Com o desenvolvimento da revolução industrial, as questões urbanas adquirem uma dimensão e um impacto muito importantes na vida colectiva. Tornam-se objecto de estudos e propostas inovadoras, que identificam os novos problemas de diferente natureza e com uma escala antes inimaginável, e procuram encontrar soluções para projectar as novas cidades ou reorganizar/reordenadar as existentes. A cidade passa a ser tratada como uma entidade com problemas próprios, que advêm do seu crescimento desmesurado, onde se aglomera uma população cultural e socialmente muito diversificada, vinda cada vez mais de todo os cantos do mundo.
A ciência urbanística tem assim uma afirmação recente enquanto disciplina autónoma. Acidade, as teorias e práticas do planeamento urbano e territorial, passaram a ser entendidos como um campo de investigação e intervenção específicos, para o qual contribuem especializações variadas como a arquitectura, a engenharia, a geografia, a antropologia, a ecologia, a economia, o direito ou as ciências políticas.
O livro L’urbanisme, utopies et réalités é uma demonstração clara da importância do urbanismo no mundo contemporâneo. Menos conhecido entre nós que outros livros de Françoise Choay como a Alegoria do património ou A regra e o modelo, de datas posteriores, esta antologia centra-se no século XIX e até meados do século XX, e ilustra uma diversidade de abordagens possíveis, mostrando a continuidade das questões tratadas, e que ainda hoje permanecem actuais e problemáticas. Estaselecção de textos criteriosamente escolhidos, e normalmente pouco acessíveis, apresenta-nos de forma sintética as ideias e propostas de cada teórico através das suas próprias palavras, dando a conhecer a forma como são equacionados os problemas. Comenta Choay: «O urbanismo não põe em questão a necessidade das soluções que preconiza. Pretende uma universalidade científica : segundo os termos de um dos seus representantes, Le Corbusier, ele reivindica ‘o ponto de vista verdadeiro’. Mas as críticas dirigidas às criações do urbanismo são-no igualmente em nome da verdade. Em que se baseia este confronto de verdades parciais e antagónicas ? Quais são os paralogismos, os juízos de valor, as paixões e os mitos que revelam ou dissimulam as teorias dos urbanistas e as contra-propostas dos seus críticos?» (pág. 9).
Os autores apresentados são numerosos e diversificados, proporcionando uma panorâmica muito enriquecedora.A crítica severa à cidade existente é comum a todos eles, e destacam a preocupação e necessidade de ultrapassar as consequências mais gravosas em termos de deficientes condições de habitabilidade, salubridade, circulação viária, a que se junta a miséria e a degradação social. Encontramos descritas de forma breve várias soluções utópicas e propostas cuja concretização foi realizada (ainda que só parcialmente). A autora estabelece uma primeira distinção entre pré-urbanismo e urbanismo, que são ainda subdivididos em duas vertentes, uma de pendor progressista e outra mais vincadamente de carácter cultural. Distingue-as quer as preocupações fundamentais, quer os objectivos, como sejam a crença optimista de que o progresso e as novas tecnologias trazidas pela revolução industrial nos darão um futuro inegavelmente melhor, no primeiro caso, a que se contrapõem no segundo caso os valores da cidade tradicional, a importância da memória e do conhecimento histórico, que deverão ser mantidos e considerados a base para o desenvolvimento urbano futuro.
No quadro temporal definido, o pré-urbanismo descreve como deveriam ser as cidades, elaborando propostas urbanas utópicas, quer no âmbito social, quer formal, inspirando-se no método seguido na Utopia de Thomas Moore. Engloba as reflexões de Ruskin e Morris, assim como Robert Owen e New Lanark, Charles Fourier e o seu Falanstério com um modelo de habitação colectiva, ou a ‘Icaria’ de Cabet e a ‘Hygea’ de Benjamin W. Richardson. Os critérios de base funcionalista propõem desde logo como tema central a habitação-tipo – seja o edifício colectivo, ou a moradia com jardim ; também é importante a definição de distintos edifícios-tipo para cada finalidade : escolas, hospitais, fábricas. Curiosamente incluem-se também autores como Júlio Verne, Wells, ou Marx, a quem as questões sociais e urbanas também ocuparam.
A estes visionários iniciais seguem-se contribuições importantes, marcos fundamentais do urbanismo do século XX. Desenvolvendo uma perspectiva mais técnica sobre os problemas da cidade, não são incluidos os aspectos políticos, e valorizam-se as questões construtivas e de salubridade. São sobretudo obra de especialistas, os arquitectos.
Quanto aos culturalistas há uma continuidade entre o pensamento dos pré-urbanistas e dos urbanistas, o que não acontece com os progressistas. Temos as teorias de Camillo Sitte sobre as qualidades artísticas das cidades antigas e as propostas de Ebenezer Howard criando a ‘cidade-jardim’ – juntar aos benefícios da vida nas cidades o das vantagens da vida no campo, a tranquilidade, a salubridade e a beleza. Refere Choay: «O escândalo histórico de que partem os partidários do modelo culturalista é o desaparecimento da antiga unidade orgânica da cidade, sob a pressão desintegradora da industrialização.» (pág. 21).
Para os progressistas, as componentes técnicas inovadoras estão na base das suas propostas como na ‘Cité Industrielle’ de Tony Garnier (1904), ideias concretizadas depois em Lyon, e sobretudo com Le Corbusier e a ‘Ville Radieuse’, e o modelo da Unidade de Habitação, – que se apresenta como uma cidade-jardim vertical -, e a criação de Chandigarh. Uma referência importante é o grupo do C.I.A.M. (Congresso Internacional de Arquitectura Moderna), que estabelece em 1933 com a ‘Carta de Atenas’ os princípios do urbanismo do movimento moderno. Numa categoria separada, o urbanismo naturalista, surge Frank Lloyd Wright e a ‘Broadacre-City’ feita à medida dos grandes espaços americanos, e promovendo a civilização do automóvel e da mobilidade individual.
A evolução do pensamento urbanístico vive muitas vezes de contribuições diversificadas dos mais variados campos. Encontram-se por isso nomes fundamentais como Patrick Geddes,Lewis Mumford, Jane Jacobs ou Kevin Lynch, que através de uma perspectiva crítica das propostas e realizações urbanas dos especialistas, propõem novas metodologias de abordagem destas questões, enriquecendo-as com novos conceitos metodológicos e dando especial importância aos valores humanistas, desvalorizando os projectos com fundamentos unicamente técnológicos. Por último é dedicado um capítulo aos filósofos da cidade, exemplificados com textos de Victor Hugo e Martin Heidegger, entre outros.
Sendo a população a nível mundial cada vez mais citadina, sem dúvida que o aprofundamento das questões urbanas, entendidas como um processo contínuo de evolução das cidades, exige cada vez mais um conhecimento fundamentado e um saber adequado ao equacionar da grande diversidade de temas presentes. A síntese original que esta antologia nos proporciona é essencial para alcançar esse objectivo.
“Inspirado em Fourier, Godin construiu um Familistério em Guise, que ainda hoje existe ( www.familistere.com).”
Maria Helena Ribeiro dos Santos, abril 2013.
CHOAY, Françoise – L’urbanisme, utopies et réalités. Une anthologie.; Paris: Éditions du Seuil, 1965, 448 págs.