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Álvaro Siza (1933- )

 

Para citação: SIZA, Álvaro – O 25 de Abril e a transformação da cidade. Estudo Prévio 20. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2022, p. 90-92. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/20.18 Publicado a partir de Revista Crítica de Ciências Sociais n.º 18/19/20, fevereiro de 1986, p. 37-40.

Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

O 25 de Abril e a Transformação da Cidade

Conservar a cidade – inverter a cidade. Cidade projectada – cidade espontânea. Tradição – inovação. Desejo – qualidade. Responsabilidade do projectista e cidade como construção colectiva. Processos de participação: renascimento ou fragmentação.

Falo na condição de arquitecto, e da condição de arquitecto; falo da transformação da cidade, lugar por excelência da Arquitectura – face a uma súbita mudança.

1. O 25 de Abril tornou possível a intervenção de movimentos populares de luta pela casa e pelo direito à cidade, movimentos durante muitos anos controlados: reprimidos.

Para os arquitectos, abriu um campo vasto e urgente de projecto, fundamentado na participação directa e diversificada das populações.

Poucos responderam a essa chamada, pela precaridade das condições de trabalho, comprovada até à exclusão e inquérito, de resultados desconhecidos.

Para os que aceitaram a encomenda – profissionais, estudantes e estagiários – a adaptação às novas condições criadas foi difícil e também inesquecivelmente estimulante.

Deste período de trabalho, em clima de entusiasmo, conflito, solidariedade e ambiguidade, conheço alguma coisa do que se passou na cidade do Porto.

Podemos dizer que existiam e existem ainda duas cidades: a aparente e representativa e a cidade escondida dos interiores de quarteirão, dos pátios e das ilhas: Esta é a cidade marginalizada, tolerada porque indispensável ao seu

desenvolvimento, a cidade que o regime não conseguira dispersar, pelos escassos meios à disposição e pelo objectivo dos programas: construção de pequenas unidades de habitação periférica, de regulamento e controle fascistas.

Nestas unidades, e pela dura experiência de nelas viver, despertou o movimento reivindicativo pelo direito à habitação e à cidade. Esse movimento ganhou dimensão e influência, ao comunicar-se às populações das áreas degradadas do centro histórico e do anel envolvente; e para isso contribuíram laços de antiga vizinhança, reforçados quando pontualmente cortados.

2. A crise latente da Arquitectura e da Cidade contemporâneas, que o desenvolvimento europeu dos anos 50-60, e com ele o mito da invenção e o optimismo pouco convencido, não conseguiram ocultar, face a pequenas mas prestigiadas reacções, encontrou em Portugal, depois do 25 de Abril, o clima de sobressalto, análise, abertura, experiência, transformação, receptividade e proposta que até então faltara. Em larga escala e também em curto instante.

Diferentes reacções, de difícil ajustamento, nasceram do encontro com a arquitectura popular – não a tradicional, anónima e sabiamente adaptada a um meio geográfico e social de lenta transformação, mas a resultante da violenta ruptura do pós-guerra, entre nós tardia, mas igualmente intensa, das carências, da revolta e do desejo antiquíssimo de beleza e de conforto. A súbita revelação de fragmentos dolorosamente belos ou desajeitadamente copiados, em contraste com a cinzenta e distante prática profissional, explicam em Portugal o repentino alinhamento com as tendências europeias, desencadeadas por mais lentas e experimentadas vias, e que se traduzem:

a) Numa crítica ao uso do património disciplinar, considerado purista e elitista na sua prática «moderna», e na apressada procura de uma espontaneidade perdida, em termos reais rara ou inexistente.

Esta tendência proclama-se dos valores lúdicos da Arquitectura, também da História, quase sempre encarada como neutro depósito de formas.

b) Numa descida às raízes do Movimento Moderno, naturalmente interminável, e por isso mesmo limitada a algumas referências de menor risco.

Nos dois casos, uma incapacidade (que coincide com um convite generalizado, quando não imposição) em mergulhar no interior dos movimentos e da transformação da cidade, exteriores a níveis de decisão onde a participação directa raramente acontece, ou só tarde, ou com deficiente informação; e que por isso a eles se sobrepõem, sendo determinantes em Portugal, como é visível.

Incapacidade talvez inevitável.

Um processo de participação move-se entre conflitos, tensões, choques, entrega, saltos, paragens; compreende erros e também a sua crítica; acumula experiência; tende à globalidade.

Pouco tem a ver com a apaziguadora noite de burocracia em que se vem transformando, um pouco por toda a parte onde ainda ou já existe, ou com o processo de fragmentação da cidade em bolsas de preservação, de participação, de qualidade, de permissividade.

Pouco tem a ver com tendências de Arquitectura em circuito interno, e com as suas diferentes combinações e doses.

Momentos de um processo criativo de participação aconteceram em Portugal, depois do 25 de Abril. E por isso se verificou o único instante de interesse internacional significativo pela Arquitectura Portuguesa, pelo menos do meu conhecimento, e em contemporaneidade.

Não creio distorcer a realidade, ao afirmar que esse período criativo participado, de exteriorização da cidade escondida, num percurso da casa pobre ao Plano, quase não tem seguimento; e que se volta a privilegiar a dócil e atrasada importação de modelos, incluindo os mascarados de irreverência.

3. Esta é a condição em que actua o arquitecto, responsável de 3% do que se constrói em Portugal, de aproximada­ mente 10% na cidade do Porto.

Nesta condição, o arquitecto não pode actuar (participar) imitando a espontaneidade que não tem; nem fechando-se numa produção supostamente erudita, quando a transformação da Arquitectura e da Cidade sempre assentou no cruzamento, mestiçagem, inovação e continuidade, procura de resposta aos problemas do quotidiano e ânsia de aventura.

Da atenção e da intuição retira a Arquitectura legitimidade, como disciplina e como linguagem.

De momento, a arquitectura dos 3% não pode ser senão radical, não pode parecer senão distanciada.

Do rigor do arquitecto só pode resultar demarcação da caótica e também estimulante transformação clandestina.

Nesta transformação se há-de perder ou encontrar, pois rigor compreende a sua observação, indignada e maravilhada, até à permeabilidade espontânea.

Apetece-me terminar parafraseando Vargas Llosa, quando fala de Literatura: a Arquitectura desaparecerá, quando a Humanidade for feliz.

Até lá, a responsabilidade mantém-se.

 

Porto, 7 de Dezembro de 1984