Carlos dos Santos Duarte (1916-2019)
Para citação: DUARTE, Carlos S. – Perspectivas e limites da Nova Dimensão. Estudo Prévio 20. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2022, p. 47-60. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182-4339/20.7 Publicado a partir de Arquitectura, n.º 84, novembro 1964, p.157-158.
Perspectivas e Limites da Nova Dimensão[1]
Quelle est l’année la plus proche de nous? 1900 ou 2000?
Interroges les gens dans la rue; la plupart répondent 1900.
Jacques Bergier
Cada novo ciclo cultural inicia-se em regra a partir da Crítica das realizações anteriores e de negação polêmica dos princípios que justificam. Os novos descobrem, em geral, muitas virtudes nas gerações passadas, pouquíssimas na geração anterior. A este respeito Corbusier e Gropius devem sentir-se amplamente compensados. Viveram o bastante (como Wright antes) para serem entendidos e apreciados pelas gerações seguintes. Porque mais do que o neo-racionalismo de que alguns falam, trata-se antes hoje de relembrar, porque actuais, quer dizer, porque vindos a responder às convicções e aspirações das gerações mais novas, muitos dos ensinamentos destes dois mestres da arquitetura moderna – nas obras, na acção didática, na atitude moral.
A razão desta revalorização – não isenta, de resto, de grandes reservas – justifica-se através de um conjunto de circunstâncias, em que sobressaem as que se ligam mais directamente às condições particulares da actividade profissional de alguns países, melhor dizendo, do sentimento de frustração (traduzido embora numa invejável lucidez crítica) quando a modéstia dessa actividade é avaliada no confronto com o que se crê poder e dever ser a acção do arquitecto na sociedade contemporânea. Não admira também sejam os jovens arquitectos italianos (como antes o foram os jovens “brutalistas”, na Inglaterra sob governação conservadora) os que mais agudamente acusam as contradições actuais: porque a Itália é um dos países onde a actividade teórica no campo da arquitectura mais brilhante se tem revelado e onde a actuação real, num sector particular, mas de importância vital – o do urbanismo – mais frustrada tem sido. Mesmo em projecto, Cambernauld, Farsta, Toulouse-le-Mirail ou o plano de Languedoc não têm correspondentes em Itália e ninguém que conheça razoavelmente as grandes cidades daquele país deixa de se impressionar com o caos urbanístico que lá reina.
A “nova dimensão” que os jovens arquitectos italianos hoje nos propõem é, assim, naturalmente, uma dimensão urbanística, por oposição à dimensão “habitacional” dos “quartieri” pobres para gente pobre da INA-CASA… Mas é mais fácil ultrapassar (ou ignorar) as ideologias “comunitárias” e “regionalistas” do que estabelecer os termos rigorosos de uma nova arquitectura. A arquitetura, todos são concordes, faz-se com projectos, com obras. Por isso, hoje, na impossibilidade de os fazer, multiplicam-se os projectos experimentais, as utopias figurativas da cidade nova, os concursos de ideias arquitectónicas.
Com razão, Francesco Tentori (“Casabella” 289, dedicada aos trabalhos dos jovens arquitectos de Roma), distinguia nestas, entre as utopias figurativas e as utopias positivas e pronunciava-se pela necessidade do aprofundamento científico dos vários campos disciplinares do “urban design” pela tradução sem sérios trabalhos de projecto dos temas da Nova Dimensão. A propósito notava o desequilíbrio entre a actividade teórica e a prática realizadora naquele país, que no seu melhor se tem confinado à escala dos “quartieri rezidenziale”, num processo de adição de unidades periféricas ao tecido urbano cujas causas (políticas) e os efeitos (urbanísticos, económicos, de vivência social e humana) os nossos colegas italianos com frequência vêm denunciando.
Mas que pretendem, afinal, os defensores da “nova dimensão”? A acreditar em Carlo Aymonino, no mesmo número de “Casabella”, o fulcro dessas propostas residiria na adoção de uma nova metodologia de trabalho (e antes desta, como se sabe, numa dimensão programática e operacional ampliada à escala da cidade-território e dos grandes conjuntos urbanos. Essa metodologia reivindica principalmente a formulação de “hipóteses” iniciais de carácter arquitectónico, tomadas como pré-figurações da organização espacial e plástica do conjunto na imagem concreta das suas três dimensões.
Aparentemente, este princípio só parece admissível se o arquitecto for apoiado desde início pelos muitos especialistas aptos a informá-lo quanto a aspectos particulares dos programas, gama vasta que incluirá, nalguns casos, responsáveis administrativos e das várias entidades interessadas no empreendimento, economistas, sociólogos, médicos, pedagogos, engenheiros de várias especialidades, enfim, todos os participantes, mesmo se a título puramente informativo, num plano de urbanismo. E assim terá que ser, se o arquitecto não quiser ser simplesmente o autor de uma fantasia figurativa, ràpidamente posta em causa, e decerto destruída nas suas intenções estéticas pelas realidades do meio em que resolveu não se meter.
A estas possíveis objecções Aymonino responde o seguinte: “Interpretando o projeto como um programa, será forçosamente reexaminada a questão da tipologia construtiva (em todos os casos “arquitetónica” ou só em parte?), e entrevista uma ampliação de intervenções da arquitectura (a nova dimensão?), na cena urbana: que possa modificar e redimensionar aquilo a que hoje chamamos “as relações interdisciplinares entre a arquitectura e urbanismo” para transformá-las em relações dialécticas entre o planeamento (programa) e o projecto (arquitectura), condicionados reciprocamente. “A grande complexidade da vida actual – prossegue Amonino – exclui uma escala hierárquica definida e o projecto pode ser entendido como um processo contínuo, verificando-se a níveis diversos, com intervenções diversas e sobretudo com objetivos de projecto (entendidos como conhecimento e fantasia) diversos”.
Obviamente, a intenção principal consiste em vencer o fosso habitual entre a actividade do urbanista e do arquitecto, negando o papel daquele ou empossando este de parte importante das suas funções; ultrapassam-se assim os esquemas de organização tradicional do zonamento bidimensional de âmbito puramente técnico, traduzidos numa tipologia edificada sumária e descontínua, promovendo uma relação dinâmica e fluida de funções dentro de organismos arquitectónicos de grande dimensão e espacialmente polivalentes. Aymonino o confirma quando, falando do discurso para o centro direccional de Turim, afirma que “esta é uma oportunidade nova para a cultura arquitetónica italiana, de imaginar ou projectar complexos arquitectónicos de múltiplas implicações, como uma ocasião para dispor de áreas indiferenciadas, entre certas formas possíveis, mas não estritamente necessárias. E isto porque as funções específicas (elementares) poderão ser substituídas ou integradas em relações específicas (complexas). Neste ponto seria necessário examinar a possibilidade que oferece um projecto-programa como o do novo centro de Cabernauld de determinar uma revisão da análise tradicional das funções e de condicionar a sua variação ao longo do tempo. Voltamos assim ao primeiro ponto, a saber, à verificação das possibilidades para o arquitecto de ser igualmente o inventor de um método de organização de actividades múltiplas, em relação estreita com a expressão formal, e em que medida este resultado expressivo pode absorver hipóteses diversas e modificáveis através do tempo.”
Efectivamente, uma das características do urbanismo dos nossos dias tem sido encarar a cidade como um todo ordenado no tempo, estático. As expressões económicas e demográficas vão-se encarregando de desfazer estes sonhos de disciplina. As grandes cidades vivem em movimento perpétuo e este movimento tende a acelerar-se. Provavelmente, qualquer ordem futura será baseada na ideia de mutação permanente, numa dinâmica de progresso. A própria ideia de como a cidade de hoje deveria ser, surge a alguns como um absurdo metodológico. Ainda um plano não chegou ao seu termo e já as suas propostas perderam sentido. Por vezes são os próprios autores os primeiros a reconhecer a inadequação dessas propostas.
Outro jovem arquiteto de Roma, Pietro Barucci, reforça estas posições, quando, durante o debate a que o texto de Carlo Aymonino serviu de introdução, declara: “No momento em que novas exigências da sociedade são afirmadas, em que amadurecem novos critérios de planeamento e em que a técnica se enriquece com instrumentos novos e novos métodos de realização, pode-se tentar indicar a solução de alguns problemas de fundo de estruturação da cidade sem abandonar o terreno das realidades ou, pelo menos das possibilidades. Certamente um destes problemas é o da flexibilidade em geral, que nasce da exigência de dispôr diversamente do espaço no tempo, o que deu origem ao conceito de “contenant”, isto é, uma arquitectura indeterminada, não derivando da análise de funções precisas.”
As transcrições que fazemos aqui, traduzem algumas das ideias essenciais do debate publicado por “Casabella”. Mas as ideias expressas pelos novos italianos não são originais ou isoladas, antes se inserem numa corrente de pensamento de âmbito internacional e influência crescente[2]. Haverá apenas que notar, neste caso, o elevado teor crítico dos depoimentos. Os Argan, os Bettini e os Tentori terão decerto continuadores à altura.
Depois verificaremos, como toda a gente, quão próximo se encontram algumas das suas ideias das que Le Corbusier formulou muitos anos atrás. é certo que os jovens de hoje não sonham com as imagens da “Ville Vert” de ontem, mas o seu desdém pelo “urbanismo técnico” não é menor; o espaço indeterminado ou de funções mùltiplas de que falam é um prolongamento natural do conceito da planta livre, hoje banal nalguns países em certos tipos de construção (blocos de escritórios, por exemplo); a industrialização total da construção que defendem é também uma antevisão dos anos vinte, hoje próxima de se tornar realidade corrente nos países mais ricos, por virtude da rarefação de mão-de-obra e do seu custo incomportável; finalmente em tudo o que propõem está implícita a ideia do trabalho de equipa, da colaboração interdisciplinar em grupos homogéneos dos especialistas do planeamento, ideia mestra da didáctica da Bauhaus.
Ao constatar a semilitude de certas posições actuais com alguns dos postulados do racionalismo, não pretendemos, de resto, reduzir a validade daquelas, remetendo-as ao plano de um revivalismo moderno. Além do mais verifica-se, neste caso, uma diferença fundamental: aquilo que há quarenta anos foi uma visão revolucionária do mundo futuro “pode” hoje transformar-se num acto revolucionário “sem abandonar o terreno das realidades ou, pelo menos, das possibilidades”, como escreveu Barucci. Muitas das antecipações de Sant’Elia revivem hoje nos projectos possíveis de Tange, de Kmokawa, de Lubicz-Nicz ou de Goodman. As mais ambiciosas propostas do “team work” de Gropius foram ultrapassadas nas experiências concretas de Herfordshire, ou nos estudos-projecto do MOE Development Group. Muitos mais seriam os exemplos a lembrar. Mas a atitude de espírito é igual – nas imagens poéticas (e monumentais) da cidade de amanhã (e não num futuro longínquo); nas afirmações exaltantes e orgulhosas de renovação do Homem, na confiança reencontrada na capacidade da ciência para responder às suas interrogações e da técnica para concretizar os planos mais ambiciosos.
Mas tudo isto se poderá traduzir em muito pouco se não forem satisfeitas as condições político-administrativas e legislativas adequadas ao planeamento da cidade-território. Igualmente – como afirmou Tentori – será necessário um esforço sistemático de aprofundamento, de investigação, das matérias que interessam o “urban design”, algumas (caso das infra-estruturas, por exemplo) a caminhar ao passo lento das técnicas de segundo grau.
A necessidade dessa investigação é hoje, de resto, reconhecida em toda a parte, embora as ópticas porque é encarada variem por vezes. Ainda recentemente Paul-Jacques Grillo (em “L’architecture d’Aujourd’hui”, 115) propunha a criação de uma cidade-piloto de investigação internacional, dirigida pela U.N.E.S.C.O, “où architecs, artistes, savants, ingénieurs et tous les autres poètes de la realité travailleraient cóte a cóte à construire le monde nouveau”. Projecto de interesse discutível porque também aqui se põe um certo número de quesitos prévios. Como John R. James escreveu (“Journal of the Town Planning Institut”, January 64), “Que tipo de sociedade humana deve ser o nosso objectivo num futuro em que as nossas reservas de terrenos diminuem rapidamente, mas em que as diversas necessidades da população, economia e recreio continuam a aumentar? Que dimensão e forma da cidade e atribuição de funções garantirão melhores condições de vida?” E concluía: “Temos esperanças de poder refazer as nossas cidades mas não sabemos que espécie de cidade queremos. A investigação não pode substituir o julgamento ou a visão e dar uma resposta definitiva a estas perguntas, mas pode mostrar as implicações reais da escolha”.
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Como será a cidade do futuro?
Quais as incógnitas? Quais os factos concretos? Lembramos alguns de carácter geral de resto muitas vezes repetidos. Em primeiro lugar, os que respeitam a demografia: calcula-se que por volta do ano 2000 a população terá subido a cerca de seis a sete biliões de indivíduos. Em 1961, segundo os recenseamentos centralizados da U.N.E.S.C.O sabíamos que ultrapassara já os 3 biliões. Em 1650, de acordo com estudos dignos de crédito, era de 515 a 530 milhões; nos princípios da era cristã situava-se entre os 100 a 320 milhões… Sabemos também que este espantoso aumento demográfico verificar-se-á através de um processo de urbanização acelerado. Em Inglaterra, onde nove décimos da população vive já em centros urbanos, a população das cidades passará em fins do século a cerca de 66 milhões de indivíduos.
Mas o fenómeno não se limita aos países industrializados do Ocidente; abrange também as nações asiáticas: a Índia, a Indonésia, a China, o Paquistão. Estudos da U.N.E.S.C.O prevêem aumentos nos centros urbanos daqueles países, até 1975, da ordem dos 75 a 300%. Na Índia e no Paquistão as grandes cidades enchem-se de populações miseráveis, oriundas dos campos, sem abrigo, vivendo ao relento. Nos Estados Unidos e em Inglaterra formam-se gigantescas zonas metropolitanas, “connurbations”, em que dificilmente se distinguem os limites das primitivas cidades. Em muitos países da Europa continental, a maior concentração urbana segue de passo com o despovoamento dos campos, onde a mecanização da agricultura e racionalização dos métodos de produção torna menores as necessidades de mão-de-obra.
Em toda a parte se reconhece a necessidade de elaborar planos de desenvolvimento às escalas nacional e regional, que disciplinem o progresso económico e permitam a articulação das zonas urbanas e rurais das comunicações e da indústria, a preservação de parques nacionais, zonas livres de turismo e recreio. Na prática os resultados são decepcionantes. A sobreposição dos interesses privados ao interesse público, a relutância de muita gente perante as ideias novas, a falta de audácia e capacidade de previsão de muitos, a penúria de técnicos, e de órgãos de planeamento, tudo enfim conspira para perpetuar os estados de rotina.
E, no entanto, as intervenções enérgicas e decididas tornam-se dia a dia mais necessárias. É também chegada a hora de optar, de escolher entre caminhos possíveis.
No campo restrito do planeamento urbano a que nos limitamos, opõem-se hoje dois conceitos extremistas de sentido diametralmente opostos que por simplificação é o uso designar por escolas anglo-saxónica e latina: a primeira defende a preservação de certas regras do “habitat” nas cidades, nomeadamente a existência dentro do seu perímetro de zonas verdes de grande extensão, o “controle” das densidades de ocupação, a escala “humana” das edificações, etc. As principais críticas a esta política residem no facto da adopção das baixas densidades a que está ligada conduzir a uma expansão periférica incontrolada, com todos os inconvenientes conhecidos (aumento das distâncias do centro à periferia, investimentos enormes nas redes de transportes e serviços técnicos, carácter monótono e falho de urbanidade das zonas residenciais, etc.). É certo que contra estes males os urbanistas ingleses têm procurado impor o conceito da cidade limitada (caso do Plano Abercombie para a grande Londres) e da extensão em cidades novas econòmicamente auto-suficientes para lá do “green-belt”, melhorando até nestas as condições de desafogo, conforto e sanidade de que são ciosos[3]. Mas o problema põe-se a Inglaterra como em toda a parte. E se é verdade que muitos urbanistas ingleses continuam a crer na validade da célebre frase-programa de “sir” Raymond Unwin – “Nothing gained by overcrowding” é também verdade que todos se interrogam quanto aos problemas atuais e futuros de carência do solo. E é também a Inglaterra que podemos hoje observar algumas das experiências mais inovadoras na organização de núcleos habitacionais de alta densidade (em Golden Lane, Park Hill, nos projetos de Hook e Cambernauld onde foram previstas densidades superiores a 400 habitantes por hectare).
Mas é noutros países europeus – particularmente em França e na Itália – que se encontram os defensores mais calorosos da política do povoamento concentrado. Os argumentos dessa defesa aplicam-se a um leque vasto de problemas, que se estende desde os de ordem técnico-socio-económica até aos de tipo mais subjetivo (expressão arquitetónica, ambiente espacial, vivência humana, etc.).
Vejamos, no primeiro caso, o que se passa nos sectores-chave da indústria e dos transportes.
Quanto à primeira observa-se que a expansão industrial junto das cidades exige disponibilidades de solo consideráveis que em muitos casos obrigam, só por si, à contracção das áreas destinadas à habitação.
Mas vejamos o problema mais de perto: pelo que respeita às suas relações com a cidade (localização) as instalações fabris podem ser classificadas em dois grupos principais: as que interessam diretamente ao aglomerado e aquelas cuja serventia se estende à região, ao país, ou vivem da exportação. No primeiro caso, incluem-se, por exemplo, certos serviços de apoio das infra-estruturas urbanas (transportes, electricidade, telefones etc.), algumas indústrias de transformação e alimentares, numerosas actividades semi-industriais ou artesanais, garagens, estações de serviço, armazéns, etc. A sua localização dentro do perímetro urbano é aceitável e aconselhável, porque vitalizadoras das zonas internas e porque próximas dos bairros residenciais, desde que daí não resultem inconvenientes de maior, dos pontos de vista da salubridade e do tráfego; pelo contrário as indústrias de interesse regional ou nacional deverão ser deslocadas para a periferia e poderão mesmo disseminar-se nas zonas agrícolas, desde que servidas por estradas, caminhos de ferro ou vias fluviais adequados. A sua localização dentro das cidades, além de agravar as condições de tráfego do tráfego e poder apresentar inconvenientes sanitários, roubará áreas importantes, necessárias à habitação e ao equipamento (veja-se, a propósito, se passa na faixa industrial ribeirinha, da zona Oriental de Lisboa).
Até há poucos anos, poucas pessoas punham em dúvida que a descentralização industrial conduziria inevitávelmente (ou era desejável que assim fosse), à deslocação das famílias dependentes dessas atividades para bairros residenciais próximos, ou para novas cidades industriais, como na Grã-Bretanha aconteceu. Estas migrações humanas inseriam-se numa perspetiva de ordenamento regional, em que o factor “população” era encarado pelo mesmo rigor científico de qualquer outro. Alguns autores, obcecados pelos aspectos condicionantes da dinâmica económica do momento, referiam-se e referem-se com desembaraço à necessidade de criar novos centros urbanos, de limitar outros, de extinguir outros ainda, numa perspectiva de sentido único que faz depender determinantemente, senão exclusivamente, as condições do “habitat” humano das necessidades da produção de bens e serviços[4]. A estes técnicos entusiastas juntam-se, em estranha parceria e por razões muito diferentes, os defensores do “equilíbrio regional” e da cidade-jardim, uns e outros encarniçados adversários das Megalópolis modernas[5]. É uma escola de pensamento coerente, de origem anglo-saxónica, que teve os seus iniciadores em Geddes e Howard e que tem hoje os seus defensores mais autorizados em Mumford, Stein, Hilbersheimer, Zevi e outros.
Para o caso que nos interessa (e sem entrar na discussão de um problema sobre o qual haveria muito que dizer), este princípio parece hoje muito controverso. Não só a expansão industrial, por virtude do progresso das técnicas e de outros factores de âmbito económico-administrativo nem sempre é desejável nas áreas primitivamente estabelecidas, como existem outros factores que desaconselham a disseminação populacional. Um deles reside no incremento do ensino técnico especializado e universitário.
Efectivamente, em todos os países industrializados, a instrução superior aumenta sem cessar, abrangendo camadas consideráveis da população. Nos Estados Unidos ou na União Soviética o número de estudantes universitários atinge a casa dos milhões. Mas estes estabelecimentos de ensino, pelas suas características específicas e dimensão operacional não são viáveis em cidades pequenas (excepto quando, como em Cambridge ou Oxford acontece, são a sua principal “raison d’être”).
De tudo isto resulta que a proximidade que se pretende para os trabalhadores
se traduz em afastamento para os estudantes (com frequência os próprios trabalhadores quando frequentam cursos de especialização ou outros) obrigados a fazer o percurso inverso dos núcleos periféricos para o centro. Situação análoga se verifica, de resto, em relação aos demais órgãos de cultura e recreio (auditórios, teatros, museus, instalações desportivas, etc.). De tudo isto resulta, afinal, que os núcleos habitacionais da periferia ou as pequenas cidades industriais se tornam verdadeiros centros de segregação social e cultural.
Por estas e várias outras razões muitos teóricos do urbanismo pugnam hoje pelas cidades concentradas, embora limitadas na sua expansão, se necessário, e “duplicadas” no seu por núcleos “gémeos” de grande dimensão (projectos de Paris-Parallele, Toulouse-le-Mirail), cidades habitadas por todos, os que, funcionários, técnicos ou empregados deslocam diariamente a caminho do centro direcional, como os que tomam o sentido inverso das fábricas da periferia. Em muitos países de nível de vida elevado, esta deslocação encontra-se facilitada pela aquisição, pelos operários de transportes individuais. Por nosso lado tivemos ocasião de observar o número imenso de automóveis (por vezes milhares) que se concentram em volta de algumas unidades industriais dos arredores de Paris, Estocolmo, Hamburgo e outras cidades.
Vem a propósito referir alguns aspetos do tráfico urbano: sobre este momentoso problema extremam-se hoje as posições entre os que, “apesar de tudo”, acreditam na solução do problema, sem recorrer a medidas drásticas; e a dos que negam essa possibilidade, pelo menos nas zonas centrais, sem se proibir ou limitar fortemente o número dos transportes individuais. Tal é possível – admitem-no – através de medidas aleatórias e com o prejuízo ou destruição do carácter cívico dos centros, como largamente aconteceu em Detroit, Boston ou S. Francisco. Para eles o automóvel modificar-se-á (pequenos veículos eléctricos) ou será mais tarde ou mais cedo expulso do centro e “arrumado” em bolsas periféricas até ao fim de semana de três dias que que a automação tornará possível na cidade na sociedade da abundância. Para resolver os problemas do tráfego interno sugerem-se então soluções variadas, que vão desde o acréscimo dos meios tradicionais (metropolitano, autocarros, táxis), até ao comboio aéreo, o helicóptero e os tapetes rolantes. Um mundo de hipóteses que o leitor devidamente aparecerá nos escritos de Frei Otto, de Friedman, de Victor Gruen, dos japoneses do grupo “Metabolismo” e em muitos mais. Antevisões com o sabor de ficção científica que com toda a viabilidade se tornarão coisa corrente dentro de vinte ou trinta anos.[6]
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Outros argumentos usados para defender o princípio do povoamento concentrado e as altas densidades resumem-se numa só palavra – o aborrecimento. O aborrecimento, neste caso, é o que se observa nos dormitórios periféricos ou nas cidades satélites. É a rarefacção da vida social, raridade dos locais de encontro, de recreio e de cultura, a modéstia dos comércios, a escala menor dos espaços urbanos e dos edifícios, quando comparados com as luzes brilhantes da urbe, com as avenidas e as ruas ricas de motivos de interesse. São também as relações de vizinhança por obrigação e vigilância e a ausência dessa conquista maior da cidade – o anonimato – que propicia uma verdadeira liberdade individual, uma nova moral baseada na livre escolha.[7]
No plano sociológico esta antinomia revela-se plena de implicações ideológicas: assim, ao conceito do homem-comunitário, vinculado ao ambiente, opõe-se o do homem-social, consciente dos seus direitos e deveres cívicos e sindicais e participante
activo nos destinos do seu país e da sua classe. Parece também evidente que a crise moral que alguns sociólogos vêm denunciando (por vezes com lamentável estreiteza de vistas) não será vencida pelo retorno aos “velhos e sólidos princípios” mas pela transformação progressiva da sociedade em que vivemos, o que provocará (decerto) a queda de muitos mais mitos. “La chute des mythes rend libre. Pour l’instant c’est une liberté carnavalesque. Mais l’energie pure passe là-dedans, et elle restitue à l’homme une dimension oubliée. Bien sûr, c’est du carnaval. Vous avez les masques, les monstres, une musique assourdissante, des gens tombent, des gens se perdent, et les moralistes crient au scandale. Mais un certain ordre a fait son temps, et le carnaval veux mieux”. São palavras de Federico Fellini.
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Mas a insatisfação das populações residentes nos bairros periféricos tem também origem na própria arquitectura, na aridez espacial – ou de espaço negativo, como é uso dizer – resultante do tipo de implantação livre de volumes generalizado nos últimos anos, na linha dos conceitos expressos na Carta de Atenas (de que Roehampton e Marly-les–Grandes-terres são ainda, quanto a nós, os exemplos mais interessantes).
Ora, como Alexandre Persitz notou (“Vers un Urbanism Spatial”, A. D’A., 101), o homem pode admitir que se encontre provisoriamente num espaço negativo e sentir uma emoção estética perante uma obra de arte, um edifício ou um panorama. Mas esta emoção é de curta duração e verifica-se, sobretudo, a partir de um ponto definido e ótimo para a percepção do objeto dado. Mas nós sabemos que o homem é principalmente atraído e seduzido não por um aspecto, uma vista, uma perspectiva estática, mas pela continuação prolongada de emoções provocadas por descobertas sucessivas ligadas aos movimentos do observador e sobretudo ao sentimento de estar no interior de espaços arquitectónicos diversificados e imprevistos. É o que acontece nas cidades históricas da Europa, onde as casas alinhadas em bandas contínuas, limitam as perspetivas e criam um envolvimento arquitetónico permanente. É a cidade compacta, organismo criado pelo homem, expressão do seu domínio sobre a Natureza, por oposição à cidade verde, onde a Natureza é o elemento paisagístico dominante e unificador. É a tomada de consciência de que a cidade, como arquitectura, é a tradução espacial e plástica de conceitos, de relações e convívio humanos e não uma mera organização funcional.
Historicamente, podemos talvez marcar o ano de 1951 como aquele em que estas preocupações tomaram consciência temática ou consistência temática. Desenvolvidas polemicamente, pelo Team X, a partir do Congresso do CIAM, realizado nesse ano em Hudston, nos arredores de Londres (cujo o tema era o “Coração da cidade”), conduziram nos congressos seguintes (Aix-en-provence, 53, Dubrovnik, 59, La Sarraz, 57) a uma crise aguda dentro daquele organismo que largamente foi responsável pela sua extinção.
No entanto, o Team X – a chamada geração de 47, grupo de jovens arquitectos ingleses em que sobressai o famoso casal Smithson – não se deixou conduzir, nas suas críticas aos princípios da carta de Atenas (como em Itália e noutros países aconteceu), pelas vias fáceis dos revivalismos e das “descobertas” das arquitecturas espontâneas. As propostas de Peter e Alyson Smithson para Golden Lane (52) e Haupstadt Berlim (58) traduziam um certo número de ideias tendentes a vitalizar as cidades antigas e incidiam sobre aspectos como os movimentos de peões, tráfego separativo, convívio, continuidade do tecido urbano e seu processo de crescimento.
Ao concurso de Golden Lane, grupo residencial de densidade elevada, em Londres, apresentaram uma solução de edifícios contínuos, constituindo uma série de pátios, em que as vias de peões se desenvolviam a nível superior, integradas nos próprios edifícios e constituindo verdadeiras ruas comerciais e centros de convívio. Solução, como se sabe, adoptada mais tarde no conjunto de Park Hill em Shefield, e actualmente retomada noutros projetos urbanos com desenvolvimentos contínuos a vários níveis, ruas comerciais, superiores, etc.
Golden Lane foi um projecto percursor e o seu maior interesse reside no facto das soluções nele propostas se aplicarem a um programa habitacional – tipo de alta densidade. Outros projetos da mesma época seriam também dignos de referência. O projeto de Golden Lane, de Chamberlain, Power e Bon, o de South Barbican, da mesma equipa, o do novo centro comercial em Estocolmo, dirigido por Sven Markelinus e alguns mais. Foram primeiras tentativas no caminho da estruturação de núcleos urbanos de grande dimensão, concentrados e de organização espacial dirigida e contínua, os dois últimos projectos de zonas centrais predominantemente ou exclusivamente (como o último) destinados as atividades cívico-comerciais.
Mais recentemente têm-se multiplicado os projectos experimentais para programas de altas densidades. Não está nas intenções destas notas – já extensas – dar conta das muitas propostas que as revistas de arquitectura de todo o Mundo vêm publicando. Menos ainda descrever as inúmeras antecipações urbanísticas e arquitectónicas, com carácter de investigação ou de simples invenção figurativa que se vão produzindo. Elas são, quanto a nós, a prova concreta da enorme vitalidade e “juventude” da arquitetura dos nossos dias, e não, como alguns temem, simples manifestações de confusão e anarquia. O que não nega a necessidade de distinguir entre o trigo e o joio, ou mais uma vez, como Tentori afirmava, entre utopias positivas e as utopias puramente figurativas (ou fantasiosas). Não resistimos, no entanto, à tentação de lembrar alguns desses projectos de maior interesse: É de justiça referir em primeiro lugar o procjeto de Toulouse-le-Mirail, da equipa Candilis, Josipa, Woods, já publicada em “Arquitectura”. Uma das intenções expressas neste projecto foi a de restabelecer a noção de rua, pensada como um elemento linear de desenvolvimento contínuo (rue-centre-linéaire), por oposição ao conceito da concentração pontual do equipamento colectivo da maioria das realizações do pós-guerra. Importante foi também o concurso para o Centro Direccional de Turim, realizado este ano. Importante pela escala do programa e pela variedade e originalidade de muitas das soluções. Outro exemplo, o de Hook, cidade-satélite de Londres, que razões de ordem económica não tornaram viável, e que entre outros motivos de interesse desenvolvia o tema da organização em “cluster” de que a escola de Amesterdão, Aldo van Eyck, foi paradigma; algumas realizações ou projectos americanos, entre os quais os trabalhos de Lubicz-Nycz, que se publicam neste número de “Arquitectura”; os projetos das equipas de P. Goodman e Victor Gruen para o Welfare Island, em Nova York; o arranjo de Santa Mónica Ocean Park, de W. Pereira etc. Todos estes são conjuntos maciços, verdadeiras, pirâmides de betão e aço, onde na base se situam os vários serviços colectivos, garagens, escritórios e núcleos de comércio, sendo os andares superiores destinados à habitação. No projeto de Victor Gruen, as bandas contínuas ondulantes e de alturas variáveis (entre 8 e 30 pisos), envolvem as grandes torres de 50 pisos. Um dos aspectos mais curiosos deste projecto reside na precisão de uma ligação longitudinal a nível inferior por tapetes rolantes.
Na solução de Gruen os volumes são ainda isoláveis e as grandes torres iguais permitem uma leitura rítmica do conjunto. No projeto de W. Pereira para Santa Mónica (e citamos este caso porque típico de algumas realizações recentes) a massa construída é maciça e pràticamente indecomponível, constituindo uma autêntica colina artificial. Aspecto a reter neste projeto de grande poder expressivo (porque igualmente típico) é o de toda a construção ser normalizada e composta por elementos “standard”.
Para terminar lembramos ainda a chamada corrente do “urbanismo espacial”.
O projecto mais conhecido desta nova tendência é da autoria de um japonês – Kenzo Tange – que imaginou uma cidade-arquipélago assente em pilar gigantes, sobre os quais acima do nível do mar em que grandes em do mar em que aqueles penetram se apoiariam volumes descontínuos, grandes massas construídas, destinadas à habitação e serviços. Do Japão nos vieram depois vários projetos gizando os mesmos temas – os de Mosimura e Sone, de N. Kurokawa, dos membros do grupo “Metabolismo”, etc.
Os mesmos princípios – libertação do solo, volumetria disposta livremente no espaço, exploração dos contrastes de cheios e vazios – surgem nas obras de um certo número de precursores europeus – Schulze-Fielitz, Frei Otto, Rudolph Moser e Edouard Albert, entre outros.
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Recapitulemos:
No princípio destas notas focámos alguns aspetos astuais da polémica internacional sobre os problemas do “urban design”. Tomámos como ponto de partida um debate recentemente realizado por alguns arquitectos italianos e publicado em “Casabella”. Desse debate ressaltámos as intervenções que tratavam da procura de uma nova metodologia, resposta à nova dimensão do trabalho do arquitecto e das relações interdisciplinares entre arquitectura e urbanismo. Tentámos então esclarecer alguns aspetos de fundo desse trabalho, das perspectivas que abre, dos limites a que se verá confinado. Isso conduziu-nos a alargar o âmbito destas notas à análise, necessariamente breve, de um certo número de dados que forçam a evolução actual das grandes cidades. Finalmente, apontámos alguns exemplos, entre os mais relevantes, que melhor traduzem as políticas de povoamento concentrado e de altas densidades, crescentemente adoptadas em muitos países.
De certo modo fizemos um percurso ao invés, na exposição, método que que se nos afigurou, no entanto, mais sugestivo. De alguns problemas pouco mais podemos dar que o enunciado, sacrificando a análise de morada que mereciam à necessidade de sintetizar uma “situação” nos seus aspetos essenciais. Outros foram mesmo passados em claro. É matéria vasta e complexa, impossível de resumir num só artigo. Esperamos, ao menos ter sido claros no que afirmámos.
Algumas considerações finais:
A primeira diz respeito à formação profissional dos arquitectos, chamados a desempenhar papel de arquitectos-urbanistas como largamente é aqui o caso. Cremos que, neste campo, a actividade independente do profissional isolado tornar-se-á progressivamente menos significativa. Mesmo os programas particulares tenderão a ser “um capítulo” de planos de ordenação regional a cumprir a todos os escalões.
A sua actividade integrar-se-á por isso num todo, de que necessitará de entender o processo e objectivos últimos. A compreensão dialéctica dum programa particular numa escala progressiva de relações, de que falava Aymonino, no plano de uma programação-execução flexível, apenas aumentará as dificuldades e responsabilidades dessa integração.
Tudo isto nos conduz à necessidade de alargamento da informação dirigida aos profissionais de arquitetura pelo que respeita as especialidades de apoio e de estruturação de método de trabalho de acção interdisciplinar. Métodos de trabalho que, quanto a nós, serão na base simplesmente simples “hipóteses” que a prática irá definindo mais rigorosamente. Mas – mais importante que tudo o resto – é a visão global dos objectivos últimos, que não somente práticos, do que se pretende alcançar – um ideal de vida e cultura, que hoje, na generalidade dos países civilizados, se situa no campo possível da coexistência activa e democrática das várias tendências, orientadas sobre objectivos concretos de interesse comum.
Neste quadro de acção, as escolas de arquitectura terão também um papel a desempenhar – como formadoras de técnicos e de homens civicamente conscientes. Mas todo um esforço de especialização resta fazer. Na arquitectura, como nas outras profissões a aprendizagem não cessa com o fim de um curso e o autodidactismo não chega e não compensa. Levanta-se ainda – e hoje com crescente razão – o problema da investigação pura e aplicada. Um mundo de problemas.
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Que correspondência podem ter tais problemas na actividade atual dos arquitetos portugueses?
Não tentaremos responder aqui a interrogação tão espinhosa. Lembraremos, no entanto, que algumas tentativas estão em curso em organismos públicos, de trabalho integrado, interdisciplinar seguindo processos experimentados com êxito lá fora – nos sectores do urbanismo, da habitação social e da construção escolar.
Verifica-se igualmente o esforço de muitos arquitectos na profissão liberal, no sentido da racionalização dos métodos de trabalho e de organização de “atelier”. De notar ainda a intervenção crescente dos arquitectos em novos setores de actividade.
Evidentemente, muito será necessário fazer, particularmente nos campos do ensino e da especialização pós-escolar organizada. Esforço que, naturalmente, se orientará no sentido da resposta às exigências concretas e previsíveis do meio, e não em obediência a esquemas abstractos.
Por outro lado, as escolas de arquitectura são o que são – e o que alguns tentam que venham a ser. Talvez. E o resto (quase tudo) não se inscreve no âmbito da acção especificamente profissional dos arquitetos.
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Num mundo em rápida transformação – em que o próprio Homem se transforma – os arquitectos não poderiam continuar romanticamente a sonhar os sonhos estéticos de uma arte sem relação com a vida, como o fizeram os que no século passado se desinteressaram das aplicações dos novos materiais e deixaram a arquitetura “utilitária” ao cuidado dos engenheiros.
É também possível que as suas que as suas propostas para um meio físico que sabem necessário e inevitável, não sejam sempre entendidas. “Mas a arte – como afirmou John Lescure – não pode ser conciliatória. Ela é o imperativo dramático de restituir ao Homem o seu sentido mais puro. E não pode fazê-lo senão nos limites da contestação”.
[1]. Por decisão editorial, as imagens do texto original não foram incluídas nesta publicação.
[2]. Leia-se, por exemplo, “The city of the future”, de Noburu Kawazoe (publicado em “Zodiac”, 9). É daí que transcrevemos o parágrafo seguinte: “Para nós que vivemos na era contemporânea, a imagem total e perfeita da cidade – aquilo que costumamos chamar o Plano-director deve ser rejeitada. O que precisamos é de ‘um programa contínuo’, que seja simultâneamente compreensível: noutras palabras, dum Programa-Director. Cada parte do plano deverá ser projectada de forma que nela possam ter libremente lugar profundas alterações metabólicas”.
[3]. É curioso notar, a propósito, que os objetivos do urbanismo são definidos nos “Town Plan Acts” daquele país como a criação de “Proper Sanitary Conditions, Amenity and Convenience”. Já o falecido Patrick Abercrombie propunha como alternativa a esta fórmula demasiado incolor a de “Beauty, Health and Convenience” (em “Town and Country Planning”) embora se apressasse a exprimir a sua repulsa pelo urbanismo de “boulevard”, pelos cenários urbanos sem adequação aos imperativos da sanidade, económicos, comerciais, etc.
[4]. Obviamente, não pretendemos pôr aqui em dúvida a necessidade de reajustamento da distribuição operada em muitos países. Cremos também que o processo será menos doloroso se dominado no conjunto das suas implicações, quer dizer, se planeado. Pretendemos simplesmente acentuar a importância dos factores “qualitativos” e humanos por oposição a certos autores que também neste caso se situam no plano restrito da “quantidade” e das conveniências económicas. Planear cidades para 50 000 ou 500 000 habitantes não é apenas um problema de números. As formas de vida e relações resultantes serão também diversas.
Vem a propósito notar que o planeamento físico do território é encarado por certos economistas como uma consequência ou um complemento do planeamento económico. Trata-se de um equívoco. O planeamento territorial é um todo em que, por exemplo, os factores de pura conveniência industrial podem ter que ceder lugar a preocupações de utilização humana dos locais, de ordenação paisagística, a necessidades de preservação biológica, à rectificação climática, etc. Nas grandes cidades marítimas é frequente observar-se a ocupação total das faixas ribeirinhas por instalações portuárias e industriais que criam uma cortina de separação entre a cidade e o rio (como acontece em Lisboa) e a impossibilidade do seu aproveitamento para fins turísticos, desportivos e recreativos (até, também, de interesse económico); o mesmo, ou pior noutros casos, para a poluição da atmosfera das zonas habitacionais próximas; o mesmo… não acabaríamos neste enunciar de absurdos a que o planeamento limitado, sectorial não poderá obstar.
[5]. Recorde-se, a propósito:
Megalópolis foi uma grande cidade construída em 370 a.C. sob o impulso de Epaminondas para concentrar toda a população de Esparta.
Os arcádios do Peloponeso viviam em aldeias até fins do século 4 a.C., quando começaram a criar qualquer coisa semelhante a uma cidade. Encontravam-se eles neste estado embrionário quando Epaminondas concentrou compulsivamente 40 destas aldeias ou pequenas cidades na Grande Cidade (Megalópolis). Esta fundação forçada e as transferências de população daí resultantes respondiam a motivos políticos e militares. Tratava-se de uma medida artificial e extemporânea sem justificações de base étnica ou económica, dada a grande extensão do território. Por isso, pouco a pouco as populações foram voltando aos seus lugares de nascimento e a cidade perdeu o significado e despovoou-se.
[6]. Sobre este problema recomendamos ainda a leitura de dois artigos publicados na “Architectural Review” de Londres (“The Urban Choice”, de Raymond Spurrier, May 64 e “Speed the Citizens” de Reyner Banham, Aug. 64). Trata-se de dois estudos sobre o discutido relatório de Colin Buchanan “Traffic in Towns”. Embora o relatório Buchanan se limite a propor um processo de análise e “contrôle” do tráfico R. Banham afirma com razão que aceitação das duas das suas conclusões conduz na prática a adopção de novos tipos de transporte colectivo (tapetes rolantes, monorail).
[7]. As relações vicinais nos bairros antigos são, antes de mais nada, relações de entre-ajuda ou de clã (como Young e Willmott observaram em Bettnal Green). Os homens são os primeiros a subtrair-se pela via dos locais de trabalho. Depois a entre-ajuda a tende a perder sentido nos países de mais alto nível de vida e assistência social organizada, mais ainda quando as mulheres trabalham fora de casa. O automóvel é o elemento final, ao permitir uma selecção dispersa das amizades. Por outro lado, a posse de uma casa mais ampla e confortável transforma as relações exteriores em relações de visita. As comunidades vicinais deixam de ter sentido neste novo contexto socio-económico e só subsistem, empobrecidas, nos pequenos meios.