projetar deve existir uma relação entre a academia e a profissão, a teoria e a prática. Essa conexão pode revelar-se fundamental para a arquitetura numa experiência coletiva, no campo de trabalho disciplinar.

 

Notas

[1] Parque público, inaugurado em 2009 (primeira fase) e 2011 (segunda fase), estando prevista a abertura da terceira e última fase para 2015, que converte uma antiga linha de comboio de cargas abandonada, sob ameaça de demolição. Fica situado em Meatpacking District, em Manhattan, Nova Iorque, e ocupa uma parte da antiga linha ferroviária High line, propriedade da CSX Transportation. A construção original remonta a 1934, como infraestrutura de tráfego de mercadorias, tendo sido desativada em 1980.

 

[2] A associação “Friends of High Line” é fundada por Joshua David e Robert Hammond, moradores em Meatpacking District, para defender a preservação da linha férrea High Line e a sua reutilização como espaço público. Fonte: (2015.09.11)

 

[3] Projeto realizado por James Corner, arquitetura paisagista / Diller Scofidio + Renfro, arquitetura / Piet Oudolf, conceito de plantação.

 

[4] Alternative Space Movement foi o nome dado ao movimento que começou por ocupar espaços alternativos para exibição pública de obras de arte, entre finais de 1960 e início dos anos 1970. Desde então a apropriação de espaços vazios incorpora o vocabulário ou o léxico dos artistas e dos arquitetos como forma de atuação. Fonte: (2015.09.18)

 

[5] Transcrição de um fragmento do discurso do Mayor Bloomberg na cerimónia de início de Obra do projeto High Line a 10 de abril de 2006, disponível em 2015.09.26 http://www.nyc.gov/portal/site/nycgov/menuitem.c0935b9a57bb4ef3daf2f1c701c789a0/index.jsp?pageID=mayor_press_release&catID=1194&doc_name=http%3A%2F%2Fwww.nyc.gov%2Fhtml%2Fom%2Fhtml%2F2006a%2Fpr108-06.html&cc=unused1978&rc=1194&ndi=1

 

[6] O SESC (Serviço Social do Comércio) Pompeia é um Centro Cultural – “Fábrica da Cultura”, localizado em São Paulo, Brasil, construído em 1977, com um projecto da arquitecta Lina Bo Bardi. O seu programa de requalificação – actualmente existem teatros, campos desportivos, piscina, restaurantes, salas de exposições – previu a reutilização de todo o espaço do antigo conjunto fabril: Fábrica de tambores, construída em 1938 pela empresa alemã Mauser & Cia Lda., para o que é hoje um espaço de programação cultural, desportiva e lúdica aberto à comunidade.

 

[7] Projeto realizado por Luciano Cupelloni, 2002-2007.

 

[8] O projeto do Museu de Arte Contemporânea de Roma teve início no final de 1990 sobre o local de antigas fábricas Peroni. Após uma fase inicial que permitiu abrir seis salas em 1999, o museu inaugurou em 2002. A sucursal MACRO Future, existente desde 2003 no Ex mattatoio ocupa dois apartamentos com área equivalente a 1000m2, no bairro de Testaccio. Fonte: (2015.09.22)

 

[9] O edifício original de 1910, projetado pelo arquitecto Luis Bellido, é atualmente Centro de Criação Contemporânea. A intervenção iniciada em 2005 e finalizada (parte) em 2012, prevê não só a intervenção de vários arquitetos, cumprindo um faseamento de obra e alternando a equipa de arquitetura consoante as intervenções, como também várias valências programáticas e culturais. A estrutura e as fachadas exteriores foram preservadas, como memória simbólica do edifício. A manutenção da estrutura serviu de motor à ideia inicial da intervenção, de se concretizar como uma instalação leve, onde se assume o esqueleto e o casco existente.

 

[10] Liz Christy foi a fundadora do grupo Urban Community Garden Green Guerillas, a primeira diretora de Council on the Environment of New York City’s Open Space Greening Program e a primeira vencedora do prémio American Forestry Association’s Urban Forestry.

 

[11] Liz Christy Community Garden. Acessível em. (2015.09.18)

 

[12] O termo guerrilla aparece ligado ao ambientalismo nos anos 1970, utilizado por Liz Christy, que organizou o primeiro grupo de Green Guerrilla. Desde então a conceção de horta urbana como objeto intencional na discussão dos vazios urbanos foi somando apoiantes, não só como movimento artístico [Liz Christy] mas como movimento político e comunitário. O movimento global com o mesmo nome deu o salto a partir dos anos 1980, com a receita de “bomba semente” (seed bomb) divulgada por Richard Reynolds, tendo proporcionado este tipo de ocupação, associado às comunidades locais, por todo o mundo.

 

[13] Receita de bomba semente. Ingredientes: argila, composto orgânico e sementes (à escolha). Preparação: para cada cinco partes de argila mistura-se uma de composto orgânico e uma de sementes; misturar todos os ingredientes adicionando água até a mistura ficar homogénea. Apertar bem a mistura, moldar em pequenas bolas e deixar secar ao sol, durante algumas horas, até a argila ficar dura.

 

[14] Com o sucesso do Museu Guggenheim, em Bilbao, Espanha, projecto do arquitecto Frank Gehry, em 1997, em que uma área decadente de uma cidade em declínio económico trouxe enorme crescimento financeiro e prestígio, começou-se a falar sobre o  “efeito Bilbao”. A construção de um novo edifício como um símbolo foi pensado para fazer a diferença na produção de um marco para a cidade. Foi este marco, edifício de vanguarda que veio permitir a reabilitação urbana, servindo de exemplo a muitos outros que lhe seguiram no final dos anos 1990. É um dos melhores exemplos a que nos podemos referir quando falamos de turismo cultural, numa estratégia de renovação urbana.

 

[15] O sucesso do parque público, em Manhattan, Nova Iorque que ocupa uma parte da antiga linha ferroviária High Line, cuja não demolição foi reivindicada pela comunidade exigindo aquele espaço como espaço público, teve ecos em muitas zonas em todo o mundo, servindo de modelo inicial cuja matriz se repete em muitos outros projetos com os mesmos pressupostos.

 

Bibliografia

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BO BARDI, Lina – Obra construída. 1ª ed. Barcelona: Gustavo Gili, 2014. ISBN 978-85-65985-47-5

BORAGE, Fazette – The Factories: Conversions for Urban Culture, TransEuropeHalles. 1ª ed. Basileia: Brikhauser, 2002. ISBN 9783764366353

DAVIDSON, Cynthia – Anyplace. 1ª ed. Cambridge: MIT Press, 1995. ISBN 0262540789

LEVINSON, Jay – Guerrilla Marketing. 1ª ed. Nova Iorque: Entrepreneur Press. 2010. ISBN 978-1599183749

MONTEYS, Xavier – Rehabitar en nueve episodios. 1ª ed. Barcelona: Lampreave, 2012. ISBN 978-84-616-0054-0. p.42

SOLÀ-MORALES, Ignasi (1995)- Territórios. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2002. ISBN 8425218640

VAN OUWERKERK, Marieke; ROSEMANN, Jurgen – Research by Design: International Conference Faculty of Architecture Delf University of Technology in co-operation with the EAAE/AEEA. Delft: Delft University Press, 2001. ISBN 9040722137

VAZ-PINHEIRO, Gabriela – Começar por um futuro. O destino dos lugares. In MOREIRA, Inês – Edifícios e Vestígios: Projeto-ensaio sobre espaços pós-industriais. 1ª ed.Lisboa: Imprensa nacional Casa da Moeda, 2013. ISBN 978-972-27-2207-0. p.12.

WHYTE, William H. (1980) – The Social Life of Small Urban Spaces. New York: Project for Public Spaces, 2001. ISBN 978-0970632418

 

Bibliografia – Consulta documentos eletrónicos

DILLER SCOFIDIO + RENFRO (2015.09.15). http://www.dsrny.com/#/projects/high-line-three

FRIENDS OF HIGH LINE (2015.09.15). http://www.thehighline.org/visit

LIZ CHRISTY COMMUNITY GARDEN (2015.09.01). http://www.lizchristygarden.us

WALLACE, Ian (2014, May) – 10 Alternative Spaces That Transformed American Art. Artspace, art 101. (2015.09.18). http://www.artspace.com/magazine/art_101/history_us_alternative_spaces

 

Índice de imagens

Figura 1- High Line, Nova Iorque, EUA. Disponível: http://www.thehighline.org/about

Figura 2 – Ex Mattatoio, nova ala da Facoltà di Architettura di Roma Tre, Roma, Itália. Disponível: http://www.artribune.com/2013/06/il-punto-sullex-mattatoio-di-testaccio-un-futuro-tutto-da-inventare-la-sintesi-del-convegno-di-insula-e-roma-tre/

Figura 3 – Matadero, nave 16.3, Madrid, Espanha. Disponível: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Nave_16.3_Matadero_Madrid_(6).jpg

Figura 4 – Liz Christy, Liz Christy Garden, Bowery and Houston Streets, Nova Iorque, EUA. Disponível: http://placemaking.pps.org/great_public_spaces/one?public_place_id=45#

 

Nota: artigo desenvolvido no âmbito da tese de doutoramento Research by Design com o tema “Repensar = Reutilizar: O abandono como oportunidade. Fábrica Robinson: O instante na

 

Joana Vilhena. arquiteta

Licenciou-se em Arquitetura pela Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Lisboa em 1998. Em 1999 fundou o escritório Ricardo Carvalho + Joana Vilhena Arquitectos.

Entre 2005 e 2008 foi editora de projecto do JA – Jornal Arquitetos. Em 2015 doutorou-se em Arquitetura pela Universidade de Évora. Atualmente é docente no Departamento de Arquitetura da Universidade Autónoma de Lisboa.

O trabalho de Ricardo Carvalho + Joana Vilhena Arquitectos foi apresentado em diversas conferências na Europa, América do Sul e Estados Unidos da América. Em Junho de 2009 integraram a exposição “OVELAPPINGS: Six Portuguese Architecture Studios” no Royal Institute of British Architects em Londres. Em Junho de 2011 integraram a exposição “Portugal com Vinda” no FAD em Barcelona. Em Setembro de 2011 integraram a exposição “Tradition is Innovation” na galeria Ozone em Tóquio. Esta exposição esteve patente em 2011 na Bienal de Arquitetura de S. Paulo, e em 2012 na Ordem dos Arquitetos em Lisboa. Em Agosto de 2012 integraram a exposição “Lisbon Ground”, Representação Oficial Portuguesa na 13ª Bienal de Arquitectura de Veneza. Em 2015 foram nomeados para o Prémio Mies van der Rohe.