Natural History decorre da exposição monográfica Herzog & De Meuron: Archaeology of Mind, organizada pelo Canadian Centre for Achitecture (CCA), tendo decorrido em Montréal, entre outubro de 2002 e abril de 2003.
A ação tutelar por parte do CCA, museu e centro de investigação de referência, no âmbito da arte e história da arquitetura, reflete a posição central de Herzog & De Meuron no panorama da arquitetura contemporânea. A publicação espelha a sua postura crítica, baseando-se num processo interpretativo (retrospetivo) de um sistema mental. Mediante um método “regressivo-progressivo” [1], levado a cabo por um conjunto de arquitetos, artistas e investigadores, Natural History, é sobretudo o resultado de um longo projeto de investigação, decursivo de uma conceptualização partilhada entre Philip Ursprung (curador da exposição), Lars Müller e Herzog & De Meuron.
Tendo como base o vasto conjunto de produções, resultantes de uma constante experimentação, da sua análise resultou a identificação de seis temas estruturantes: (i)”Transformation and Alienation”, (ii) “Appropriation and Transformation”, (iii) “Stacking and Compression”, (iv) “Imprints and Moulds” (v) “Interlocking Spaces”, (vi) “Beauty and Atmosphere”. Esta categorização permitiu a constituição de um atlas do modo de fazer, refletindo uma metodologia de conceção, fundamentada na mediação dos processos de perceção, apropriação e transformação (do homem e do tempo). Os projetos: 250, concebidos entre 1978 e 2005, encontram-se sequencialmente numerados, possibilitando a sua referenciação a textos ou elementos gráficos – situação análoga foi também adotada na codificação da totalidade das peças integrantes da exposição, que na sua grande maioria, constituíam um espólio de objetos não identificados.
”These objects are not works of art; they are an accumulation of waste.”[2]
No capítulo “Transformation and Alienation”, o contexto de Basileia assume o papel central enquanto estímulo intelectual na obra de Herzog & De Meuron. Basileia é tida como um importante campo sinérgico, resultante de um contexto sociocultural específico, pela sua condição “in between city”, marcada pela confluência das culturas francesa e alemã, pela forte presença industrial e, sobretudo, pela sua relevância no panorama artístico internacional. Recordando um conjunto de artistas, que durante os anos 70 marcaram o processo iniciático do atelier: Joseph Beuys, Donald Judd, ou Andy Warhol, é abordada a forma como estas sinergias contribuíram ativamente para desenvolvimento de um processo conceptual, em torno dos mecanismos de perceção e atuação sobre a matéria. O debate centra-se na relação entre figuração e abstração mediante os estímulos da arte, refletindo-se num conjunto de projetos, tais como a Signal Box, em Basileia (1989-94) a Eberswalde Library (1994-99), o De Young Museum, em São Francisco (1999-2005), ou a Prada Toquio, em Aoyama (2000-03).
Com destaque pela Tate Modern (1994-2000), introduz-se o tema “Appropriation and Transformation”, abordando questões relacionadas com os processos de identificação e exploração das potencialidades das pré-existências. O foco reside na coerência conceptual de cada projeto e na forma como os elementos existentes têm a capacidade de dialogar com as novas premissas de atuação. A Tate Modern, em Londres, e o Küppersmühle Museum, em Duisburg (1997-99), são dois dos projetos referenciados, tal como poderiam ter sido a Caixa-Forum, em Madrid (2001-06), ou, ainda em construção, a Elbe Philharmonic Hall, em Hamburgo – projeto iniciado em 2003.
“Stacking and Compression” introduz os temas da densidade e repetição (acumulação). Retrata-se uma abordagem mimética mediante o uso e exploração da matéria, no sentido de a contextualizar com uma determinada realidade ou ambiente social. Projetos como a Stone House, em Tavole, (1982-88), ou a Dominus Winery, em Yountville (1995-98) refletem estes princípios, em que mediante o uso da pedra, sobreposta, empilhada ou acumulada em gabiões, também eles sobrepostos e empilhados, se procura uma relação de reciprocidade entre a arquitetura e o significado cultural que a suporta. A densidade e repetição intensificam igualmente os efeitos de perceção de escala, mediante o efeito de aproximação – um tema recorrente na obra de Herzog & De Meuron, tomando-se igualmente como exemplos, os casos do Olympic Stadium, em Pequim (2002-2008), ou do 1111 Lincoln Road, em Miami(2005-10).
Paralelamente aos aspetos relacionadas com a matéria, os próprios programas de projeto, tais como museus, armazéns ou bibliotecas, mencionando o caso da Ricola Storage, em Laufen (1986-87), remetem igualmente para uma tipologia de uso, diretamente relacionada com os efeitos de acumulação e compressão. Nestes casos, é a própria funcionalidade do edifício que define uma abordagem conceptual na materialização do mesmo.
Em “Imprints and Moulds”, é retomado o tema da perceção, aliada aos conceitos de seriação e desconstrução (abstração) da realidade, relacionando-se com osilk-screening de Andy Warhol. Analogamente, a expressão da imagem é transferida para a arquitetura sob a forma de ornamento, mediante processos de abstração: suportando-se na repetição, densificação ou estilização, tomando como exemplo a Eberswalde Library (1994-99), em parceria com o fotógrafo alemão Thomas Ruff; ou aRicola Factory, em Mulhause (1992-93), cuja fachada resulta de um processo de investigação, em torno da obra fotográfica de Karl Blossfelt, desenvolvida na década de 20 do século XX.
A técnica de molde é abordada segundo uma dupla vertente: enquanto matriz de reprodução da imagem, tema explorado em Eberswalde, segundo um processo de fotogravação em betão (análogo ao processo de serigrafia); e como processo de configuração da matéria, tomando como referência a Emanuel Hoffmann Foundation, em Münchenstein (1998-2003), o Küppersmühle Museum, em Duisburg (1997-99), ou o Architecture Park, em Jinhua(2004-2006), projetos nos quais foram exploradas as potencialidades do betão, na sua forma, textura e cor.
O tema “Interlocking Spaces”, aborda a relevância da interação entre campos espaciais e da forma como estes se tornam catalisadores. Mediante a exploração de momentos de ambiguidade, através de processos de divisão, adição, subtração ou alteração de elementos configuradores, este tema relaciona-se com a procura de exploração de relações visuais (interior e interior/exterior) e da interação de momentos de vivência. Estes princípios, refletem-se tando em escalas de caráter doméstico, como é o caso da Rudin House, em Leymen (1996-97), como em programas de caráter marcadamente público, mencionando a Goetz Gallery, em Munique (1989-92), o Museum / Cultural Centre, em Santa Cruz de Tenerife (1999-2006), ou a VitraHaus, em Weil am Rhein, Alemanha (2006-2009).
O último capítulo, “Beauty and Atmosphere”, remete para a experiência percetual do equilíbrio e da harmonia, entre a matéria, o espaço e a sua componente sensorial. A Prada Tokyo (2000-03), os interiores do REHAB, em Basileia (1998-2002), ou da Goetz Gallery, em Munique (1989-92), constituem fiéis exemplos, em que mediante o domínio da escala e proporção, da vibração ou intensidade cromática, e sobretudo, pela forma como é controlada a luz interior – zenital, filtrada ou difusa – se materializam projetos vivencialmente ricos, ténues transições espaciais e interiores de caráter etéreo.
Apoiando-se nestes temas estruturantes – introduzidos e desenvolvidos por Philip Ursprung e Herzog & De Meuron e acompanhados com diversos ensaios de autores como Kurt Forster, Thomas Ruff, Catherine Hürzeler, Robert Kudielka, Peggy Phelan, Boris Groys, entre outros – Natural History constitui uma revelação dos processos, aparentemente ocultos, mas determinantes na estruturação dos projetos de Herzog & De Meuron. Partindo de um método analítico, com base nos fenómenos de mutação da matéria, os processos operam mediante a perceção dos mecanismos da natureza e dos efeitos humanos sobre ela. Trata-se de uma continuidade entre natureza e artifício, materializando-se de uma forma ambígua e tendo como objeto, os determinismos de ordem natural que conduzem à transformação e à abstração. Neste âmbito, a influência da arte assume um papel preponderante, sendo testadas as suas fronteiras com o universo da arquitetura. Muitos dos seus projetos, resultam de um processo multidisciplinar com figuras ligadas ao mundo da arte, tais como Helmut Federle, Rémy Zaugg, Thomas Ruff, Gerhard Richter, Ai Weiwei,entre outros. A colaboração com artistas, ou especialistas em vários âmbitos disciplinares, reflete o intuito de encontrar uma estratégia operativa de caráter contemporâneo, sendo um processo mais de índole conceptual do que estilístico.Além da questão do método,Natural History, demonstra igualmente a vertente especulativa dos projetos de Herzog & De Meuron, face à sua escala e contexto, atuando sobre a reativação da pré-existência e da sua reciprocidade com um novo “objeto”, sobre a sua contextualização identitária e interação sociocultural.
A arquitetura de Herzog & De Meuron, tem como princípio a exploração dos mecanismos de perceção humana, num contínuo processo de investigação em torno da matéria e dos seus processos de transformação, privilegiando os campos da ambiguidade e da abstração.
HERZOG; DE MEURON. Natural History; Canadian Centre for Architecture; Lars Muller Publishers, 2002/2005
[1] Philip Ursprung, “Exhibiting Herzog & De Meuron “, in: Herzog & De Meuron: Natural History, Canadian Centre for Achitecture / Lars Müller Publishers,Baden, 2002/2005, p. 39.
[2] Herzog & De Meuron, “Just Waste”, idem, p. 74