Paulo Moreira
moreirapaulo@gmail.com
Arquiteto e Investigador, bolseiro de pós-doutoramento do projeto Africa Habitat, sediado na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, Portugal, financiado pela FCT e AKDN (programa Knowledge for Development Initiative), Portugal
Para citação: MOREIRA, Paulo – Pensar a Cidade Informal, Introdução ao Dossier. Estudo Prévio 19. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2021, p. 18-21. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/19.1
Artigo recebido a 01 de outubro de 2021 e aceite para publicação a 05 de novembro de 2021
Creative Commons, licença CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/
Pensar a Cidade Informal
As cidades sempre acolheram populações ‘ricas’ e ‘pobres’, e sempre contiveram diferentes zonas com carateres distintos. A este respeito, são muitas as cidades onde os mais desfavorecidos foram sendo progressivamente empurrados para as periferias, a bem de uma cultura global homogeneizada. Numa época em que o pensamento sobre a cidade tem tendido a aceitar e compreender os bairros pobres e segregados, em vez de ignorar ou erradicá-los, a ânsia de novos discursos e experiências no terreno está a tornar-se cada vez mais urgente. É essencial que os arquitetos e investigadores abordem o tema, para que este fenómeno global comece a ser caracterizado como uma forma viável de urbanidade. Este dossier oferece uma reflexão prática e teórica sobre o tema, no campo de arquitetura.
Os estudos urbanos recentes, especialmente aqueles que abordam as cidades informais, têm sofrido demasiadas generalizações. Aqui, no entanto, convoco a importância de prestar especial atenção às condições específicas de cada lugar. Diferenciações geográficas devem ser tidas em conta não só entre continentes (África, Ásia, Europa, etc.) ou regiões (África subsaariana, América do Sul, por exemplo), mas também a uma escala mais local (bairros específicos, ou partes de bairros). Desta forma, passaríamos a abordar a cidade do particular para o geral – a especificidade de um edifício ou de um bairro seria constantemente colocada no seu contexto urbano mais alargado. Consequentemente, projetos ou trabalhos de investigação sobre bairros informais tornar-se-iam mais do que meras explorações da arquitetura informal. Em vez disso, seriam contributos para compreender as cidades em toda a sua intensidade.
Parece-me que se não percebermos o contributo, ou potencial contributo, da cidade informal em todo o mundo, então estaremos a negligenciar o conceito de urbanidade “híbrida”, e mantendo uma conceptualização segregacionista da cidade “formal” versus os seus “bairros de lata”. Jennifer Robinson classifica este tipo de cidades simplesmente como “ordinárias”:
“Precisamos de uma forma de teorizar que seja tão cosmopolita como as cidades que tentamos descrever. Falo de um tipo de teoria urbana que siga os trilhos dos urbanitas – nas cidades e no mundo – à medida que eles recriam as cidades e tiram partido do potencial transformador da vida em comunidade em cidades diversas, disputadas – ordinárias – para imaginar novos futuros urbanos.” (ROBINSON, 2006: 3)
A base para perceber os bairros informais e segregados é ler as cidades como territórios de diversidade. Este dossier é um apelo aos arquitetos e urbanistas que prestem particular atenção à heterogeneidade da própria sociedade, tornando os métodos recorrentes nas ciências sociais relevantes para quaisquer ações arquitetónicas (JACOBS, 1961; INGOLD, 2013). Este entendimento é um contraponto ao discurso de certos arquitetos e urbanistas, que tendem a encerrar as suas práticas dentro das fronteiras disciplinares, tal como tendem a dividir a população em grupos simplificados, desvalorizando as virtudes da diversidade cultural e social da cidade.
Para começar, a análise destes complexos ambientes urbanos deve procurar evitar termos que adquiriram conotações pejorativas, tais como slum. Na prática e literatura recente no campo da arquitetura, este termo evoluiu e “cidade informal” é mais vulgarmente usada, embora as conotações negativas não tenham desaparecido na totalidade. Barry Bergdoll, antigo curador-geral de arquitetura e design no Museu de Arte Moderna (MoMA) em Nova Iorque – onde foi responsável pela exposição e publicação Small Scale, Big Change: New Architectures of Social Engagement (2010-11) –, reconhece que “os últimos quarenta anos têm visto um crescimento dramático daquilo a que se convencionou designar “cidade informal”, termo que se esperava que substituísse a conotação negativa de slum” (BERGDOLL, 2010: 12). Ao debater-se este tipo de contextos urbanos, advogo o uso de palavras locais como bairro ou musseque – este pode ser um passo para evitar as (habitualmente negativas) generalizações tais como slum ou “cidade global”.
Outro modo de abordar o tema da cidade informal é olhar para além da sua forma construída, captando a sua formação sociológica e a natureza transitória da sua população. Um dos estudos que melhor enquadra este estado de urbanidade é Arrival City (2011), de Doug Saunders. O autor reconhece a dificuldade de definir uma variedade de lugares em termos únicos e totalitários:
“Uso a expressão ‘cidade de destino’ para unir estes lugares, porque a nossa linguagem convencional académica e burocrática (…) desvirtua-os por encobrir a sua natureza dinâmica e transitória.” (SAUNDERS, 2011: 19)
A meu ver, temos que desenvolver entendimentos plurais de um tipo de arquitetura e cultura urbana que permanece sub-representado. Devemos perseguir uma contra prática que transgrida os limites das narrativas dominantes que defendem modelos económicos, políticos e morais questionáveis. O tipo de arquiteto que advogo aqui, que atua para lá dos conceitos limitadores da própria arquitetura, é descrito por Justin McGuirk como o “arquiteto-ativista”. Em Radical Cities, o autor disseca as metodologias empregues por estes profissionais:
“Os ativistas são cautelosos. Observam as condições, acumulam dados, e depois experimentam. Os modernistas começaram com bulldozers; os ativistas começam com um protótipo. (…) Este pode tornar-se numa das mudanças fundamentais no carácter dos arquitectos no século XXI. Têm que criar redes. Do mesmo modo que precisam de aliados políticos, precisam aliar-se com comunidades locais. (…) Para trabalhar pelo interesse da comunidade, precisam de ter os cidadãos do seu lado, porque o tempo em que se dizia às pessoas o que era bom para elas já terminou.” (McGUIRK, 2014: 32-33)
Este Dossier da revista EP – Estudo Prévio procura mostrar que esta abordagem pode iluminar o campo da arquitetura, de muitas formas. Revelam-se modos de olhar e atuar perante a cidade dita ‘informal’. Iniciamos o Dossier com uma entrevista rara e generosa à arquiteta-urbanista, investigadora e professora Isabel Raposo, conduzida por mim e pelo arquiteto Gonçalo Folgado. Convidámos a iniciativa Outros Bairros para refletir sobre o trabalho inspirador que tem desenvolvido em Cabo-Verde, que irá tornar-se certamente numa referência para as práticas e políticas urbanas em cidades africanas de língua portuguesa, e mais além. Com o arquiteto e investigador angolano Osvaldo Braz e com Isabel Raposo, mergulhamos no urbanismo de contrastes da cidade de Luanda. Por último, diretamente do Brasil, a arquiteta-urbanista Lara Isa Costa Ferreira traz uma sugestão de leitura essencial para quem, como nós, se interessa pelos estudos urbanos. Com estes testemunhos, esperamos contribuir para a construção de novos vocabulários e modos de pensar a cidade informal.
Bibliografia
BERGDOLL, Barry – Introduction. In LEPIK, Andres (ed.) – Small Scale, Big changes: New Architectures of Social Engagement. New York: Birkhauser / The Museum of Modern Art, 2010.
INGOLD, Tim – Making: Anthropology, Archaeology, Art and Architecture. New York: Routledge, 2013.
JACOBS, Jane – The Death and Life of Great American Cities, New York: Random House, 1961.
McGUIRCK, Justin – Radical Cities: Across Latin America in Search of a New Architecture. London / New York: Verso, 2014.
ROBINSON, Jennifer – Ordinary Cities: Between Modernity and Development. London and New York: Routledge, 2006.
SAUNDERS, Doug – Arrival City: How The Largest Migration in History is Reshaping Our World. London: Windmill Book, 2011.
Paulo Moreira é arquiteto e investigador, sediado no Porto. Licenciou-se pela FAUP em 2005 e doutorou-se pela London Metropolitan University em 2018. Co coordena o Observatório da Chicala, projeto de investigação sediado no Departamento de Arquitetura da Universidade Agostinho Neto. É bolseiro de pós-doutoramento do projeto de investigação Africa Habitat, sediado na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, financiado pela FCT e Aga Khan Development Network (‘Knowledge for Development Initiative’ programme). www.paulomoreira.net / chicala.site