José Manuel Fernandes
Nasceu em Lisboa, Portugal, em 1953. Arquiteto licenciado pela Escola de Belas Artes de Lisboa em 1977. Professor, Doutorado (1993) e Catedrático (2010) em História da Arquitetura e do Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa. Membro do Conselho Editorial da revista Monumentos desde 1994 (32 ns. editados, e n.33 editado em plataforma digital, 10.2013). Conferencista convidado no Departamento de Arquitetura da Universidade Autónoma de Lisboa desde 2003, e seu Diretor no período 1998/2000. Diretor do Instituto de Arte Contemporânea do Ministério da Cultura de Portugal em 2001/2003. Investiga, escreve e publica regularmente sobre História da Arquitetura e do Urbanismo (publica artigos científicos desde 1978, e livros de investigação e divulgação desde 1989). Primeiro Presidente do DOCOMOMO Ibérico, como representante da Associação dos Arquitetos Portugueses, em 1993-97, conferencista e proponente nos Congressos DOCOMOMO Ibérico entre 1997 e 2013.
Resumo
A cultura urbana e arquitetónica de matriz portuguesa adquiriu ao longo da sua formação características próprias, originais em muitos aspetos – sendo uma delas o modo específico de apropriação do conceito de “praça”. Modo que rejeitou no essencial o seu papel central no processo, espaço e forma urbanas; que se interessou, ao invés, pelas inúmeras variantes “laterais” desse tema. Essa cultura lusa privilegiou a “rua” e os sistemas viários lineares em geral, sobre a “praça”, num quadro de perceção, de entendimento e de proposta cultural de espaços urbanos centrais como essencialmente de cariz intimista, orgânico, adaptativo, dinâmico e contemplativo.
Referem-se algumas oposições de conceitos, no processo geo-histórico da formação da cidade portuguesa, como: intimismo/extroversão, orgânico/geométrico, adaptativo/fundacional, dinâmico/estático e contemplativo/transformador. Aborda-se o tema das raízes geo-históricas de alguma idiossincrasia das urbes portuguesas. Aponta-se um individualismo de temperamento, uma atitude coletiva de reserva e introversão, que se traduz no modo e conceber e usar o espaço urbano. Exemplifica-se com o tema da dimensão vernácula como vocação, na urbe portuguesa: da nostalgia pelo rural e do valor do quintal e do terreiro/largo, “contra” o pátio e à praça.
Menciona-se ainda o tema da “praça como espaço incompleto”, ou incompreendido, em Portugal: a praça tende a ser incompleta, irregular, não simétrica, enfim, numa frase, tendente à sua diluição na fluidez espacial urbana, em vez de com autonomia conceptual própria. Exemplifica-se com o tema, da “síndrome das arcadas falhadas” – isto é, a inexistência, por regra, na urbe portuguesa, da praça com arcadas (pórticos, galerias) a toda a volta.
Palavras-Chave: Praça, Cidade Portuguesa, Espaço Público
“Praça”, do latim platea – Lugar público, grande largo, geralmente rodeado de edifícios, para embelezamento de uma cidade, vila, etc, e como meio higiénico para melhor circulação do ar e plantação de árvores; rossio…” in Silva, António de Morais, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, 10ª. edição, Editorial Confluência, Lisboa, 1955, vol.VIII, pp.583-584
Premissas, enquadramento de um olhar
Este texto procura refletir sobre vários temas e pressupostos, a saber:
1 – Que a cultura urbana e arquitetónica de matriz portuguesa adquiriu ao longo da sua formação características próprias, originais em muitos aspetos – sendo uma delas o modo específico de apropriação do conceito de “praça”, tal como ele foi proposto e desenvolvido no quadro da cultura de base greco-romana e clássica, e depois por via da formação de uma cultura europeia.
2 – Que essa cultura de raiz lusa, sem deixar de propôr inúmeras e ricas soluções concretas de “praça”, rejeitou no essencial o seu papel central no processo, espaço e forma urbanas; que se interessou, ao invés, pelas inúmeras variantes “laterais” desse tema, como o “rossio” (componente de articulação rural-urbana), o “largo” (componente de relação com a “rua” alargada), o “terreiro” (componente mais informal), o “adro” (componente mais sacralizada) – entre outras, fazendo assim, no essencial da cidade portuguesa, praças periféricas, complementares, heterodoxas.
3 – Que essa cultura lusa privilegiou a “rua” e os sistemas viários lineares em geral, sobre a “praça”, num quadro de perceção, de entendimento e de proposta cultural de espaços urbanos centrais como essencialmente de cariz intimista, orgânico, adaptativo, dinâmico e contemplativo – portanto, neste quadro, essa cultura “da rua” construiu-se “contra” a ideia de espaços de expressão coletiva mais extrovertida (a dita praça), ou de teor mais geométrico (eventualmente conducente à dimensão monumentalizante e/ou autoritária), ou de sentido mais planeado e “vertical” (no sentido estático da definição de um eixo central, gerador), ou ainda de vocação mais transformadora, idealizada ou platónica.
É neste âmbito que o desenvolvimento teórico seguinte deve ser entendido, para que, compreendidas certas características e vocações mais profundas do ser coletivo, se possa atuar na intervenção e / ou conceção dos espaços atuais dentro da cultura da influência portuguesa, com pleno conhecimento das suas raízes, significados e potencialidades.
Evidentemente não se rejeita, em Portugal ou noutro qualquer território, a universalidade da experiência urbana enraizada no mundo ocidental, como ela foi propugnada no último milénio, que evidentemente inclui a “praça” – mas entende-se que essa dimensão plural e abarcante se torna mais certa, e melhor se aplica, se comtempladas todas as nuances das várias culturas internas e localizadas, desse mesmo mundo ocidental (euro-americano), em presença. Como é o caso da cultura urbano-arquitetónica portuguesa: do particular se permite atingir o universal, em suma.
Algumas oposições de conceitos, no processo geo-histórico da formação da cidade portuguesa
As oposições dialéticas – intimismo/extroversão, orgânico/geométrico, adaptativo/fundacional, dinâmico/estático e contemplativo/transformador – atrás enunciadas, podem ser entendidas numa análise e caracterização da cidade portuguesa ao longo da sua formação histórica, em que se foram inserindo os sucessivos aspetos focados.
Em primeiro lugar, e à medida que o território português se consolidava geográfica e historicamente, foi-se acentuado o caráter essencialmente de “Cidade de Paisagem” que a urbe dentro desta cultura euro-meridional ganhou; isto é, os seus principais espaços urbanos, então concebidos ou incrementados, procuraram sobretudo a proximidade de sítios com maior complexidade geo-morfológica, naturalmente propícios a uma elevada vocação estética, como os rios, os vales, as colinas e as encostas, na sua articulação com a frente litoral atlântica.
Nesses espaços, para além das necessidades funcionais e sócio-económicas, permitia-se assim valorizar sobremaneira a ideia de “fruição de um ambiente natural transformado”: ou seja, um pouco ao modo “grego” antigo, as urbes portuguesas tardo-medievas procuraram na sua implantação, desenho e expressão geral, valorizar cada lugar, mais do que impôr-se a este, “trabalhando” visual, espacial e formalmente, em articulação conjunta, todo os aspetos oferecidos pela natureza: relevos salientes, rampas, baixas, orlas, baías, etc.
Em segundo lugar, este modo de apropriação dos lugares foi sendo aperfeiçoado dentro de uma cultura que, historicamente inserida na Baixa Idade Média (séc. XII a XV, quando Portugal firmou as suas fronteiras ibéricas atuais, e começou a sua Expansão atlântica), assentava o seu entendimento do mundo em pressupostos da filosofia dominante no tempo medieval, ou seja, a filosofia aristotélica, de teor materialista. Esta, explicando o mundo de uma forma não interventiva, basicamente anti-idealizada e antitransformadora da realidade, aceitava a realidade de uma forma passiva: Deus tinha feito o mundo, ao Homem cabia aceitá-lo e compreeendê-lo o melhor possivel. Fruí-lo em contemplação, se quisermos; vivenciá-lo, acima de modificá-lo: “…o geral existe apenas no singular, sensorialmente percetível, e apenas se pode conhecer através do singular; é condição de todo o conhecimento geral, a generalização indutiva, que se não pode realizar sem a perceção pelos sentidos.” (in Dicionário Filosófico/vol.ABC, dir. M.M.Rosental e P.F.Iudin, Lisboa, 1972, p.56).
Este específico entendimento da matéria geo-física e territorial a ocupar pelas comunidades, nos sucessivos espaços de paisagem, coadunou-se de modo claro e equilibrado com a escolha de um certo tipo de sítios (ricos de matérias, formas e volumes naturais), potenciando o belo e a serena relação habitantes-paisagem, permitindo a ocupação desses lugares de modo discreto, integrado, procurando “desenhar” cada urbe a partir de uma génese de ocupação gradual, seguindo as linhas principais que se ofereciam ao ocupante e ao planeador. Podemos dizer que estes souberam utilizar pragmaticamente uma “geometria distorcida”, que se soube adequar e deixar moldar por cada acidente orográfico, por cada linha de água ou colina, numa visão, digamos realista (anti idealizada, não pretendendo “transformar”, senão no mínimo), do espaço. Uma visão “orgânica”, se quisermos, embora esta seja uma palavra armadilhada – pois “orgânico” inclui a compreensão e o desenho dos sítios, mas também o planear e o racionalizar dos espaços, apesar que de um modo mais integrado e menos rígido do que o utilizado nos planos pré-concebidos em padrão reticulado.
A construção das ruas, neste tipo de cidade, assumiu o seu expoente na “Rua Direita”, que designava o facto de o arruamento em causa, atravessando a urbe de um lado a outro (ligando eventualmente as portas das suas muralhas), articular “diretamente” o ponto 1 com o ponto 2 da mesma (ex.: rua Direita de Santa Catarina a São Bento). E essa rua, de facto estruturante, ligava os vários pontos nucleares da cidade, atravessando, entre retas e curvas, os locais mais importantes, por via de “alargamentos especializados”, como os largos (da Câmara, da Misericórdia), os terreiros (do Paço), os rossios (às Portas de Santo Antão), os adros (da Sé Catedral, de outras igrejas), até, eventualmente, às praças, no seu sentido mais corrente.
Tudo isto se passava numa sequência fluida, dinâmica, imparável, criando uma espécie de “equilíbrio distributivo” entre as várias funções principais da urbe. Isto porque cada destas funções ocupava o seu lugar próprio, deitando ou abrindo para um espaço público caracterizado, independentemente e estrategicamente afastado do seguinte. Deste modo, e à maneira tipicamente medieva (que sempe pocurava um equilíbrio de espaços “entre poderes”, pacificador, uma vez que o poder central era fraco ou inexistente), que foi persistente e incorporada na urbe de matriz lusa, o espaço público municipal tinha o seu domínio específico, que era independente do da Sé, do da Misericórdia, do do Rei, do dos Conventos, etc. etc. Note-se, de resto, que a tradição de um poder central “débil” permaneceu como caracterizador da ação secular da Coroa portuguesa, depois da República, e, em termos do poder político português-euro-colonial, mesmo até aos nossos dias.
Esta organização espacial da urbe em “sequências lineares de vias”, ligadas por sua vez entre si, de uma forma fluida e adaptativa, favorecia a vivencialidade sensivel, materializada e dinâmica da urbe – e constituiu-se deste modo no seu tema mais importante. O Homem, percorrendo a cidade, experimentava o modo através do qual os seus utilizadores pudiam “fazê-la” e assim “habitá-la”, nela trabalhar, divertir-se, em suma, viver. Isto, de novo num quadro de entendimento do espaço e da matéria com base medievo-aristotélica, onde “… toda a natureza é concebida sob o aspeto de consecutivas transformações da ´matéria´ na ´forma´ e vice-versa |Aristóteles|…via na matéria apenas um princípio passivo, atribuía a atividade à forma e reduziu a esta o princípio do movimento e do fim. A fonte última de todo o movimento (…) é Deus” (in in Dicionário Filosófico/vol.ABC, dir.M.M.Rosental e P.F.Iudin, Lisboa, 1972, pp.56-57). Este processo dinâmico-sensorial, era obtido assim, pelo simples caminhar na rua Direita, implicando com isso o entrar-sair nas séries principais de largos-terreiros-rossios-adros, – que precisamente deviam evitar o serem excessivamente formalizados e independentes da ruas que os geravam e atravessavam, como modo de garantir a sua coesão e corpo solidário, propiciadores de uma “vivencialidade integrada”, no todo da urbe.
Falemos da “rua” da cidade de matriz portuguesa, alargando agora o tema da rua direita ao conceito mais geral de “rua”. Note-se que falamos desta rua e desta urbe, não só no Portugal europeu e atlântico-insular, mas, e sobretudo, nos outros territórios onde se implantou este tipo de aculturação cívico-espacial-urbana, na América, Ásia, África e Oceânia: do Rio de Janeiro a Luanda, de Goa a Macau, da Bahia a Lourenço Marques, de São Tomé a Dili. Nestas urbes a “rua” assumiu-se bem, em resposta e suporte adequados, como que constituindo um “refúgio” próprio e assumido de e para uma comunidade de sentir e atitude intrinsecamente “envergonhada”, tímida, introvertida, que sempre preferia as ruas-canais-discretos, às praças-lugares abertos-expostos (sempre em contraste com a Espanha das “plazas”, ou com a França das “places”). A rua no quadro urbano lusitano é pois um lugar de movimento, solto, discreto e fluido, onde nos sentimos bem, superando coletivamente a dificudade em usar a praça “aberta a todos”, em que todos se veem e (devem) comunicar total e abertamente uns com os outros…
Raízes geo-históricas de uma idiossincrasia
Claro que geo-historicamente se pode explicar tudo isto, em grande parte, pelas raízes matriciais urbanas, de grande peso geo-histórico no território português, que sempre favoreceram a fixação, o enraizamento e a persistência de “povos e culturas de periferia”, em detrimento das correspondentes culturas euro-centralizadoras. Isto sucedeu desde as culturas castrenses (os resistentes povoados altaneiros e colinares da Pré-história e da Idade do Ferro, com malha irregular e dimensão ruralizante), passando às greco-fenícias (os primeiros ocupantes dos litorais lusos, com os seus portos e cais) e às bárbaro-islâmicas (restruturadoras da herança romana no interior e âmago do território, com visigodos, suevos e magrebinos, e as suas urbes antigeométricas e inorgânicas). Todas elas foram atravessando as sucessivas etapas do longo processo histórico da formação do espaço identitário da cultura portuguesa edificada – versus a ideia da Romanização, com a sua estruturação racionalizadora do espaço e da malha das suas povoações. Consulte-se a obra do geógrafo Orlando Ribeiro, e seus continuadores, para averiguar de todo o peso das culturas antigas, orientais e ruralizadas, na construção da urbe portuguesa e do seu território de ação.
Um individualismo de temperamento, uma atitude coletiva de reserva e introversão
No entendimento da estruturação interna da cidade de matriz portuguesa – e para melhor clarificar aí o papel da “praça” – agora com a ajuda da tradição islâmica – tome-se como exemplo ou tema a ideia de “bairro” (“do árabe barri: aceção primitiva, arrabalde. Cada uma das partes principais de uma cidade. Parte de uma povoação”, in Dicionário Prático Ilustrado (ed. Lello & Irmãos – Editores, Porto, 1976, p.136), como ele é entendido e praticado nela.
A cidade lusófila, apesar da sua clara inscrição genérica no modelo de cidade cívico-pública, de raiz essencialmente clássico-europeia (ver Chueca Goitia, Breve História do Urbanismo), constitui nesse quadro uma variante específica, muito definida no seu caráter periférico e idissincrático, como se explicou atrás. Assim sendo, o conceito de “bairro” na cidade de matriz portuguesa (ou seja, de uma sua “parte”, assumida como parcela algo autónoma) tendeu a atingir, historicamente, uma importância e uma dimensão muito fortes, que frequentemente superou o tema da “dimensão coletiva” e do “bem público” – associando-se a, e baseando-se, no tema de um individualismo grupal arreigado, cuja origem se pode buscar na meio-milenar influência muçulmana.
O Bairro “terra de cada um”, castiço e individualizador para os seus habitantes, constituiu e ainda constitui (veja-se a Lisboa das “marchas populares”), como que uma bandeira para o seu representante, em vários planos superior, ou pelo menos em tensão/contraste, com o envolvimento desse habitante na comunidade, em termos de considerar o valor e a noção da cidade onde ele mesmo se inscreve, como um todo… Ora, neste quadro, o papel da praça, como órgão centralizador e unificador, que emana, natural e “geometricamente”, o sentido de um poder central, ideal, abstrato, que todos devem acatar – enfraquece e tende a diluir-se, sendo substituído pelas “ruas dos bairros”, componentes estruturadoras (embora algo fragmentadoras e dissociadoras) do todo urbano!
A dimensão vernácula como vocação: do rural e do quintal ao pátio e à praça
Acresce ainda, no quadro que tentamos definir, como mais um elemento caracterizador, o que poderíamos designar por “nostalgia ruralista”: ou seja, traduzindo em “espécie tipológica”, a importância na cidade de raiz portuguesa – agora no quadro específico da casa de cada um, do habitat de cada família – constate-se o preferencial tema do ”quintal” ligado às habitações, em vez do do uso do “pátio”, que de resto estará na mesma proporção do entendimento preferencial do “largo/terreiro/rossio” em vez do da “praca”. De facto, um e outro, “quintal e largo”, são conceitos mais informais e próximos da natureza, enquanto que “pátio e praça” constituem conceções mais rígidas, geométricas, e assim, de algum modo, mais urbanas.
Assim, o quintal, parte complementar mas essencial desta “casa portuguesa urbana”, de formação histórica, apresenta uma expressão espacial-funcional introvertida, favorecedora de recolhimento e de discreção, com seus muros e telheiros, assegurando ao mesmo tempo uma ligação perdida (mas sentida com “saudade”) da urbe ao campo e ao mundo rural. Incorpora terra, tem cultivo, pode ser suporte de uma horta, de um pomar. Enquanto o pátio, lugar “quadrado” e geométrico por excelência, normalmente ponto central e/ou nuclear da casa, é pavimentado, tem elementos decorativos, em pedra ou cerâmica, e exclui o vegetal, senão como ornamento… traduza-se agora, com as devidas distâncias, de escala e de relação com a cidade: o “quintal” está para o “terreiro” ou o “rossio”, como o “pátio” para a ”praça” – e aí teremos outro aspeto claro deste tema das “preferências” urbanas.
Esta questão da oposição conceptual entre quintal e pátio está ligada igualmente à dimensão vernácula da urbe de matriz portuguesa – contra a afirmação do universo erudito, que domina em outras cidades europeias mais centrais, a urbe portuguesa, exemplo da cultura material das periferias europeias, propugna e defende a assunção da construção de cariz popular, da chamada “arquitetura corrente”, com as suas características regionais específicas, que atinge um valor estético superior apenas, ou sobretudo, como um todo – contrariando a tendência muito própria da arquitetura erudita para se erigir em monumento. Ora a monumetalidade (com os seus temas adstritos, de simetria, escala, repetição, equilíbrio) é um dos atributos que constitui peça vital da/para a constituição formal da praça…E cuja feição erudita reforça o seu papel fulcral de espaço ordenador, centralizador, potente…
A “praça como espaço incompleto”, ou incompreendido, em Portugal
Mais fácil de provar com exemplos de “não-praça”, ou da “praça incompleta”, do que tentando o ensaio ou a seriação sistemática dos muitos exemplos disponíveis de “criptopraças” lusas (veja-se a obra A Praça em Portugal / Inventário do Espaço Público, (FAUTL, coord. José Lamas / Carlos Dias Coelho, Lisboa, 2007) debrucemo-nos para concluir, analiticamente, apenas sobre as características da nossa “praca das praças”, a mais exemplar e sofisticada de quantas a cultura urbana de matriz portuguesa produziu: a Praça do Comércio em Lisboa (antes do Terramoto de 1755, local do Terreiro do Paço), concebida na reconstrução pombalina, da segunda metade do século XVIII. Nela apreciaremos precisamente os aspetos que, afirmando a sua incompletude estrutural, funcional e estilística – asseguram ou comprovam de per se a “dificuldade” (isto é, a QUALIDADE) da cultura lusitana urbana se apropriar do conceito global de “praça”, neste caso de expressão clássica, como ele foi e é entendido nos principais núcleos da conceção erudita europeia.
De facto, numa simples averiguação estatística, o estudioso apercebe-se facilmente de que a “praça portuguesa” é ou tende a ser, na sua formulação histórica (do tempo Medieval ao Contemporâneo), geográfica (nas luso-urbes da Europa à Ásia, América e África), e tipológica (falha de elementos básicos como as arcadas, a dimensão encerrada, a autonomia formal e espacial) – tende a ser, dizíamos, incompleta, irregular, não simétrica, enfim, numa frase, tendente à sua diluição na fluidez espacial ubana, em vez de tendente à autonomia conceptual própria.
Recordemos, a este propósito, o tema, claramente expresso nas nossa urbes, do que designamos como a “síndrome das arcadas falhadas” – isto é, a inexistência, por regra, da praça com arcadas (pórticos, galerias) a toda a volta, dentro da cultura urbano-arquitetónica de matriz lusa, ao longo dos diferentes e sucessivos tempos históricos – desde o Rossio medieval Lisboeta à praça da Ribeira Portuense de Setecentos, ou desde a praça do Giraldo em Évora à obra típica do Estado Novo novecentista, a praça do Areeiro, em Lisboa. Em todas elas, como na quase totalidade das praças lusas, existe o que podemos designar por “arremedos de arcadas”, ou seja, tentativas tímidas e “fracas” de estruturar os alçados dessas praças com galerias, por vezes apenas implantadas num dos lados da praça, ou, em muitos outros casos mesmo, com a inexistência de qualquer arcada ou galeria térrea a toda a sua volta!
Este signo claro de “incompletude por regra” é a prova inequívoca de que o tema da galeria-arcada, aperfeiçoado e estabilizado desde o Forum romano, reafirmado civicamente na praça medieva e clássica europeias, e delas suporte espacial essencial como garante do interface interior–exterior, público-privado, e base vazada térrea, suporte do corpo cheio nos pisos – é, no quadro cultural urbano português, menorizado, secundarizado, apagado mesmo, por todas as razões e causas invocadas atrás neste texto – seja pela assunção de uma atitude coletiva intimista, de introversão; seja por uma postura espacial de forte individualismo (que “foge” da implicação de predomínio de uso público da galeria-arcada); seja ainda a par do sentido mais utilitário, vernáculo e reinventivo do espaço urbano de raiz lusa, que, simplificando as praças (desprovidas de arcarias/pórticos), escolhe eleger as ruas e os espaços públicos mais irregulares e informais como os seus temas favoritos e padrão de uso preferido.
De facto, constitui sem dúvida o exemplo maior desta assunção cultural e urbana da “praça incompleta”, a Praça do Comércio – a qual, não por acaso, 250 anos depois da sua criação, ainda é designada popularmente em Portugal pelo nome anterior à sua construção (o do espaço destruído pelo Terramoto de 1755), de “Terreiro do Paço” – numa escolha toponímica vernaculamente comprovativa das opções de gosto, de edificação e de saber, da cultura portuguesa, no que respeita a praça: ela é uma praça clássica, inequivocamente, mas é percecionada e integrada como… um terreiro (que foi mas já não é)!
Analisemos então a sua estutura formal e espacial, na verificação rápida e evidente da sua incompletude:
– apresenta apenas três lados, aberto o que seria o quarto sobre o rio (na tradição do espaço público aberto ao mar ou ao rio da cidade portuguesa); note-se que houve na Reconstrução setecentista um projeto de praça, a par deste, com quatro lados (e com arcadas abertas sobre o rio) – mas que foi rejeitado, certamente não por acaso;
– exibe na sua composição estilística e formal uma preocupação claramente simplificante – ou seja, apesar de evidente elegância de desenho, não há senão excecionalmente (nos extremos de cada corpo) o uso das pilastras clássicas, em ordem colossal, apostas às frontarias – o que traduz a assunção clara do modelo vernáculo tradicional da arquitetura portuguesa (e a recuperação do saber do “estilo chão” seiscentista), aqui cruzado com a temática erudita, por força da forte necessidade simbólica (do Poder Real);
– finalmente, o aspeto mais interessante da sua incompletude, porque de caráter “invisível”- a praça do Comérico nunca foi “praticada”, habitada, vivida, integrada em pleno pela comunidade da cidade que a criou: as arcadas, que nela até são de uma generosidade excecional como arquitetura (sobretudo se pensarmos nas outras arcadas das urbes lusas), permanecem quase vazias de gente (compare-se com o atual Rossio de Lisboa, vividíssimo de gentes, mas sem arcadas) – destinadas essas arcadas, talvez, poeticamente, apenas aos sonhos de um Fernando Pessoa que nelas deambula, fantasmático e notívago.
Nota: Quanto à definição de “praça” (in Silva, António de Morais, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, 10ª. edição, Editorial Confluência, Lisboa, 1955, vol.VIII, pp.583-584 “(do latim platea – Lugar público, grande largo, geralmente rodeado de edifícios, para embelezamento de uma cidade, vila, etc, e como meio higiénico para melhor circulação do ar e plantaçãode árvores; rossio…”. É curioso ver como a sua definição como palavra portuguesa passa logo pela tentativa de “redução” a largo (grande) ou a “rossio”, e lhe incorpora desde logo a natureza (plantação de árvores) e os objetivos sanitários (meio higiénico) e estéticos (embelezamento). Veja-se ainda, do mesmo modo, outras definições no mesmo quadro: a do Dicionário Prático Ilustrado (ed. Lello & Irmãos – Editores, Porto, 1976, p.941), que refere “do grego plateia, lat. Platea. Lugar público, descoberto e geralmente cercado de edifícios.”; e, finalmente, veja-se o (Cunha, Antônio Geraldo da, Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, 2ª. edição, Rio de Janeiro, 1986, p.627, onde se menciona “lugar público cercado de edifícios, largo…” com a palavra “praza” já na fase medieval.
O texto “A ´antipraça´ portuguesa – Temas e reflexões” foi elaborado para o colóquio internacional “Espaço público. A praça na contemporaneidade”, realizado em 13 / 14-1-2012, pelo DA/ UAL-ISCTE
Bibliografia
CHUECA GOITIA – Breve História do Urbanismo. Vila da Feira: Editorial Presença / Martins Fontes, 1982.
CUNHA, Antônio Geraldo da – Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986 (2ª edição).
Dicionário Prático Ilustrado. Porto: Lello & Irmãos – Editores, 1976.
FERNANDES, José Manuel, Arquitetura Portuguesa – Uma Síntese. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda,1991 (2ª Edição, 2000; 3ª ed. 2006).
LAMAS, José; COELHOm Carlos Dias (coord.) – (A) Praça em Portugal / Inventário do Espaço Público. Lisboa: Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Lisboa, 2007.
ROSENTAL, M. M.; IUDIN, P.F. – Dicionário Filosófico. Lisboa: Editorial Estampa, 1972.
SILVA, António de Morais – Grande Dicionário da Língua Portuguesa. Lisboa: Editorial Confluência, 1955 (10ª edição).