Entrevista
PARTE 1
PARTE 2
Filipa Ramalhete
framalhete@autonoma.pt
Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa (CEACT/UAL), Portugal | Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa (CICS.Nova)
João Caria Lopes
joaocarialopes@gmail.com
Atelier BASE | Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa (CEACT/UAL), Portugal
Para citação: RAMALHETE, Filipa; LOPES, João Caria – Entrevista à Marusa Zorec. Estudo Prévio 13. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2018. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI:
É com enorme prazer que hoje temos como nosso convidado o arquiteto e professor Nuno Mateus. Seja bem-vindo. E Queríamos começar por pedir que nos contasse um pouco do seu percurso académico, que professores que teve, exercícios de que se lembra…
Frequentei a Faculdade de Arquitetura mas o meu curso foi um curso de Belas-Artes, feito na antiga escola no Convento de São Francisco. Era um espaço marcante, muito interessante nos corredores longos e largos e não tão interessante nas salas de aulas. Para alguém que saía de um internato, de um espaço muito cheio de lógicas, era um lugar vago, onde eu me sentia particularmente perdido. Entrei na faculdade em 79 e saí em 84 e, na altura, a faculdade era um lugar muito pouco estimulante, que me despertava pouco interesse.
Não fui para Arquitetura com a consciência de que era o curso que eu desejava. Somos pressionados muito cedo para fazer uma escolha e, portanto, acabei por fazê-la. Fiz a escolha que me pareceu mais aproximada das coisas que gostava de fazer, trabalhos com as mãos, desenhar. Na realidade, tinha a sensação de que tudo me interessava, que poderia ter feito qualquer outro curso, e também não encontrei durante os anos de curso, um estímulo escolar particularmente sedutor. Era um destino, ao qual eu ia todos os dias, uma atividade que eu tinha encaixado numa série de outras que me interessavam. Vinha de um colégio interno – cheio de regras e onde a personalidade individual das pessoas é moldada aos interesses de um espirito coletivo. Estava cheio de vontade de fazer outras coisas, mas senti que, era responsabilidade minha tirar um curso. Creio que o tempo que veio a seguir correspondeu de certa forma à procura da minha individualidade, adiada pelo colégio, e das várias coisas que efetivamente me interessavam. Entre estas, o curso de arquitetura preenchia um espaço parcial, para não dizer residual. O que me interessava mesmo era o desporto, que praticava em alta competição. Tenho uma história muito pouco eloquente e motivadora para transmitir sobre o meu curso.
O professor que me marcou mais foi o Daciano Costa, no segundo ano, na disciplina de Desenho. Mais do que o conteúdo específico da disciplina, confrontei-me com a ética da sua relação com os alunos: procurava entendê-los na relação consigo próprios, numa espécie de desconstrução que se passava através do desenho. O Desenho passou a ser, a partir dessa altura, uma ferramenta mais direta e mais estruturante de uma relação de apego com o curso, que para mim, até aí, era muito vaga.
Nesse segundo ano, comecei a trabalhar no atelier do arquiteto Costa Pecegueiro, passei a ter rotinas de trabalho e isso foi fazendo de mim um aluno que, mais ou menos interessado nas cadeiras, cumpria com os trabalhos com uma certa facilidade. Comecei a ter uma relação com a arquitetura muito mais evidente. A minha relação com o curso passou a ser mais profunda e confiante, por sentir progressivamente adquirir o domínio dos instrumentos da Arquitetura. Nessa altura comecei a acompanhar as obras do atelier, que foi para mim muito importante porque percebia efetivamente o que estava a aprender e sua aplicação na vida real, e como é que afetava os outros. E isso foi uma experiência muito motivadora.
© João Carmo Simões .com – All Rights Reserved
Porque decidiste procurar trabalho durante o curso?
Basicamente por razões económicas, mas não só. Nasci numa família de classe média que passou dificuldades para pôr 4 irmãos a estudar e tirar cursos e sempre prezei muito a minha independência. Durante muitos anos trabalhei nas vindimas, em Portugal e mais tarde em França. O curso abria-me horizontes culturais para os quais eu não tinha capacidade económica, para comprar livros e viajar. Para mim, o trabalho era uma forma muito pragmática de poder ter acesso a outras coisas mas, obviamente, transformou-se também num bem de aprendizagem.
Há uma história engraçada que me contaste que tinha a ver com o primeiro salário que recebeste e com um livro especial…
Sim, o primeiro livro que comprei foi a Arquitetura Popular em Portugal, que comprei a prestações. Custou-me na altura 20 contos, que são hoje 100 euros. Era para mim uma quantia desmesurável, e paguei-o durante um ano. Houve outro livro especial, que comprei em Berlim, com o primeiro ordenado no Daniel Liebskind. Ele pagava-me emcash ao fim do mês e eu entrei numa loja de livros e estava à venda a Obra Completa de Le Corbusier, um bloco de livros fetiche de todos os arquitetos, mas que a quantia é sempre tão grande e desencorajadora. Entrei na loja com o dinheiro no bolso e não resisti, larguei-o quase todo e saí com o livro, com o bloco, debaixo do braço…com imensa dificuldade, porque aquilo é tão pesado! Nunca mais fui o mesmo…
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Trouxeste alguma experiência desse tempo em que estudavas e trabalhavas quando foste convidado para integrar a equipa fundadora de Arquitetura da UAL?
Depois de acabar o curso, continuei a trabalhar durante dois anos nesse mesmo atelier – do Costa Pecegueiro – que tinha muita encomenda habitacional, mas tinha num modelo de trabalho que com o tempo se tornou para mim repetitivo. Eu, na altura, também dava aulas na Faculdade de Arquitetura, como assistente estagiário no quarto ano, na altura com o arquiteto Guedes de Amorim. E, ao fim de dois anos, tudo aquilo me parecia insuficiente. Se em termos económicos tinha a vida estabilizada, percebi que não era o que eu queria. Viajava bastante (essa era a aplicação essencial do meu dinheiro), lia, via Arquitetura a um outro nível para o qual eu sabia que não tinha sido preparado e que me interessava procurar. Fui para a Universidade de Columbia, fazer um Master e depois trabalhei com o Eisenman em Nova Iorque e depois com o Libeskind em Berlim. Pouco depois de voltar a Portugal, fui contactado pelo grupo de arquitetos que viria a fundar o Departamento de Arquitectura da UAL – o João Luís Carrilho da Graça, o Manuel Graça Dias e o José Manuel Fernandes – que tinham uma vontade explícita de criar uma escola de Arquitetura especial, muito centrada na vertente profissional específica de certos autores. Nessa altura, já o meu atelier tinha uma pequena visibilidade, que resultava muito deste percurso de que acabei de falar e da experiência do meu irmão José Mateus.
Foi muito interessante ver nascer este projeto, hoje com 14 anos, e é muito interessante ver à distância como o projeto de se consolidou, ver que ainda tem o mesmo tipo de sonho, de objectivos e de ambições e ver alunos e professores igualmente empenhados, apesar do contexto de fragilidades em que estamos mergulhados, e que continuam, paradoxalmente, a insistir na sua permanência.
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Como professor tentas dar aquilo que não tiveste no curso?
Na escola procuro, com os alunos, antes de mais, compreendê-los como pessoas. Não consigo ver o arquiteto como uma pessoa que faz coisas. Para mim o arquiteto é um mediador ético entre a realidade física e uma reciprocidade comportamental e de usos. Procuro, o mais possível, operar segundo exigências de uma lógica eminentemente ética porque os estou a preparar para uma intervenção no futuro, nem sempre certo. Não trabalho virado para o passado nem reporto aos modelos que tive. Creio que esses modelos estarão incorporados, e transparecem, bem ou mal, na forma como a minha relação com eles se desenvolve. Também não procuro passar modelos fixos, para além da consciência da responsabilidade incontornável e abrangente do nosso trabalho. Procuro, um a um, construir algo que pertence a ambos, que estimule uma adesão e uma evolução real do aluno. Não faço cátedras, não passo pensamentos testados e fechados. Não me vejo como uma pessoa que tem uma determinada informação a mais do que o aluno, mas que tenho um enfoque, uma determinada forma de ver, que me faz aprender e que posso transmitir. Aprendo muito a ensinar, porque me força a pensar permanentemente sobre a forma como penso, trazendo para o plano do consciente aquilo que se passa no inconsciente ou no intuitivo, para poder trabalhar operativamente sobre a evolução do aluno.
Vejo que outros colegas ensinam de formas muito diferentes e isso estimula-me muito. Deixa-me dúvidas, faz-me optar por determinadas estratégias, muitas vezes na procura de uma complementaridade que abra o espectro das possibilidades de aprendizagem.
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Queres dar um exemplo de um exercício que tenhas feito? Por exemplo, o que estás a fazer este ano?
O quarto ano, onde estou neste momento a ensinar, é o primeiro ano do 2ºCiclo e antecede o fecho do curso – em que se faz um grande projeto com uma peça escrita que o fundamenta, num modelo multifacetado, desenhado, escrito, pensado e informado pelas várias especialidades, como o modelo profissional que se segue. O que fazemos no 4ºano é antecipar esse modelo e preparar os alunos o melhor possível, dentro dos constrangimentos, para uma aproximação realista e crítica à profissão, sempre com um forte sentido conceptual e cultural. Queremos que a relação entre escola e prática possa vir para dentro da escola, para que a escola não se afaste demasiado da prática mas fomentar, apesar de tudo, uma atitude para que a profissão seja vista como um lugar para sonhar. Muitos dos professores que dão aulas na UAL, continuam nos seus próprios gabinetes a fazer projetos extremamente estimulantes e isso é uma atividade muito exigente mas necessária, como vocês bem percebem.
Neste momento, no 4ºano, juntámos as várias cadeiras em torno de um desígnio comum que é a Cidade. Como no 5ºano o projeto é habitualmente feito na cidade de Lisboa ou no território nacional, nós usamos o 4ºano para ir fazendo projectos em várias cidades europeias e complementarmos através delas a compreensão da nossa cidade e da aprendizagem do nosso papel no mundo. No ano passado estivemos em Barcelona, este ano estamos em Amesterdão e o projeto passa-se ao longo dos dois semestres, encadeados nas escalas de abordagem. Temos a consciência que o nosso trabalho é territorialmente global – podemos vir a trabalhar para qualquer lado do mundo. Temos que desenvolver estratégias de aprendizagem para lugares que não conhecemos necessariamente à partida. Este ano estamos a fazer essa análise da cidade de Amsterdão através de maquetes de betão armado. Os alunos manipulam e apreendem o betão nas suas múltiplas formas, na conceção dos moldes, na sua capacidade plástica, na sua necessidade de ter armaduras, no peso. A sala é um laboratório, físico e químico da matéria, onde ocorre a experimentação que depois os vai acompanhar ao longo da vida.
No segundo semestre, o exercício centra-se na habitação, que é provavelmente o tema que todos pensamos conhecer bem e, por isso mesmo, é um tema que revela muito quando nos dedicamos a ele, com uma investigação mais profunda de modelos que respondam à evolução dos sistemas de vida contemporânea. Cada cidade é construída por modelos habitacionais específicos. Conhecer a casa ajuda-nos a entender a cidade. E, Lisboa, numa casa dos anos 40 era tudo muito compartimentado e socialmente segregado. Hoje a cozinha ocupa o lugar central do fogo das casas vernaculares, mas agora processado num novo modelo social. Cozinhar, está hoje no centro vivencial do agregado familiar, a cozinha é gourmet, é chic, e deixou de ser um espaço à parte onde as pessoas convidadas não entram, muito pelo contrário, é o ponto de encontro e partilha. Procuramos compreender o que é a casa hoje, com outras hierarquias e modelos.
Estes exercícios que descreves são muito contemporâneos e têm relação com o atual estado da profissão.
Estas experiências sobre as cidades europeias têm sido muito interessantes, porque para além da descoberta que encerram, desdramatizam, evidenciam e relativizam a especificidade do nosso território. A ideia de que nós vamos trabalhar para a nossa cidade é uma ideia que hoje não se coloca a ninguém. Hoje todos sabemos que fica mais barato ir a Barcelona do que ao Porto, por exemplo. E é pena porque gosto muito do Porto. Trabalhar numa outra cidade prepara os alunos para desenvolverem uma familiaridade do que seria outrora estranho. Chegamos a essas cidades, temos sempre algumas aulas numa escola de arquitetura local e procuramos que esses professores interajam connosco ao longo do ano. Os alunos são hoje cidadãos plenos do mundo e terão necessidades diferentes, em tempos diferentes em lugares diferentes, para as quais eles devem estar operativamente aptos. Esse à vontade perante um mundo mais amplo do que os problemas circunscritos à nossa cidade ou ao nosso país ou à nossa europa, cria um sentimento de liberdade muito apelativo, de grande otimismo e esperança. É preciso não embarcar neste drama psicológico de crise que envolve nesta altura a nossa atividade, extremamente castrante, que eu procuro evitar levar para as aulas.
A ideia do mundo estar aqui foi sempre procurada por ti. Quando acabaste o curso, fizeste um percurso interessante sobre vários países.
Os percursos que eu fiz, hoje, todos os miúdos fazem, não é? Fazem Erasmus, mais de dois terços dos meus alunos são estrangeiros, começam a procurar a Autónoma para fazer o 2ºciclo. Hoje somos cidadãos europeus – cidadãos do mundo. Creio que muitas das fronteiras desaparecerão, muitas delas já desapareceram informalmente. A muitos níveis, não temos evidências de estarmos aqui fechados e não vou ser eu que vou contribuir para isso. Os meus alunos já pensam assim e vão com muita naturalidade a outros países, eu ia com o maior dos receios. O mundo mudou muito nesse aspecto.
Como vês o fenómeno, de teres alunos de diferentes países, em paralelo com a ideia de um reforço de uma identidade da arquitetura portuguesa? Há um choque de culturas ou já não sentes isso nas novas gerações?
Nunca me interessou muito a participação na criação de uma suposta identidade da arquitetura portuguesa. A arquitetura existe e, em determinados lugares, ganha naturalmente determinadas formas, por um conjunto de razões, e é aí que eu opero: sobre as razões, nos fundamentos, nas leituras daquilo que poderá ser a base para a arquitetura num determinado lugar. E esse fenómeno é universal entre pessoas e especifico entre lugares e, provavelmente, programas. Até entre colegas, vejo que alguns aderem mais rapidamente à ideia da formulação de uma arquitetura portuguesa, como forma de identidade. É um fenómeno que eu recuso liminarmente, não me interessa essa ideia de branding da arquitetura (é uma leitura crítica que eu faço, provavelmente eles não veem as coisas dessa forma). Sou um profundo apreciador de múltiplas formas de arquitetura, desde que lhes encontre os fundamentos, as relações, os sistemas de relação cultural, geográfica, material, económico, humano. O nosso território é fenomenal desse ponto de vista, é mais aberto que as mentes de muitos arquitetos. Às vezes percorro países enormes em que há uma homogeneidade incrível, de norte a sul, da tipologia arquitetónica, dos sistemas contrutivos, da formulação da paisagem, etc, e nós, no nosso pequeno país, temos uma panóplia de relevos, de agriculturas, de arquiteturas, de tipologias, que é incrível! Tenho muita facilidade, a partir desse modelo polifacetado que é a nossa cultura, e de lidar com o específico. Talvez por isso, nós, portugueses, tenhamos tido tanto sucesso, quando nos pusemos a caminho – qualquer que tenha sido o caminho – e encontrámos formas de relacionamento, razoavelmente afins, nos quatro cantos do mundo.
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Essa visão aberta do mundo tem muito a ver com o início dos ARX Portugal?
A ARX Portugal, em primeiro lugar, convém referir o evidente, tem Portugal no nome. Quando voltei para Portugal, voltei deliberada e convictamente, porque pensei, com o meu irmão, que o nosso maior desafio estava em Portugal, apesar de não se querer restringir ao seu território como um fenómeno local. Ainda hoje, para qualquer português, o seu maior desafio será sempre em Portugal, onde tudo é cada vez mais difícil. Na altura – depois de ter estado tanto tempo fora do país – pensava “Quero afirmar Portugal de cada vez que fizer qualquer coisa”. E acho que, em Portugal, temos todos uma vergonha reprimida em sermos portugueses, temos vergonha qualquer do nosso país, não metemos a bandeira à porta de casa como os americanos (eu também não tenho). Temos contudo um país com pessoas extraordinárias a pensar e a fazer coisas, que me inspiram extraordinariamente – desde logo os arquitetos, mas também escritores, cirurgiões, engenheiros, médicos, músicos, etc. E nós celebramos, incentivamos e mediatizamos muito pouco o mérito e mediatizamos apenas as coisas mais absurdas (políticos, comentadores de futebol, novelas, jogos…). É pouco mobilizador, de facto.
Na altura em que fundámos o gabinete, os arquitetos e as arquiteturas eram sempre em primeiro nome, havia os mestres. E eu não percebia bem os mestres (provavelmente ainda não tinha instrumentos para isso), mas via que a arquitetura era feita por um conjunto muito alargado de pessoas, e eu não queria que a minha atividade tivesse o nome Nuno e Zé Mateus Arquitetos, porque sempre vi o arquiteto no centro de uma rede de saberes que convergiam para um determinado problema, num determinado lugar. ARX tinha uma brincadeira de palavras: Arquitetura, Textura e Texto. Textura nesse sentido de rede e Texto no sentido em que se escrevia e que se podia ler – construía-se algo que podia veicular informação. Não necessariamente um artefacto estético, mas um artefacto que, ao poder ser codificado e descodificado, se torna um veiculo de conhecimento e de interação.
Neste momento estamos a procurar trabalho fora do país e continuamos a ter o nome de Portugal colado ao ARX, constatamos amiúde que o nosso país é percebido – fora– como um cluster de pensamento na nossa área profissional, é visto como um lugar de excelência arquitetónica. O facto de ir o nome de Portugal adossado até tem um certo charme, para não dizer mais-valia. Resumindo, era uma reivindicação despersonalizada do autor e a afirmação do país como lugar perfeitamente viável e, pelo menos na altura, carente do nosso investimento na sua massa crítica, da nossa participação individual e da nossa responsabilidade de tornar o país mais plural, mais habitável…
Queres nomear algumas pessoas que são referências para ti?
No dia a dia da escola, todos os professores que estão ou estiveram ligados à UAL são pessoas que me estimulam imensamente e que, pela maneira como ensinam e produzem arquitetura, me forçam diariamente a fazer melhor do que fiz ontem, o que não é propriamente cómodo, mas que vejo como um privilégio!
Não consigo isolar referências, tenho tantas. Não tenho doutrinas. Consigo apreciar trabalhos com características muito diferentes, por razões distintas. Não consigo partilhar a ideia de muitos colegas, que estimo e admiro, de que há só o trabalho de um determinado arquiteto ou feito com determinados materiais, certas formas ou ângulos, etc…isso não me interessa para nada.
Contento-me imensamente com uma panóplia muitíssimo alargada de trabalhos. E não é por ausência de critérios, só não tenho um figurino. Poderia vestir casacos com muitos tecidos distintos, cores, forros, cortes, fechos e botões…, mas não deixaria de usar um critério na sua escolha. Como numa obra.
E ateliers de arquitetos mais jovens?
A nossa profissão é lenta. Estou a dar aulas há doze anos e conheço trabalhos de alguns alunos que já têm algumas obras bem-feitas – o caso do Miguel Marcelino, e que tem tido alguma mediatização.Também me vou cruzando com a Andreia Salavessa, que foi aluna de primeira leva da UAL, e que ganhou logo o Prémio Secil Universidades, o que foi uma alegria para nós todos, alunos e professores. Uma das maiores virtudes da nossa escola é esta proximidade cúmplice entre o corpo docente e discente. Vejo a UAL como um privilégio enquanto contexto de ensino e de aprendizagem. Não há ali muita gente acomodada. Há apenas ali uma energia permanente que converge especificamente naquele espaço e que eu sinto muito clara como professor. É óbvia para quem vem de fora.
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Falaste do atelierMOB (atelier da Andreia Salavessa) e o que pensas sobre, hoje em dia, o trabalho dos ateliers mais jovens já não ser o tipo de trabalho que tradicionalmente se achava que um arquiteto faria, cruzando muito mais áreas e disciplinas?
Um arquiteto é um ser multifacetado, tem uma educação que não é completamente humanística nem cientifica, combina estas duas grandes áreas do conhecimento, que se manifestam através da componente artística. Este é um modelo de formação extremamente complexo, que nos remete de certa forma para o Homem da Renascença. Por limitações naturais, somos uma espécie de especialistas de superficialidades diversas, e a nossa atuação adapta-se ao contexto dos problemas que nos colocam, do cliente, da obra…É certo que durante mais de duas décadas, pela nossa adesão à EU, apareceu muito um certo tipo de obra pública, museus, bibliotecas, escolas… No passado recente – e acho que a Trienal, nesta última edição (2013) também mediatizou muito essa via – temos falado muito, e se calhar em boa hora, da dimensão social da arquitetura, que no entanto penso que nunca esteve ausente das estratégias de trabalho dos arquitetos mais interessantes. Não só na arquitetura, mas numa série de outros campos, muito em consequência da violência do reajuste económico que atravessamos, essas questões estão a aparecer amiúde e, felizmente, o campo da arquitetura não é exceção.
Os médicos têm sempre doentes e os arquitetos também, porque os edificios continuam a adoecer e a ter de ser reparados. O edificado existente é um bem incontornável e carecerá sempre de intervenções inteligentes, com mais conhecimento, com durabilidade acrescida e maior incorporação de valor. O arquiteto educado consegue ler, relativamente ao património edificado, muito mais dimensões do que os construtores ou do que um dono de obra, por muito culto que seja. Consegue ver mais longe, não tenho a mínima dúvida, porque tem outros instrumentos. Tenho amigos que são extraordinariamente geniais no campo da música, ou da pintura, influentes a nível mundial e que, no campo da sua cultura específica têm um conhecimento de referência, mas depois passam para o campo ao lado (arquitetura) e parecem outras pessoas, que não abriram os mesmos livros e constatamos que o saber afinal é muito mais estanque! Arrisco a dizer que o arquiteto cruza mais saberes. Nós somos mais educados para saber sobre a limitação do nosso próprio conhecimento e da necessidade de ter de complementar esse saber noutras disciplinas, com outras pessoas. E um arquiteto, cada vez que mete um projeto numa Câmara, tem de meter mais uns quinze projetos e habitua-se a isso, por rotina. Habitua-se a que a sua cabeça por si só não chega.
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Assumindo essa transversalidade, onde a arquitetura processa o saber e depois o devolve transformado numa síntese que é mais do que os saberes indivualizados, não deixa de ser interessante pensar que, do ponto de vista da construção do saber sobre a própria arquitetura, há uma certa encruzilhada….
Sim, há um certo défice atual de autorreflexão. Parece-me que estamos tão virados para essa complementariedade dos saberes que nos esquecemos de refletir sobre o nosso próprio saber. Enquanto arquiteto, sou um ávido visitante de obras de outros colegas que aprecio. E felizmente há muitos. E percebe-se, através dessas obras, que há um saber acumulado em Portugal extraordinário – que está inscrito nos edifícios. Mas não está inscrito noutros meios de consulta, não está passado para outras formas de conhecimento, que são aquelas que nós estamos habituados a consultar quando estamos a aprender – não está escrito. Hoje os professores são todos pressionados para fazerem doutoramentos, para as escolas terem rácios aferíveis em Bolonha. Este facto tem acentuado a clivagem entre o meio académico e o profissional, afastando-os entre si. Forçam-se os arquitetos a saír das escolas de arquitetura, que se enchem de professores de assuntos estudados, fora do campo do projeto.
Quando confrontado com a pressão da tese, optei por desenvolver uma investigação sobre o meu próprio processo de construção de caminhos de pensamento para chegar aos edifícios que construí na ARX. Resolvi fechar o círculo entre a prática e a investigação. Usei a maquete, que é um instrumento de pesquisa que privilegio na UAL, e que é conhecida no meio académico, pela sua particular ligação metodológica ao objeto físico, ou seja da maquete como lugar de pensamento e de veículo dos próprios raciocínios. Comecei por fazer o levantamento, a reparação, enumerá-las, para, depois, passar a analisar que tipos de maquetes fazia. Porque uma coisa é estar no atelier, sob pressão, a fazer projetos e projetos, outra é pegar nas maquetes, constatar que se tem cerca de três mil, olhar panoramicamente e dissecar todo esse trabalho e passar essa reflexão a escrito para que pudesse ser partilhada.
O título da tese que ficou feita é “Taxonomia e operatividade do pensamento arquitetónico” e prende-se com duas questões: Taxonomia tem a ver com esse olhar analítico para as maquetes e agrupá-las em tipologias – maquetes de estruturas, de contexto, de detalhe, diagramas, etc; Operatividade no sentido de perceber qual a maquete que sucede à anterior e perceber como elas se autoalimentam e como é que o raciocínio evolui através da sucessão de escolhas.
A segunda parte do título é “Desenhar em maquete” e tem por base a ideia de que o desenho não se opõe à maquete mas que a maquete é em si mesma um desenho. Um desenho, no sentido em que o Siza fala de um “desejo de inteligência”. É um desenho tridimensional, não é a maquete como representação é a maquete enquanto forma, espaço e lugar de organização. Também é um objeto, e isso não é menos importante na tese – a questão de ser tridimensional, táctil, sujeito à gravidade e de materiais agregados de formas específicas – tem uma série de questões relacionadas com o fazer arquitetura, com outros materiais, com outras escalas mas sempre sujeitos à gravidade, à tridimensionalidade, à habitabilidade, ao estar exposto sob a luz.
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A ideia de fazer o doutoramento desta forma também é uma afirmação de que a investigação em arquitetura é mais do que a investigação em história de arquitetura ou urbanismo ou da investigação para um determinado projeto. Há mais caminhos?
Não tem havido, mas creio que a mudança de paradigma que se está a assistir na arquitetura, acompanhada pela explosão demográfica das escolas de arquitetura, virá necessariamente a produzir muitos outros modelos que espero que venham alimentar uma massa crítica maior, menos corporativa e defensiva, mais aberta e com menos preconceitos. Já tive a oportunidade de participar em seminários académicos internacionais de investigação em arquitetura onde constatei que o mundo de investigação a que uma boa parte dos intervenientes, ilustres académicos, estavam dedicados a assuntos que me pareciam extraordinariamente interessantes mas desviados do que é o mundo da arquitetura construída, habitada pelas pessoas, parte das cidades e sujeita às intempéries e inscrita na história da arquitetura à qual, modestamente me procuro dedicar com empenho. Foi para mim o estímulo que me faltava…
Qual é que a visão que tens para o futuro da ARX? E para a arquitetura em geral?
Claramente a dimensão internacional é hoje algo a que nos temos de dedicar profissionalmente, com o mesmo rigor metódico com que me dediquei até há pouco tempo ao doutoramento. Já estamos habituados a chegar a um lugar onde estão habitualmente instalados os ingleses e americanos, com a máquina da diplomacia, da economia e da defesa a funcionar em conjunto para que as empresas venham todas atrás operar. No que toca à nossa máquina operativa diplomática, chegamos a qualquer lado e deparamos com instituições que trabalham o status quo, muito desligados de toda a máquina económica-social em que estão inseridos. Quando as empresas lá chegam a pedir ligações a esses meios, o apoio é de uma debilidade tremenda, que deixa cada um por si…
Temos tudo para construir. Nós, arquitetos portugueses, quando estamos a trabalhar, temos logo um ónus do país de onde vimos: somos sempre vistos como vindos de um país com pouco rigor, que gasta o que não tem, que tem de ir pedir emprestado, que não se organiza… E a nossa atividade é lidar com projetos que envolvem quantidades de dinheiro muito significativas, trabalhos de grande envergadura organizativa que têm de ser entregues a tempo, dentro do orçamento, em tudo o contrário da perceção do país e isso cria naturalmente dificuldades acrescidas. E por isso quando arquitetos como o João Luis Carrilho da Graça, o Manuel e Francisco Aires Mateus ou o Gonçalo Byrne, começam a ter trabalho fora, têm-no com uma dificuldade tremenda! Se fossem suíços ou ingleses ou alemães tinham-no quantidades infinitamente maiores. Mas começa a haver muita gente a operar internacionalmente, muito pela força das circunstâncias em que estamos envolvidos em casa. O trabalho em casa, neste momento, está artificialmente comprimido. Chegará uma altura em que as pessoas se fartam desta compressão e o dinheiro recomeçará a circular e haverá necessariamente mais trabalho – demorará tempo, mas haverá sempre. Mas é bom que se perceba que o circular dentro e fora tem de ser natural, já passou a ser natural há algum tempo dentro das escolas de arquitetura que assimilaram plenamente o fenómeno Erasmus, e a maior parte dos ateliers têm trabalho dentro e fora, para já talvez com maior expressão nos PALOP, mas chegará seguramente o tempo que passará a ser natural noutros territórios.
Em 74 deixámos de ter colónias – tínhamos o país todo virado para fora onde se fez muita da nossa melhor arquitetura e, a partir daí, fechámo-nos aqui dentro, sob um fluxo financeiro constante vindo da Europa que nos permitiu estarmos aqui umas décadas entretidos paulatinamente a fazer também muita arquitetura de grande qualidade. De repente, fecharam-nos isso tudo e estamos todos a fazer o esforço que naturalmente mudará o paradigma! Não é isento de dor, mas, claramente, para mim, isto terá necessariamente um futuro mais aliciante.