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Raul Hestnes Ferreira (1931-2018)

 

Para citação: FERREIRA, Raul Hestnes – O 25 de abril e os arquitectos. Estudo Prévio 20. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2022, p. 78-81. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/20.11 (ed. original Le 25 Avril 1974… et les Architectes, L’Architecture d’Aujourd’Hui, nº185, Mai/Juin, 1976). Publicado a partir de RODRIGUES, José Manuel (ed.) – Teoria e crítica de arquitectura século XX. Lisboa: OA-SRS, Caleidoscópio, 2010, p. 657-659.

Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

O 25 de Abril e os Arquitectos

Dois anos após a revolução do 25 de Abril, não se pretende abordar os “faits divers” mas compreender o significado destes acontecimentos para o futuro de Portugal.

O que caracteriza este período, é o carácter espontâneo da participação popular que tomou a forma da democracia directa, chamado primeiro Poder Popular e de seguida retomada na Constituição sob o termo mais restritivo de Poder Local.

Milhares de pessoas participaram assim nos assuntos públicos e a aprendizagem da gestão democrática passou pela expressão individual e pela contestação mútua que favoreceu a formação de grupos de decisão cada vez mais restritos – os conselhos de bairro rapidamente foram substituídos pelos conselhos de rua, que, à sua volta, foram suplantados pelos Comités de prédios… Este processo de atomização teve o aspecto positivo de permitir uma identificação precisa dos problemas e de encontrar soluções concretas. Os próprios partidos moderados não conseguiram impedir os seus militantes de participar no trabalho das comissões populares. Os partidos que reclamavam uma ideologia de esquerda pensavam, no seu entusiasmo, que um futuro “socialista” podia decorrer largamente de uma organização democrática tão amplamente fundada na participação.

Sem querer mitificar um processo que não conseguiu penetrar totalmente nas zonas urbanas nem nos meios rurais dispersos, devemos reconhecer que estas acções permitiram reencontrar esse gesto esquecido, ou por vezes ignorado em Portugal: o voto.

Actualmente, ainda que a prática da democracia directa, que permite delegar poderes reais nos seus vizinhos ou nos seus companheiros de trabalho, esteja a perder velocidade, sobrevive às crises mais graves. Neste clima geral, qual foi o papel dos intelectuais, dos arquitectos em particular?

Que Arquitectos?

Como profissão liberal, os arquitectos antes do 25 de Abril, gozavam de uma posição relativamente favorável, graças à especulação fundiária incentivada pelo governo de Caetano, e cujo instrumento privilegiado era as grandes agências de arquitectura e de planificação urbana.

Nestas condições, é fácil compreender que a revolução do 25 de Abril foi sentida duramente pelos mais privilegiados do grupo (os mais comprometidos com o regime) que foram obrigados a uma fuga precipitada para o Brasil. Para os outros, que perderam as suas principais fontes de rendimento com o desaparecimento das encomendas privadas, a situação tornou-se temporariamente penosa enquanto esperavam que as encomendas públicas tomassem fôlego suficiente.

Muitos arquitectos conservaram uma certa nostalgia das suas posições tradicionais, nomeadamente o grupo de arquitectos tecnocratas que tinha beneficiado da influência dos grandes gabinetes de estudo criados para as realizações de pretígio de Caetano. Esta nostalgia transformou-se progressivamente em oposição activa ao novo regime e traduziu-se em acções destinadas reconquistar as suas situações privilegiadas.

Mas preferimos debruçar-nos mais longamente sobre os que têm participado nos acontecimentos destes 2 anos, mais ou menos activamente e sob diversas formas, os que tentaram encontrar uma certa coerência entre a sua prática e o sentido político e social da revolução. Alguns, como Teotónio Pereira, preso antes do 25 de Abril, comprometerem-se totalmente na acção política e abandonaram toda a prática para se tornarem líderes revolucionários.

Outros, representando todas as gerações, escolheram intervir na nova administração, e tomaram frequentemente posições de responsabilidade importantes tanto ao nível governamental como municipal. Tradicionalmente considerados como “artistas” irresponsáveis, os arquitectos não eram aceites na administração anterior. Desde o 25 de Abril, os arquitectos que tivessem feito prova de espírito crítico ou que eram conhecidos pelo interesse experimental do seu trabalho foram chamados a sentar-se ao lado “dos políticos” e puderam resolver os grandes problemas de interesse geral.

Sem querer fazer um juízo de valor sobre os resultados da acção dos arquitecto no poder, podemos notar que correspondem mais a estratégias individuas ligadas a certas forças de esquerda do que a uma política global definida com os grandes partidos.

No entanto, o papel destes arquitectos foi considerável dada a importância do sector da construção na economia portuguesa.

A personalidade mais notável chamada ao governo como secretário de Estado do Urbanismo e da Habitação, foi certamente Nuno Portas, arquitecto que durante muito tempo foi associado a Teotónio Pereira, especialista em problemas de habitação no Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) e professor na Escola de Arquitectura de Lisboa. A sua colaboração regular na revista “Arquitectura” e as suas tomadas de posição críticas na Televisão sobre os problemas urbanos, já o tinham tornado conhecido antes do 25 de Abril tanto em Portugal como no estrangeiro. Portas, interveniente com base numa esquerda alargada, chamou os melhores arquitectos portugueses e estrangeiros para apoiar a sua acção. Fixou como objectivo lutar contra a especulação fundiária apoiando-se na nacionalização dos Bancos e das Companhias de Seguros que possuíam importantes reservas fundiárias, alargando o congelamento das rendas e fixando normas que implicavam custos de construção e taxas de lucro controladas.

No domínio do urbanismo, Portas anulou quase totalmente as medidas de planificação do território, decididas antes do 25 de Abril (o que teve certo efeito negativo sobre as previsões de equipamento) e substitui-as por programas limitados em escalas reduzidas. Apesar da conotação autoritária de que se revestiam as acções dos governos de esquerda, houve uma descentralização real do poder de decisão em matéria de urbanismo e construção. Esta fragmentação do poder que teria tido efeitos positivos na perspectiva de uma transformação da sociedade para o socialismo, tende de facto a favorecer um regresso em força à especulação.

Outros programas lançados por Portas, como os SAAL e os Ateliers municipais permitiram, apesar das discussões de que eram objecto, proceder a uma aproximação entre o arquitecto e o habitante utente, e encarar um tipo de prática arquitectural novo.

Os estudantes desempenharam um papel de ligação importante em todo o processo, porque foram eles, a nível das lutas revolucionárias, os primeiros a entrar em contacto com os habitantes dos pardieiros e dos bairros de lata, e que chamaram de seguida os arquitectos que julgavam mais capazes de compreender as necessidades das populações a intervir nas comissões. O financiamento das equipas de arquitectos foi feito através na transferência dos créditos afectos às operações de prestígio de interesse regional nos municípios, para os trabalhos efectuados sob a sua alçada. Alguns arquitectos conhecidos como Vieira de Almeida, demonstraram um verdadeiro compromisso cívico deixando Lisboa para oferecer os seus serviços aos municípios rurais mais isolados.

Após dois anos, é certamente difícil elaborar um balanço objectivo dos resultados da acção dos arquitectos; no entanto, podemos desde já afirmar que os habitantes aceitaram facilmente o papel do arquitecto na sua especificidade técnica. Em contrapartida, foram muitas vezes considerados como supérfluos e paternalistas quando punham em primeiro lugar a sua “missão” política e ideológica: na prática concreta é a sua qualidade de arquitecto que era apreciada, ainda que as realizações fossem conduzidas sobre bases políticas. Nestas condições, os arquitectos foram frequentemente obrigados a fazer uma crítica permanente às suas próprias práticas e adaptá-las às novas condições objectivas.

 

Que Futuro?

O futuro da profissão de arquitecto em Portugal está directamente ligada à evolução política e social em curso, mas depende também da forma como os arquitectos exerceram o seu papel de administrador ocasional e de projectistas em interacção com a sua ideologia. Agora que a esperança louca cedeu o lugar a um realismo ligeiramente míope, podemos prever o regresso a uma prática profissional bastante semelhante à que existia antes do 25 de Abril. Por outro lado podemos facilmente perceber os sintomas de uma mudança imposta pelas novas relações com os industriais da construção europeia que começam a investir em Portugal, o que significa um reforço do poder dos gabinetes de estudos técnicos e uma concentração das grandes agências de arquitectura que se tornarão um simples prolongamento da indústria.

Apesar das contradições internas e a diversidade de posições profissionais e políticas que minam o meio da arquitectura, podemos discernir os sinais de um potencial crítico muito agudo mas que, infelizmente, não se traduz ainda em acções coerentes, eficazes e lúcidas. Uma grande parte dos profissionais comprometidos em programas saídos da revolução do 25 de Abril, pôde tirar as lições de uma experiência absorvente e dificil mas que lhe permitiu também entrever novas potencialidades para um exercício profissional diferente e preparar-se para combater um regresso provável às práticas absurdas impostas pelo poder.

Dois anos passaram. É difícil no momento actual reconhecer o ambiente forte e alegre que presidiu ao nascimento de uma revolução destinada aos desfavorecidos. As dificuldades internas e externas que o país enfrenta levam-nos de volta ao Portugal antigo. Mas não perdemos a esperança, brevemente entrevista, de uma sociedade mais justa, aqui ou em qualquer lugar da Europa, na qual uma prática arquitectural regenerada pela participação popular fosse possível. A história adormeceu para regressar ainda mais forte.

 

[1]. Por razões editoriais, não são publicadas as imagens que acompanhavam este texto.