Entrevista
PARTE 1
PARTE 2
Filipa Ramalhete
framalhete@autonoma.pt
Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa (CEACT/UAL), Portugal | Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa (CICS.Nova)
João Caria Lopes
joaocarialopes@gmail.com
Atelier BASE | Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa (CEACT/UAL), Portugal
Para citação: RAMALHETE, Filipa; LOPES, João Caria – Entrevista à Marusa Zorec. Estudo Prévio 13. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2018. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI:
JCL – Temos o enorme prazer de começar esta série de entrevistas com o Arquiteto, Professor e grande divulgador de Arquitetura, Manuel Graça Dias. Gostava de começar por confessar que foi um dos professores, se não o professor, que mais me marcou durante a Universidade. Sei que também teve um professor, penso que até antes da Universidade, que o marcou bastante…
Tive alguns professores que me marcaram bastante. No curso de Arquitetura, na antiga Escola Superior de Belas Artes [ESBAL], terão sido dois: o Escultor Lagoa Henriques, que mais tarde deu aulas aqui, no DA/UAL, e o Professor Manuel Vicente, que também dá cá aulas, ao segundo ano.
No Liceu tive um professor muito interessante, muito forte, muito marcante, o Pintor António Quadros, que foi parar a Moçambique, onde eu estava nessa altura, e foi nosso Professor de desenho, no primeiro período do antigo segundo ano do Liceu (agora sexto ano). Essa passagem de António Quadros pela turma, foi, para mim, muito reveladora, muito importante.
A primeira vez que nos deu aulas, disse-nos para começarmos a pintar um animal que não existisse, “com sete braços e sete pernas, cauda de crocodilo, cabeça de elefante, três pescoços de girafa”, o que quiséssemos. Ele estava naquela descrição, e já eu estava furiosamente a desenhar.
Tinha comigo umas folhas com esquadrias esforçadamente feitas em casa, como era mais ou menos obrigatório — uma coisa que me custava imenso, borrava tudo, tinha de repetir umas dez vezes até conseguir uma esquadria decente — e ele — “O que é essa folha, porque é que andaste a perder tempo a fazer isto?” –, virou-me o papel ao contrário sentou-se e começou a mexer com os pincéis em três bocados de tinta: “Então vá lá: queres o quê, verde?”. Começou a misturar o azul com o amarelo e perguntou-me se gostava daquele “verde“. Depois começou a pintar um bocadinho. “Não gostas? Queres mais escuro? Vais ali e escureces. Queres castanho? Misturas vermelho”. Fiquei fascinado com aquela química, com a possibilidade de sermos nós a fazer a cor imediatamente, de sermos nós a comandar a tonalidade. Era muito estimulante; fiz logo a minha pintura, enchi a folha toda como ele aconselhara, com um animal fantástico, complexíssimo, cheio de cores.
Entreguei o trabalho convencido que teria mais um Suficiente. Quando mo devolveu fiquei muito orgulhoso porque tive um Muito Bom! O estímulo que nos dava era enorme e a partir daí fiquei completamente fã daquelas aulas; bebia tudo o que nos dizia.
Lagoa Henriques foi nosso professor no primeiro ano, na ESBAL, a Desenho de Estátua. Foi logo uma descoberta fantástica! Estava ali toda a gente com paus de carvão, “fixador” para pôr no fim, imenso miolo de pão para apagar, “esfuminhos”, umas coisas de feltro em forma de lápis para esfregar e que tiravam, precisamente, a graça do carvão, o registo dos nossos riscos.
Estávamos então, nós, com esses truques todos, e Lagoa Henriques entrou e começou logo aos gritos! Viu umas pessoas com miolo de pão: “O que é isso pá? É para os pombos? Dá cá!” Deitou o pão todo pela janela fora, “não quero cá miolo de pão!”.
O primeiro exercício passava pela observação e registo de uma cadeira. Pôs a cadeira num plinto e pediu que cada um a desenhasse a partir do respetivo ponto de vista. Eu estava muito contente porque tinha conseguido uma aproximação muito credível à imagem da cadeira… a folha de papel era enorme, era para aí um A2, ou maior, de cavalinho, como era suposto, presa com punaises na prancheta, ao alto. Tinha desenhado a cadeira com não mais do que uns dez centímetros de altura, no meio da folha, muito perfeitinha. Estava todo satisfeito a desenhar, e Lagoa Henriques olhou para aquilo e disse-me: “Ouve lá!” – eu a pensar que ele me ia gabar imenso, mas pegou-me no carvão, desenhou um retângulo pequenino à volta da cadeira, um retângulo que continha a cadeira no meio daquela folha toda –, “Ouve lá, a tua folha de papel é deste tamanho? Porque é que desenhas como se a folha fosse apenas isto? Faz um desenho na proporção da folha!”, aos berros; ao segundo dia eu já gostava imenso daquelas aulas, de Lagoa Henriques e dos seus métodos. Percebi que a onda era realmente experimentarmos, mais do que estarmos ali a repisar o que já sabíamos, e que ele estava completamente aberto a deixar-se encantar com situações novas.
Propunha-nos que desenhássemos — na altura era bastante surpreendente –, ramos de árvores que apanhava pelo caminho ou uma outra coisa qualquer que encontrasse no lixo – uma máquina esquisita, por exemplo. Outras vezes, eram aqueles bustos em gesso que havia na antiga Escola de Belas Artes, que reproduziam estatuária clássica. Pretendia era um olhar mais moderno. Se se criava um qualquer quadradão preto, por trás, para fazer ressaltar a peça, ele valorizava logo: “Vá, é isso mesmo! Vamos embora!”. A certa altura, deixei o carvão, comecei a desenhar com esferográfica, levei aguarelas, levei lápis de cor, comecei a experimentar outros materiais, o tubo de “tinta da China” diretamente, como se fosse uma caneta, e ele sempre a estimular, a celebrar! Foram de uma enorme intensidade, aquelas aulas!
Por fim, chega Manuel Vicente, o único, dos professores de Arquitetura, que teve interesse. E que também foi muito pouco canónico, muito pouco ortodoxo. Só tivémos aulas com ele por um período de tempo pequeno e foram, realmente, incríveis! Acho que ele nos dava duas cadeiras, Teoria da Conceção – uma coisa inventada na altura [1976], que depois acabou –, e Projeto.
Estávamos ali quatro horas à conversa, à volta de uma mesa. Todos os dias nos trazia um tema. Nunca projetou uma imagem, nunca vimos uma imagem! Os temas eram livros, textos, filmes, ideias. Coisas que não conhecíamos, nem fazíamos a mínima ideia que existissem, sobretudo as de Arquitetura. Falava-nos da Arquitetura que tinha visto, dos espaços que tinha visitado, do que tinha pensado nessas visitas, e falava-nos de Louis Khan, quando tinha estudado com Khan, de Robert Venturi, de Denise Scott-Brown, de Luis Barragan, de Aldo Rossi – de ter ido ao Gallaratese e de ter ficado de boca aberta debaixo do que não seria uma simples junta de dilatação –, punha-nos a falar a nós, perguntava-nos onde vivíamos, que experiências arquitetónicas tínhamos tido, em que cidades é que já tínhamos estado, onde é que tínhamos ido, onde é que não tínhamos ido. Foi fascinante.
Trouxe-nos a revista L’Architecture d’Aujourd’hui dedicada a Portugal, aquele número que saiu em 1976 [(# 185). Paris: maio], e nós ficámos fascinados. Havia trabalhos dele, de Siza, de Távora, de Byrne, de Hestnes Ferreira, de uma série de pessoas. Claro que Álvaro Siza era o único que conhecíamos (ou julgávamos conhecer); éramos muito ignorantes, não conhecíamos nada.
As aulas de Manuel Vicente, para mim, foram sempre muito reconciliadoras com o que eu “estava à espera”, em Arquitetura, mas ainda não me tinha sido proporcionado! Mandava-nos ver coisas – a Cova do Vapôr, por exemplo –, observar, fazer fotografias. Depois, projetavam-se os slides na aula e comentavam-se. Foi muito, muito excitante! Mas as aulas não eram só isso, eram aulas sobre muitas coisas, sobre Arte, sobre Arquitetura, mas também sobre a vida, sobre a relação apaixonada da vida com a Arquitetura. Por tudo isso, muito lhe devo.
FR – Essas experiências que o marcaram, aconteceram num contexto muito diferente daquele que o país vive hoje, e portanto eram professores um pouco à margem daquele país cinzento e daquele ensino muito conservador e castrador, e muito académico. Hoje consegue transpôr para os seus alunos este tipo de abordagem? Essa irreverência que esses professores esperavam que os alunos tivessem?
Eu acho que continua a ser válido ter essa pretensão, pelo menos. O ensino nos Liceus é bastante conformista. Não digo que é melhor ou pior de que o aquele que eu tive. Provavelmente, em alguns pontos até será bastante melhor (espero…), mas de uma maneira geral, continua muito conformista. Continua a ser um ensino para não pensar, que não leva as pessoas a refletir e a gostarem de refletir, muito baseado no decorar – no aprender técnicas e fórmulas. É um pouco como esses testes de Código de Estrada. Para tirarem a carta, têm todos que fazer um exame complementar de Código de Estrada, não é? E os engenheiros, ou os monitores, que dão formação nessa suposta sabedoria – que transmitem esse conhecimento que está condensado num livro de vinte ou trinta páginas –, ensinam “truques” para resolver os testes! E o Liceu está todo assim. Os miúdos chegam à Universidade com esse espírito. Muito pouco dados a pensar, muito pouco dados a refletir, muito pouco dados a gostar de compreender por si próprios. A quererem a papa feita, a quererem fórmulas. “Dei isso no Liceu, mas foi no ano passado, já não me lembro!”, é uma frase recorrente, que sintetiza este modo um pouco frustrado de grande parte das pessoas se relacionar com o conhecimento.
Eu acho que há sempre um registo de subversão possível: levar a perceber que é muito mais interessante sermos nós a descobrir as coisas, se nos derem os instrumentos para o fazermos. No fundo, foi o que se passou com estes professores que referi. Deram-me instrumentos para eu tentar encontrar coisas, depois, por mim. Nessa altura, não o entenderia completamente, mas hoje tenho a certeza que o registo era esse. Esse campo continua completamente em aberto. Acho que a nossa função, enquanto professores, é ver qual é a melhor maneira de dar a cada um, dentro do possível (e nesta Escola, que não é uma Escola de massas, isso está, de algum modo, mais facilitado), dar, a cada um, os instrumentos necessários para conseguir chegar ao conhecimento, por si, e depois, a partir daí, elaborar, fazer, propor, inventar, descobrir-se a si próprio e às suas capacidades e limitações.
FR – Já de alguns anos, tem a experiência da Escola grande (pública), e da Escola pequena (privada). É muito diferente? Há diferenças fundamentais, neste momento? Neste desafio do ensino da Arquitetura, no tipo de exercícios, nas respostas que os alunos dão?
A diferença não residirá tanto no facto de se estar perante um número maior ou menor de alunos, mas em situações bastante mais perversas. Reside no facto de nas Escolas oficiais estarem, de um modo geral, os alunos que provêm de famílias mais abastadas, que têm um nível cultural mais qualificado. E embora isso hoje também não seja assim tão preto no branco – como terá sido aqui há uns tempos –, é perverso, porque, ao contrário do que se poderia ser levado a pensar, nas Escolas privadas acabam por estar, a maior parte das vezes, os alunos de proveniências mais modestas, que não tiveram nunca grandes classificações, nem estímulos suficientes ao estudo que os motivassem e que lhes permitissem entrar no ensino oficial. Os que têm esse estigma social são, na maior parte dos casos, piores alunos e acabam os Liceus com piores notas.
Sou muito crítico do ensino que se pratica hoje nos Liceus, e diria até, no seguimento da conversa de há pouco, que esses alunos que entram no oficial são, provavelmente, muito mais presos, cheios de “tiques” de “bom aluno” e de “cumpridor”. Ser “bom aluno” e “cumpridor” não quer dizer nada, porque geralmente esse estatuto é conquistado quando se é pouco criativo e quando não se questiona muito o “saber” que o mainstream valoriza. Por outro lado, os alunos das privadas, uma vez que não são recrutadoos entre os “melhores”, poderiam ser um pouco mais selvagens, menos “arregimentados”, menos previsíveis; mas também não chega a ser bem assim; nada disto é completamente verdade, ainda que houvesse essa hipótese.
Eu não vejo grandes diferenças, a única coisa de que por vezes me apercebo é que há alunos um pouco mais estruturados no Ensino Público, com as ideias mais arrumadas, capazes de ler um livro e percebê-lo mais rapidamente. Capazes de receber uma questão e de a desenvolver, ainda que uma grande parte num registo de “menina bem comportada”, e não de personalidade criativa, com vontade de avançar. É sempre preciso lutar, acabar com as “caixas de repetição” com as “meninas bem comportadas”, tão do agrado das famílias e pô-los um bocado mais em confronto com o mundo!
JCL – E em termos de saídas profissionais desses alunos, acha que há diferença entre fazer o curso numa Universidade Pública ou fazer o curso numa Privada?
Não sei como é que os meus colegas arquitetos veem isso. Neste momento, as dificuldades são para todos. Já de há uns anos para cá, cada vez o mercado está mais saturado, mas eu nunca olhei assim para os alunos que me vinham pedir para fazer estágio ou para colaborar connosco. Nunca tomei em linha de conta a origem do curso. Dou aulas em duas das melhores Escolas do País, no Porto, na FAUP, e em Lisboa, aqui no DA/UAL, e sei muito bem que há alunos ótimos, interessantíssimos, mas também há alunos fracos ou pouco vocacionados. As Escolas, por melhores que sejam, não chumbam os candidatos, tirando casos extremos. As boas Escolas vão tentando acompanhar os alunos, vão tentando que eles sejam melhores do que quando chegaram, mais livres, que fiquem a saber mais, que tenham mais curiosidade, que estejam mais informados, mais cultos, mas se houver casos mais “empedernidos” não será a Escola a conseguir mudá-los radicalmente. Como tal, eu nunca ligo muito à origem escolar, ainda que ache que algumas Escolas (Privadas ou Públicas) sejam melhores do que outras, e, que então, provavelmente, os respetivos estudantes terão tido, ao longo do curso, contacto com situações mais interessantes, mais criativas. Mas, francamente, acho que é quase como alguém nos perguntar qual foi a Escola Primária que frequentámos. Há sempre coisas a aprender, e um jovem arquiteto, todos temos consciência disso, não é nada enquanto não começar a trabalhar, enquanto não passar dois ou três anos envolvido num atelier. Só uns anos de trabalho é que poderão vir a fazer dele um bom colaborador, ou um bom arquiteto, ou o que seja. O papel das Escolas de Arquitetura é familiarizar os futuros arquitetos com a área de conhecimento que escolheram, abrir-lhes horizontes, propor-lhes novas experiências, mostrar-lhes que o mundo é muito mais complexo do que a ideia plana que a cultura dominante pretende fazer passar; não é tanto preparar “profissionais” que possam vir a ser eficazes no “mundo do trabalho”. Essa seria uma visão economicista do ensino; eu partilho de uma visão mais “humanista”.
FR – No fundo, as Universidades de hoje em dia têm a responsabilidade de fornecer aos alunos capacidade crítica, que é uma coisa que eles não aprendem no Liceu…
Claro. Nem os Liceus, nem os meios de comunicação ajudam muito. E todo o ambiente está muito formatado para um determinado padrão de vida. Provavelmente, agora, as coisas vão mudar, com todos estes problemas económicos em que estamos metidos. Mas, durante muitos anos apostou-se, acima de tudo, numa espécie de facilidade. O tanto faz. Havia dinheiro – parecia haver dinheiro –, o mundo era bom, era giro, era tudo muito divertido, não era preciso pensar muito. Quando se vê um filme não é preciso pensar muito, comem-se pipocas e bebe-se coca-cola e é tudo uma festa (uma festa no pior dos sentidos do termo, eu gosto de festas…). Nem sequer é uma festa, aquilo é tudo para passar o tempo. É uma expressão que odeio: “passatempo”. Passar o tempo é uma coisa para as pessoas que estão à espera de morrer: têm de passar o tempo até chegar essa hora. “O que é que estás a fazer? Estou fazer um passatempo”.
Uma pessoa que goste de Arquitetura, ou de outra profissão qualquer, que goste da profissão que escolheu ou da área de estudos que escolheu, não tem que “passar o tempo”. Tudo deverá ser suficientemente interessante para o interessar a tempo inteiro. Essa ideia de “passar o tempo”, de ter hobbies, de estar sempre com os headphones, a ouvir musiquinhas, essa espécie de vida vazia, é muito encorajada, porque no fundo, garante cidadãos dóceis. São pessoas que não criam problemas à “máquina”, à “superestrutura”. Não entram paus na engrenagem, com cidadãos assim. É tudo respeitador, quer tudo ter uma casa, uma família, um carro, quer tudo aprender a conduzir, fazem os Exames de Código tal e qual como os professores mandam! É tudo muito bem educado e muito dócil.
Faz parte de qualquer Instituição de Ensino, seja Universitário, Público ou Privado, seja Primário, seja Secundário, perturbar um bocado. Não é magoar ninguém! É, realmente, mexer com o interior das pessoas. Dar-lhes uma única certeza: que as coisas não têm um único ponto de vista. Conseguir criar-lhes essa visão; porque há uma grande tendência para achar que tudo aquilo que temos é mais ou menos estável, é adquirido. E nem estou a falar nos temas sociais e económicos, estou a falar na cultura em si. No conhecimento em si. Tudo estável, tudo fácil. E as pessoas não estão preparadas para duvidar, para terem dúvidas, para questionar, para se interrogar a si próprias, para interrogar a vida, para interrogar o social, para interrogar a cultura. Acho que qualquer Instituição de Ensino deverá passar por aí; tem que instalar essa ideia de dúvida.
Eu gosto bastante de fazer alusões ao vestuário dos alunos; o paralelo por vezes poderá ser forçado, mas funciona. Porque a maior parte não se importa nada de andar “disparatadamente” vestidos, com botas até ao joelho e, em simultâneo, com os rins à mostra, por exemplo. E quando estão naquelas conversas “bem comportadas”, a reproduzir o que ouvem em casa ou na televisão, atiro-lhes, “Olhe lá, se pretende ir para o mundo do funcional, acha que o seu vestuário funciona? Está com frio nos pés e não tem frio nos rins? Há qualquer coisa que não bate certo ! Não estará assim vestido porque gosta? Porque quer? Haverá, então, uma forma de expressão que escolheu e que ultrapassa, em muito, o registo estritamente utilitário. Pense bem nisso, e veja a implicação que poderá aportar a outros campos do saber!”. Ou, “Gosta de andar com as calças velhas, usadas, coçadas, rasgadas, mas, depois, diz que a cidade está muito feia, muito porca, muito suja, e que os responsáveis políticos deviam ser presos porque não mandam pintar os edifícios?… Quero dizer, faz conversa de tia em relação à cidade, mas gosta muito de andar com roupa um pouco “gasta”! Veja lá se percebe porque é que gosta das jeans velhas; não será porque as jeans novas não parecem conter tanta história, tanto tempo? Provavelmente, haverá um qualquer encanto numa certa obsolescência, numa certa patine!” Há sempre muitos campos deste género para os estimular, para os ajudar a pensar de outras maneiras. Não é para ficarem a pensar como eu; quero lá saber como é que venham a pensar! Quero é que não pensem como todos!
JCL – Depois da Universidade, o aluno acaba o curso, ainda não é arquiteto, o estágio é o ano zero, e só três ou quatro anos depois adquiriu competências para estar num atelier. A pergunta que eu acho que muitos jovens arquitetos continuam a fazer é: qual é que é o passo que se dá a seguir?
A resposta é clássica: as pessoas vão ganhando prática, trabalham em ateliers com uma certa rotina, estagiam, fazem interensino com outros e, a certa altura, aparece um trabalho que já se sentem capazes de fazer sozinhos. Um amigo que pede para remodelar a casa… isso acabará por ser sempre uma oportunidade. Depois depende muito de cada um. Há pessoas que não se sentem à vontade enquanto não têm realmente bastante prática; há outros mais atrevidos, que se acham capazes mal acabam o estágio. E vão-se fazendo, até que a certa altura pode adquirir-se uma independência, ainda que momentânea. Aparece um trabalho que vai durar dois ou três anos e que possibilita uma pequeníssima estrutura, para si, mais um amigo e mais um colaborador.
E depois, das duas uma: ou tudo se passa numa época em que há trabalho e umas coisas puxam outras – o empreiteiro que vai construir a casa gosta muito do jovem arquiteto, e pede-lhe que lhe desenhe um pequeno edifício, entretanto um primo vê o projeto, gosta imenso, e pede-lhe para remodelar o sótão, pelo meio fazem-se alguns concursos e há um ou outro que corre bem -, é um caminho possível, ou foi um caminho possível, porque se há menos que fazer, como agora, esta hipótese de “rede” é menos provável!
Mas eu diria que, mais importante do que isso, é realmente o arquiteto enquanto pessoa. Penso que há um mito, que também devemos ajudar a desmontar, com origem nos arquitetos estrela. O mito de que toda a gente está vocacionada para ser patrão; não de si próprio — seria interessante se as pessoas tivessem esse raciocínio –, mas patrão de outros.
Este mito atual de que se vai fazer um curso e que depois se sai de lá patrão tem de acabar. As pessoas têm de perceber que ter um curso superior é realmente ter uma preparação específica. A palavra superior é um pouco irritante, porque parece que se fica superior aos outros. Se lhes chamássemos cursos específicos, provavelmente seria mais interessante. “Vou fazer um curso específico de Arquitetura e, depois, saio com mais preparação para começar a trabalhar em coisas relacionadas com Arquitetura”.
JCL – Há alguns arquitetos novos, ou novíssimos, que tenha como referência? Que esteja a acompanhar o trabalho que eles estão a fazer?
Sim, vou vendo coisas de pessoas que passaram por mim, que foram meus alunos (alguns também colaboradores), e que hoje são arquitetos, com trabalho interessantíssimo. O Ricardo Bak Gordon, por exemplo. No primeiro ou segundo ano em que fui para Milão, ele estava lá, em Erasmus. Conheci-o em Milão e gostei logo imenso dele, achei-lhe imensa graça. No ano seguinte, ele e o Carlos Vilela foram meus alunos no último ano da FA/UTL. E há pessoas que passaram por mim, mais recentemente, aqui da Escola, que tenho visto, cá fora, com orgulho e satisfação, fazerem coisas interessantes. Tu [João Pedro Caria Lopes] e o Ricardo [Silva Carvalho], por exemplo, que foram meus alunos logo no vosso primeiro ano e que agora são meus assistentes.
Não estou a dizer que fui eu que “lancei” esta gente; na FA/UTL eu dava aulas ao quinto ano, limitava-me a puxar um bocado pelos alunos. Acho que ajudei a sacudir ideias já feitas que alguns teriam, mas, de maneira geral, os mais interessantes já chegavam com uma certa segurança. E o diálogo era quase que de arquiteto para arquiteto. Eu gostava muito do quinto ano por isso, porque podia tentar puxar os alunos para uma plataforma superior. É diferente quando se fala com garotos do primeiro ano, como tem sido a minha experiência nos últimos 14 anos, quer no Porto quer aqui, na UAL. Temos que descer bastante à base para conseguir apanhar um ponto de partida que compreendam, que os ajude e estimule. O meu melhor aluno de sempre, e logo no primeiro ano em que dei aulas na FA/UTL, foi o Egas Vieira, que é meu sócio. Para além de um enorme talento, já tinha uma formação e uma capacidade que me surpreenderam; foi por isso que que começámos a trabalhar juntos.
Oirmão do Egas, o Nuno Vidigal, bem como o Pedro Ravara, com quem fez sociedade, foram meus alunos dois ou três anos depois. Era um ano muito bom, com a Cristina Veríssimo, o Mário Martins, o Gonçalo Afonso Dias. A seguir, lembro-me do João Matos, que dá agora aulas em Évora, do Ricardo Vieira de Melo, que voltou a Aveiro onde desenvolve um interessantíssimo trabalho, do Vasco Delerue, já falecido, do Luís Torgal, nosso colaborador no atelier durante imenso tempo. Mais tarde, quando dei aulas de Projeto no curso de Arquitetura de Interiores, fui professor do Steven Eavens e do Miguel Abecasis, que também estão a fazer primeiros trabalhos muito curiosos. O Pedro Machado Costa não foi meu aluno mas trabalhou connosco um par de anos, o Paulo André Rodrigues também… enfim, imensos! É tudo uma gente bastante interessante que passou por mim e que eu vi com alegria tornarem-se arquitetos e terem trabalho que fazem com honestidade, com gosto, com envolvência, com paixão! Isso é o que mais me agrada nessas pessoas! Se também ajudei, ótimo! Se não, tanto faz, não será relevante. Gosto é de sentir essa paixão, esse envolvimento! Não olharem a Arquitetura como uma coisa qualquer, feita por desfastio, comercialmente, burocraticamente.
FR – É uma pessoa que lê, que escreve, que pensa sobre o que escreve e sobre o que lê. No seu trabalho de arquiteto, na componente de projeto, qual é o peso da teoria na sua prática profissional?
Dos programas que fiz para televisão, gravei um com o arquiteto [Manuel] Tainha. Estávamos a conversar, já depois de termos filmado, e eu fiquei muito contente porque concordámos ambos que a escrita também seria uma forma de projetar Arquitetura. Quando se escrevem as memórias descritivas, por exemplo, em concursos, está-se em grandestress, está-se muito focado naquilo, há que cumprir prazos, está-se em grande tensão. É preciso escrever um texto, e é preciso que esse texto seja percetível pelo júri, que não seja longo de mais, que não seja muito chato, que se perceba muito bem. É sempre um drama para lá conseguir meter tudo, para que o júri não deixe de reparar nas coisas essenciais. E eu referia-lhe que, muitas vezes, quando estava a fazer essas memórias descritivas, descobria coisas que ainda não estavam nos desenhos e ia a correr dizer que tínhamos de incluir isto, que tínhamos de incluir aquilo. Porque ao longo da escrita, ao justificar determinado tipo de proposta, percebia que afinal não tínhamos ido tão longe [no projeto] quanto quereríamos. “Mas isso acontece-me imenso também”, respondeu-me. É incrível! Porque, realmente, desenhamos, também, através da escrita; estamos ali a pensar muito intensamente numa determinada situação e resolvemos através da escrita coisas que não estavam ainda resolvidas em desenho!
Claro que a leitura dos teóricos me ajuda muito a pôr as ideias em ordem; ajuda-me, por vezes, a compreender determinadas situações que pressentia, mas que não conseguia explicar tão bem, ou que não tinha percebido ainda porque é que as sentia daquele modo, ou alerta-me, muitas vezes, para situações em que nunca tinha pensado. Embora esse seja sempre o ponto mais frágil. Quando nos alertam para coisas em que nunca pensámos, nunca as compreendemos totalmente. É mais fácil quando nos fornecem uma explicação para coisas em que já refletimos, experiências pelas quais já passámos. Aí estamos mais ricos para compreender, estamos mais dentro da problemática, podemos logo imediatamente criticar, dizer “não é bem assim”, “é mais do que isso ainda”, ou “é isto mesmo, porque comigo aconteceu-me também”. Acho que será esse tipo de reflexão teórica que nos poderá ajudar bastante a exercitar a capacidade de desenho.
JCL – É sempre tentador fazer uma pergunta sobre o futuro da arquitetura, mas mais do que isso – agora que o estado atual é mais ou menos catastrófico a nível mundial e de crise a nível nacional – arriscava perguntar que caminhos é que acha que se pode seguir…
Apetece-me dar uma resposta relativamente fácil, como o arquiteto [Eduardo] Souto de Moura, quando foi entrevistado a propósito do prémio Pritzker. Repetiu várias vezes que a nova geração tem de emigrar, que aqui não há trabalho para ninguém. Aparentemente, parece que é assim, que durante uns anos não vai haver trabalho para ninguém. Não porque faltem coisas para construir, mas porque não há dinheiro para as fazer. Felizmente, o problema da habitação está resolvido há já alguns anos; o mais urgente está feito, não há é dinheiro para outro tipo de apostas.
Não havendo dinheiro no Estado para grandes encomendas – e imaginando que haverá uma enorme retração na economia em geral –, também não haverá dinheiro nos privados; como tal, a maior parte dos jovens arquitetos terá mesmo que emigrar. Alguns já estavam a fazê-lo: muitos dos nossos alunos aqui da Autónoma já tinham ido trabalhar para o Brasil, para a Suíça, outros ficaram-se por Espanha, outros foram só em Estágio e acabaram por ficar mais dois ou três anos. Há os que voltaram, a ver se conseguiam trabalho por cá, e que depois regressaram outra vez. Esta aposta, é já ela própria uma experiência interessante para quem gosta de fazer Arquitetura. Não há problema nenhum em emigrar; acho que é divertido uma pessoa, nestas idades, sem responsabilidades nenhumas, ir para uma cidade estrangeira e começar por lá a iniciar-se em Arquitetura; depois logo vê, se quer ficar, se quer assentar arraiais, se quer voltar para Portugal. Contudo, e apesar de conhecer alguns “casos de sucesso”, não me parece que possa ser uma solução generalizável.
Tirando esta resposta que é mais ou menos “fácil”, não consigo responder mais nada, não tenho grandes soluções para este problema. Talvez sobre ainda a hipótese de fazer outro tipo de trabalhos não tão ortodoxos, numa perspetiva mais ou menos convencional da profissão: veria com bons olhos a área das “Medições e Orçamentos” ou a de “Técnico Responsável pela Obra” serem a pouco e pouco tomadas por jovens arquitetos, como tem sido, de há uns anos para cá, a dos antigos “Desenhadores-projetistas”. Também a Fotografia ou as Edições de Arquitetura, em papel ou em digital, ou a Cenografia, em teatro ou televisão, ou a Direção de Arte no cinema – mas estes campos, apesar de tudo, têm vindo a ser ocupados por arquitetos.
Claro que para os ateliers estabelecidos, emigrar não faz sentido; não posso emigrar com a minha estrutura! Posso é tentar trazer trabalhos de fora para dentro. É um bocado diferente: os mais novos vão vender a força de trabalho para ateliersestrangeiros e os ateliers em Portugal vão tentar captar trabalhos fora. Mas também não é fácil, tenho feito algumas démarches nesse sentido, estou em conversações em Macau, em Moçambique, no Bahrain, para ver o que é que se pode fazer. Além de gostar muito de Arquitetura e não querer parar de a fazer, mesmo nestas condições adversas, temos responsabilidades em relação às pessoas que estão connosco, que gostam de estar connosco, e para as quais temos que garantir trabalho. Mas esta é uma resposta pessoal, não vejo grandes saídas, não sei como é que se possa sair disto; vamos ver no que é que dá.
FR – E a reabilitação urbana não é uma possibilidade?
É, mas é também preciso dinheiro. Quero dizer: a reabilitação urbana, mesmo que promovida pelo Estado, pelas Câmaras, é muito mais cara do que a construção nova. É feita em condições, a maior parte das vezes, muito adversas, no meio da cidade histórica, com imensas dificuldades de estaleiro, imensas dificuldades de trabalho. Só será possível com estímulos económicos, com descriminações positivas, com taxas para recuperação muito menores. Sem coisas dessas, e no meio de uma crise económica, ainda menos hipóteses haverá e a reabilitação pelos privados estará condenada a um nicho de mercado de luxo. Esse universo também é muito limitado; por muito que se diga que os ricos devam pagar a crise, não há tantos ricos como isso, já todos têm casa, e não haverá muitos filhos por casar. Os promotores vão gastar imenso dinheiro e as casas vão para o mercado muito caras. Mesmo que as vendam, surge outra perversidade: a gentrificação dos centros históricos, isto é, uma mudança social expressiva que tirará a esses centros as características populares que ainda têm, a alegria que ainda vão tendo.
Quando nas Escadinhas da Bica deixarem de viver os populares que lá vivem – e que fazem festas no Santo António, que decoram aquilo com papelotes, que comem umas sardinhas cá fora, que bebem uns copos e gritam uns com os outros -, quando aquilo passar a ser tudo uns enjoados de uns meninos filhos dos paizinhos que lhes compraram ali casa, recuperada, com muitas casas de banho e assoalhadas, aquilo passa a ser uma tristeza, uma chatice, um sítio horrível! Deixa de haver mercearias, deixa de haver tascas e passa a ser uma rua fantasma de estores corridos, onde se sai de manhã e entra à tarde e não se vê ninguém. Eu detesto a ideia da gentrificação da cidade, decorrente dessa recuperação muito onerosa que vamos tendo. Se houvesse, realmente, mecanismos para tornar essa recuperação mais agilizada, mais barata, estimulante para os empreiteiros, ou para os promotores, de modo a que se pudessem praticar preços populares… a mistura social continuaria a fazer-se, com alguma vivacidade.