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Lara Isa Costa Ferreira

lara.icf@gmail.com

Arquiteta-urbanista, Doutoranda na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP), São Paulo, Brasil

 

Para citação: FERREIRA, Lara Isa Costa – Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus. Estudo Prévio 19. Lisboa: CEACT/UAL – Centro de Estudos de Arquitetura, Cidade e Território da Universidade Autónoma de Lisboa, 2021, p. 56-60. ISSN: 2182-4339 [Disponível em: www.estudoprevio.net]. DOI: https://doi.org/10.26619/2182- 4339/19.5

Recensão recebida a 31 de maio de 2021 e aceite para publicação a 1 de julho de 2021.
Creative Commons, licence CC BY-4.0: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/

Carolina olha para mim do outro lado do quarto. Sinto o peso da expectativa no olhar da escritora, retratada por Ori Fineart[1]. Em “Quarto de despejo: diário de uma favelada” (2014)[2], Carolina Maria de Jesus documenta em forma de diário, o seu quotidiano e da Favela do Canindé, lugar onde morava nos anos 1950 em São Paulo (Brasil). Como pesquisadora parti da pretensão de refletir sobre as formas de morar das pessoas que não têm o direito à moradia digna garantido. No caminho encontrei Carolina, mas também outras pessoas, e pelas suas palavras e vivências, tenho compreendido algumas das minhas limitações para aquela abordagem. O peso da expectativa vem de um processo que está longe de estar concluído, mas que me proponho a compartilhar nesta reflexão sobre a obra de Carolina Maria de Jesus e da busca pelo espaço de Carolina e Carolinas na minha própria pesquisa.

De facto, pouco poderei acrescentar às reflexões e homenagens já realizadas a esta autora e sua obra. Recorro a algumas delas para falar de Carolina Maria de Jesus e do seu “Quarto de Despejo” nomeadamente a tese premiada Gabriela Leandro Pereira (2019)[3], a banda desenhada Carolina (2016)[4] que ilustra um pouco da história da autora e a exposição do IMS – Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os brasileiros[5].

Apesar destas e de outras homenagens, na minha opinião, o conhecimento sobre Carolina Maria de Jesus em Portugal e no campo dos estudos urbanos ainda está longe do mérito devido. Por isso, todos os espaços são poucos para falar sobre a importância do “Quarto de Despejo” e demais obras da autora, enquanto o nome de Carolina não for imediatamente reconhecido entre nós.

Carolina Maria de Jesus foi uma escritora brasileira nascida em 1914 numa pequena cidade no estado de Minas Gerais. Negra, descendente de pessoas escravizadas, chega a São Paulo na busca por melhor qualidade e oportunidades de vida. Mas essa mudança deu-lhe apenas a possibilidade de morar no “barraco nº 9 da rua A” da favela do Canindé, nas margens do Rio Tiête. Nos anos 1950, Carolina ganhava alguns trocados como catadora de materiais que vendia para reciclagem. Mãe solo de três crianças, vivia uma vida de miséria comum a tantas outras pessoas que naquela época dividiam a cidade que crescia e se tornava na maior metrópole da América do Sul.

“18 de maio de 1958 – …Aqui na favela quase todos lutam com dificuldades para viver. Mas quem se manifesta o que sofre é só eu. E faço isto em prol dos outros. […]

… As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de setim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo” (JESUS, 2014: 36-37).

Entre a pobreza e a fome, e apesar de ter frequentado poucos anos da escola, Carolina escrevia. Escrevia sobre a sua vida, a vida na favela, refletia sobre o mundo e sobre a cidade. E lia. Lia jornais, revistas e outros documentos que recolhia pelas ruas de São Paulo antes de ganhar os poucos trocados que conseguia com eles. Em 1958, o jornalista Aurélio Dantas, em busca de histórias na favela do Canindé, encontra Carolina e os seus mais de 20 diários escritos. Os diários editados pelo jornalista, transformaram-se no livro “Quarto de despejo: diário de uma favelada” lançado em 1960. Em poucos meses o livro tornou-se num best-seller, apresentado em rádios e jornais, não só no Brasil, mas também no estrangeiro. A primeira edição vendeu 30 mil exemplares, atingindo as 100 mil cópias vendidas na 3ª edição. No Brasil, está na sua 10ª edição, na versão da editora Ática de 2014[6]. Foi traduzido para mais de 13 idiomas e distribuído em mais de 40 países. Em Portugal, o seu lançamento foi proibido em 1961 pelo regime salazarista que se vivia, e para o biógrafo Tom Farias, esse foi o motivo pelo qual o livro não teve ampla repercussão nos demais países lusófonos, no caso, os países africanos ocupados por Portugal naquela época.[7]

O sucesso do livro permitiu à autora sair da favela e adquirir uma Casa de Alvenaria (1961)[8] e frequentar espaços e lugares impensáveis, principalmente para uma mulher negra, pobre e favelada. Para além do “Quarto de Despejo”, Carolina Maria de Jesus publicou em vida mais três livros, e outros seis foram publicados depois do seu falecimento. O sucesso de “Quarto de Despejo” foi acompanhado por muitas polémicas. Entre elas, questionou-se sobre a sua autoria e mérito. O livro foi ainda utilizado para justificar a remoção da favela o que aconteceria poucos anos depois. O seu reconhecimento em vida foi curto e pontual. Em 1977, faleceu aparentemente esquecida.

Pouco posso dizer sobre a contribuição literária de “Quarto de despejo” para além das sensações e emoções que suas palavras causam. Como arquiteta e urbanista, tenho a certeza sobre a importância da obra para o campo dos estudos urbanos. Carolina descreve a cidade e a favela com os pés assentes sobre o barro. Escreve o que pensa e descreve o que vê. Algumas partes causam desconforto, incomodam. Acredito que isso acontece porque “é preciso escrever e dizer só a verdade” nas palavras da autora que expõem as suas verdades e também contradições. E isso leva-me a refletir sobre a “verdadeira” cidade que estava e continua a ser construída hoje.

As favelas[9] que começavam a ser maiores e cada vez mais frequentes não só em São Paulo, mas em outras cidades do Brasil (e do mundo) são as formas de expressão urbana das opressões e violências da realidade em que vivemos. Lugares como a Favela do Canindé em São Paulo, tratadas como exceções, são a regra e a única opção de moradia para a maioria das pessoas pobres do mundo. Carolina não precisa de apresentar dados para falar sobre a dificuldade de morar nessas condições. Em vez disso, apresenta-nos a principal personagem do seu livro (e da sua vida): a fome. E vai-nos relatando sobre a sua luta diária frente a esta personagem.

“12 de outubro de 1958 …Já faz tanto tempo que estou no mundo que estou enjoando de viver. Também, com a fome que eu passo quem é que pode viver contente?” (JESUS, 2014: 125)

Na descrição das formas de sobrevivência para si e para as suas crianças, conta-nos também sobre as infraestruturas (ou a falta delas) na favela, a dificuldade de acesso à água, a inexistência de saneamento básico ou pavimentação das ruas, a fragilidade dos materiais construtivos do seu barraco e dos vizinhos.

11 de julho de 1958 Deixei o leito 5 e meia. Já estava cansada de escrever e com sono. Mas aqui na favela não se pode dormir, porque os barracões são umidos, e a Neide tosse muito, e desperta-me. Fui buscar agua e a fila já estava enorme. Que coisa horrivel é ficar na torneira. Sai briga ou alguem quer saber a vida dos outros. Ao redor da torneira amanhece cheio de bosta. E quem limpa sou eu. Porque as outras não interessam”. (JESUS, 2014: 91)

Conta-nos também sobre outras questões inerentes à sua vida e dos que lhe são próximos, como a criminalização da comunidade moradora da favela, pelo lugar onde vivem, o machismo e racismo que sofre nas ruas, casos de violência doméstica, entre outros. Para além das verdades, Carolina tem uma compreensão politizada sobre o mundo e as condições em que está inserida. Ser negra e pobre no Brasil é uma condicionante para a localização da sua moradia no quarto de despejo da cidade de São Paulo. Após uma falsa abolição, e sem reparação histórica aos séculos de violência da colonização e escravatura, é relegado à maioria dos descendentes da população escravizada, as piores condições de vida, muitas vezes nas favelas das cidades brasileiras ou de outros países que sofreram processos de colonização.

13 de maio de 1958 – Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos. […]

… Choveu, esfriou. É o inverno que chega. E no inverno a gente come mais. A Vera começou a pedir comida. E eu não tinha. Era a reprise do espetáculo. Eu estava com dois cruzeiros. Pretendia comprar um pouco de farinha para fazer um virado. Fui pedir um pouco de banha a Dona Alice. Ela deu-me banha e arroz. Era 9 horas da noite quando comemos.

E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!” (JESUS, 2014: 30,32)

Talvez a pontualidade do sucesso de Carolina Maria de Jesus pudesse ser justificada se as situações anteriormente descritas não existissem mais. No entanto, no Brasil e no mundo, a pobreza e injustiças vividas por Carolina são atuais, renovadas e reforçadas diariamente. Conheci a obra de Carolina Maria de Jesus em 2015 no primeiro ano de mestrado da FAUUSP[10], mas nos oito anos que moro em São Paulo conheci inúmeras Carolinas. Mulheres (também homens) que lutam diariamente pela sobrevivência, seja por melhores condições de vida materiais (comida, água, saneamento, habitação, transporte, trabalho, serviços, lazer etc.) para si e para os seus, seja contra formas de opressão imateriais impostas pela estrutura racista, machista, patrimonialista, capitalista em que vivemos.

Porquê o “Quarto de Despejo” de Carolina Maria de Jesus, não é obra de referência em mais cursos de Arquitetura e Urbanismo? Porque não é referência para todas as formações sobre espaço, cidade, estudos sociais e urbanos? Quem é referência para cada um de nós e para o nosso trabalho, como espaciólogos? Não afirmo que precisamos de concordar com Carolina ou cada um de nós assumir uma postura de luta contra as injustiças pelas quais ela passou (apesar de acreditar nisso). Mas desconhecer as verdades contadas por Carolina não reduz a sua existência e nem omite a nossa responsabilidade individual e coletiva sobre elas.

A verdade é que Carolina foi esquecida apenas pelos grandes meios de comunicação. Em 60 anos ela manteve-se leitura presente nas lutas e movimentos periféricos, e nos últimos 15 anos ganhou protagonismo na academia no Brasil. Podemos suspeitar de uma relação direta e uma das consequências das políticas públicas de acessibilidade da população pobre e não branca, ao ensino superior dos últimos anos, especialmente através das políticas de cotas raciais adotadas por universidades públicas em todo o país[11].

Nesse movimento atual, muitas pesquisas foram feitas à sua obra, para além de vários reconhecimentos, e este ano (2021) Carolina Maria de Jesus foi agraciada com o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mérito devido a uma autora com contribuições que ainda não conseguimos quantificar na literatura e nos estudos urbanos. Também em 2021, vemos finalmente o “Quarto de Despejo” chegar a Portugal com a sua primeira edição nacional.

No entanto, é importante lembrarmos constantemente que Carolina Maria de Jesus pode voltar ao esquecimento. E que este lembrete reforce outros tão ou mais importantes: as injustiças do Quarto de Despejo são mais reais e presentes do que nunca na vida de muitas Carolinas. E a luta pela diminuição de formas de opressão e violências é constante e contínua. Nenhuma conquista é permanente.

Que Carolina seja mais referência para que o lembrete e as lutas sejam também permanentes.

Carolina presente!

[1] Ori Fineart (https://orifineart.com.br/ ) é a marca do artista brasileiro Laerte Barcelos Heredia de Paiva.

[2] JESUS, Carolina Maria de – Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Editora Ática (10ª ed.), 2014.

[3]  PEREIRA, Gabriela Leandro – Corpo, discurso e território: a cidade em disputa nas dobras de Carolina Maria de Jesus, ANPUR / PPGAU-UFBA, São Paulo, 2019. Tese de doutoramento da UFBA (Universidade Federal da Bahia), premiada pela ANPUR – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional, tornada livro.

[4] BARBOSA, Sirlene, PINHEIRO, João – Carolina. São Paulo: São Paulo, 2016.

[5] Exposição com inauguração prevista para junho de 2021, no IMS – Instituto Moreira Salles, de curadoria de Raquel Barreto e Hélio Menezes. Para mais informações consultar: expocarolinamariadejesus.ims.com.br

[6] Segundo nota dos editores esta edição “respeita fielmente a linguagem da autora, que muitas vezes contraria a grafia e a acentuação das palavras, mas que por isso mesmo traduz com realismo a forma de o povo enxergar e expressar seu mundo” e serão estes os trechos transcritos.

[7]  Para mais informações ver reportagem: LUSA, Chega a Portugal livro proibido por Salazar, que personificou a voz das favelas do Brasil, DN, 19 junho 2021. Disponível em: https://www.dn.pt/cultura/chega-a-portugal-livro-proibido-por-salazar-que-personificou-a-voz-das-favelas-do-brasil-13853319.html [Consult. 21/06/2021].

[8] JESUS, Carolina Maria de – Casa de Alvenaria. São Paulo: Ed. Francisco Alves, 1961.

[9] Entende-se favela em sentido ampliado, como parte das cidades inseridas em lógicas de exploração, como lugares de resistência, mas também necessidade de reafirmação de direitos. Lugares de características semelhantes podem ser designados por outras nomenclaturas em outras regiões ou cidades.

[10] FAUUSP – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.

[11] Para mais informações ver reportagem: CEARÁ, Lianne; AMOROZO, Marcos; BUONO, Renata – Diploma, acesso e retrocesso, Piauí, 10 maio 2021. Disponível em https://piaui.folha.uol.com.br/diploma-acesso-e-retrocesso/?utm_source=NexoNL&utm_medium=Email&utm_campaign=OQEL [Consult. 15/05/].